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“Desculpem não nos encontrarmos nestas ruas. Só nasceremos amanhã.”, dizem os murais de Lisboa, na epígrafe escolhida por Lídia Jorge, em seu último romance.

Estão sempre a nascer, os filhos das revoluções. O futuro é seu tempo, a ação de hoje, seu desejo, a generosidade, seu espaço. São generosas as revoluções quando acontecem e arrebatam as gentes, que oferecem o corpo como bala, tapete, página branca. Terminam amargas as revoluções, corrompidos os seus princípios, destruídos os seus líderes, em corpo, em alma, ou ambos.

O que acontece à generosidade que toma as ruas, os quartéis? À liberdade, que encabeça pelotões, marchas? À nova ordem, logo feita um fato vetusto, com cheiro a bolor e fruta podre? Ana Maria Machado, jornalista portuguesa autoexilada nos Estados Unidos, é conduzida a voltar à casa paterna e buscar a beleza, “[..] o grau mais elevado da verdade”.

O diplomata norte-americano que a incita a essa tarefa acredita no anjo benfazejo da alegria a tocar a humanidade por momentos breves e raros, deixando brilhar uma ordem possível, duradoura. É isso que pede à Ana Maria, que faça lembrar ao mundo a existência desse anjo, trazendo ao presente a memória da Revolução de seu país. A repórter transita pelo coração da fábula a partir de uma fotografia subtraída ao pai, em que aparecem os notáveis do movimento após um jantar no restaurante Memories. Localizado cada um deles, os mortos encontrando quem fale por si, depoimentos e fatos levam à derrisão, à consciência da injustiça, ao apagamento dos feitos; aí deverá Ana Maria encontrar a beleza designada por discurso alheio. E vai encontrá-la, seja na criança que nascerá do casal improvável, seja nos próprios sentimentos, ao enfrentar a verdade do pai derrotado, também ele um memorável, e resistente. Tocará então o coração do coração da fábula: esse real indizível, que traga o sujeito, e de que a literatura se ocupa.

Decide ficar ao lado do pai e postergará por seis anos a finalização da série A História Acordada, para a CBS, tempo em que busca “[...] separar a morraça da pepita de ouro”, para regressar com uma “narrativa luminosa na qual uma pessoa se reveja”. Seleciona e organiza o material que possui, cortando tudo o que possa vir a descascar a pele do mito. O mito, em que a imagem de El Campeador montando o alazão “[...] junto às ondas, lá na Praia Grande” pode coexistir com o discurso do diplomata que para todos os efeitos ocupava o lado oposto nas forças em tensão, e é quem elogia no Senado norte-americano “[...] o caso único na história do mundo” que foi aquela Revolução.

O romance de Lídia Jorge revisita a Revolução de 25 de Abril, que ainda pede tempo para saber o que se passou. O que terá passado importa menos do que aquilo que se acredita. Outro Portugal possível, ainda e sempre a se fazer, passível de espanto, entranhado no amor e em sua rima mais vulgar: “[...] um dia ainda se misturará, e confundirá, a euforia da Queda do Muro de Berlim com a euforia das bandeiras nas ruas de Praga e a imagem das escadarias em Budapeste, mas as flores, essas, serão nossas. Os cravos.”


* Lídia Jorge. Os Memoráveis. Alfragide: Dom Quixote, 2014.



Nilma Lacerda

Nasceu no Rio de Janeiro, onde vive. Autora de Manual de Tapeçaria, Sortes de Villamor, Pena de Ganso, Cartas do São Francisco: Conversas com Rilke à Beira do Rio, Estrela de rabo e mais histórias, Iberê Camargo: um homem valente, é também tradutora e escreve ensaios e artigos científicos. Recebeu vários prêmios por sua obra, dentre os quais o Jabuti, o Prêmio Rio, o Prêmio Brasília de Literatura Infantojuvenil, além das distinções White Ravens, da Biblioteca Internacional de Munich para a Juventude  e Lista de Honra do International Books for Young People. Professora aposentada da Universidade Federal Fluminense, mantém na Revista Pessoa a Coluna Ladrilhos, com crônicas de talhe variado, em perspectiva lusófona.




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