Então, arte. Aquela coisa esquecida atrás da TV, perto da espada-de-são-jorge (contra o mau olhado), embaixo da samambaia. Aquilo que o mendigo da sua rua faz quando não está conversando com os presidenciáveis.
Os anos felizes acabaram. Os anos tristes acabaram. Somos a última geração que aproveitará os mimos do mundo moderno. Nossos filhos não herdarão a chuva ácida, a Black Friday, o cartão de ponto nem a bicicleta elétrica.
Só o fim nos une. Foi sempre contra o fim que cantamos, escrevemos, pintamos? Foi sempre contra a morte que erguemos arranha-céus e inventamos o trem. Contra o apocalipse, nossas ilhas utópicas. Contra a morte, nossas árvores genealógicas. Mas as árvores estão com os dias cortados e as ilhas, caras. Acabou a ciranda das revoluções e contrarrevoluções. A morte do indivíduo acabou. Acabaremos juntos. Agora todos sabem como se sentia Augusto dos Anjos.
O tempo já não é uma linha reta. A história deixou de ter futuro linear. Adeus, seta envenenada do Progresso: tiro nágua. Este é tempo líquido, tempo enchente, tempo tudo.
A vanguarda, nossa velha amiga, acabou. É hora de tirar (respeitosamente, funeralmente) nossos quepes de vãguardinhas, estão abafando nossas cabeças. Só os míopes tentam assumir a dianteira de um tempo que não tem frente. Tempo enchente, tempo tudo.
Se nada é novo debaixo do sol, inventar um sol novo de novo. Contra o fim do tempo, aprender a maleabilidade do tempo d'A montanha mágica de Mann, monta magi mann, mo má mann, MOMAMÃ.
Todas as poéticas são possíveis. Não haverá mais nada de novo debaixo do sol, tudo está disponível. Dos desenhos nas cavernas ao gif, não há interdições.
Salvar tudo, lembrar tudo o que fizemos, a arte no fim do mundo é o domínio público. Amar as digitais engorduradas que deixamos nos objetos, todos os fonemas, todos os ritmos (sobretudo os inumeráveis!). Amar: renovar significado. É uma tarefa impossível, falta tempo para tanto: aí reside a nossa tragédia. (E nem isto é novidade.) Tudo o que foi nosso nos interessa. Os acumuladores, Bispo do Rosário, Horst Ademeit, o espólio perdido de Vivian Maier, os arquivistas, os catadores de papéis, os museólogos, os ratos de sebos, os colecionadores de areia.
Abertos à pluralidade das poéticas, sim, mas obrigados a inventar a pluralidade dos modos de vida. No more hippie business: sobrevivência. Momamã, Pachamama. Contra a estagnação de/numa só linguagem. Contra a colonização da língua pelo musgo. Contra a hora marcada para trazer seu amor em três dias. Contra o varejão das almas, do coração e da cabeça. Contra o moinho de gastar gente. Contra a ironia penteadinha, pela flor multipétala do Não que é Sim. Contra toda paródia que se contenta em reciclar o que devia ser revivido. Contra o pop paralítico, pelo popapocalíptico. Contra o catastrofismo molenga, contra o protagonismo burocrático, contra o derrotismo do derrotado. Momamã, Pachamama se pergunta e se nenhum homem fosse mesmo uma ilha?
Momamã, Pachamama. Pelos escritores que não se aguentam no papel. Pelos performadores que não se aguentam no grito. Pelos dionisíacos que não se aguentam no clichê. Pelo etcétera que não se aguenta e vai.
Alegria, gente. Coragem. Já está acabando.
PS:
No dia 25 de fevereiro de 2015, o vídeo-manifestoPara uma arte no fim do mundo foi apresentado em Boston, como parte de um evento dedicado à revista Pessoa. O vídeo foi inspirado nesta crônica e em uma outra que publiquei na revista: "O fim do mundo foi meio sem graça", manifestos à moda do começo do século XX – somente metade a sério, portanto. O texto do manifesto foi atualizado: o fim do mundo também avança. Espero que o sol Momamã, poema visual inspiradon‘A montanha mágica, apareça em breve nos muros das grandes metrópoles.
Victor Heringer
O poeta, cronista e ficcionista Victor Heringer nasceu no Rio de Janeiro em 1988 e faleceu em 2018. Publicou Glória (7Letras, 2012, Prêmio Jabuti), O escritor Victor Heringer (7Letras, 2015), Lígia (e-galáxia, 2014), entre outros. Colaborou para a revista Pessoa entre 2013 e 2017.