Me perdoem a referência bélica. É que às vezes, chegar onde você precisa não é sempre fácil. Antes deste último final de semana, quando escritores publicados em uma edição especial da revista Pessoa (Contemporary Brazilian Literature - com organização de Leonardo Tonus) participaram em um debate do Boston Book Festival sobre a literatura brasileira, sonhei os doces sonhos de quem aguarda com entusiasmo uma nova era: em Boston, a literatura brasileira receberia seu devido reconhecimento e daí começaria um período de trabalho incessante para todos nós tradutores do português para o inglês. Pela primeira vez, um grupo de escritores brasileiros iria fazer parte de um grande festival literário nos Estados Unidos, o mercado que, por bem ou por mal, acaba determinando a visibilade de escritores no mundo todo.
Contagiado por toda essa antecipação, eu convenci a minha esposa que era uma boa ideia viajar de Nova York para Boston e participar do evento. De ônibus, poderíamos ver os tons de laranja, amarelo e vermelho das árvores no outono. E, além disso, ia saír mais em conta, uma questão que todo nova-iorquino sem o sobrenome Trump tem que levar em consideração.
Entretanto, ao invés de facilitar, a viagem de ônibus quase fez o sonho não acontecer. Atrasos, dificuldades na estrada e um desconforto geral mostraram que o ônibus não era a melhor opção.
Mas por que estou narrando esta história banal sobre meios de transporte?
É que me ocorre que o que mais importa em qualquer viagem é o veículo. Dava para chegar até de burro em Boston. Escolhi o ônibus. Se eu tivesse sido mais esperto, eu teria optado pelo trem ou um avião (mesmo com a diferença gritante de preço). Por escolher um veículo mais ou menos, eu cheguei mais ou menos. Da mesma maneira, durante as últimas décadas não faltaram obras brasileiras que chegaram bem traduzidas para o inglês. O que têm faltado são oportunidades para seu devido reconhecimento. A literatura brasileira, com exceção de algumas obras que ganharam mais atenção como a de Clarice Lispector, continuou na obscuridade para os leitores anglófonos. O trabalho da revista Pessoa, que desafia as ideias exóticas e estereotipadas dos anglófonos sobre a produção literária brasileira, encontrou um bom veículo no festival de Boston. E por isso, me parece, é que a o evento ganhou um bom público de mais de oitenta pessoas sábado passado.
“Ao mesmo tempo que a literatura brasileira é diversa, ela é universal,” afirmou Nilma Dominique, professora do MIT que moderou a conversa com Alexandre Vidal Porto, Luisa Geisler e Nuno Ramos. Apesar de nosso esforço aqui nos Estados Unidos para apresentar autores estrangeiros simplesmente como autores e não estrangeiros, o leitor daqui ainda guarda resistência à leitura das literaturas de outros países. Foi nesse cenário que Dominique e seus convidados foram derrubando as barreiras entre os autores e a plateia.
“Não existem dois países no hemisfério Oeste com histórias tão parecidas quanto os Estados Unidos e o Brasil,” Vidal Porto explicou.
Oi? quase se podia ouvir escapar das bocas das pessoas. Moço, vai ter que se explicar. “O leitor americano pode reconhecer [na literatura brasileira] problemas comuns, que estão sendo enfrentados aqui e sendo enfrentados de uma outra maneira no Brasil.”
As cabeças, atentas, assentiram com aprovação enquanto Vida Porto fazia uma lista. Agora sim, estávamos entendendo. Racismo? Check. Orientação sexual? Check. O golfo entre os que têm e os que não têm? Também. Mas enfrentados à brasileira, o que proporciona ao leitor anglófono um olhar diferente e renovada sobre sua realidade.
Os americanos puderam descobrir que muitas questões do meio literário brasileiro têm a ver com as que também estão em debate por aqui, como, por exemplo, o reconhecimento de escritoras. Geisler, ganhadora do Prêmio Sesc em 2010 e novamente em 2011, concorreu aos dois prêmios com nom de plume masculino.
“Senti que eu seria julgada com mais neutralidade se eu usasse um pseudônimo masculino,” explicou.
Os comentários da Geisler vieram em boa hora: no começo de 2015, este debate explodiu no mundo anglófono — e o espaço das mulheres na literatura passou a ser tema de festivais literários, de programas de televisão e concursos. Algumas editoras chegaram a adotar novas políticas. A inglesa And Other Stories, por exemplo, resolveu publicar somente escritoras em 2018. (A decisão, como podem imaginar, enfrentou fortes reações vindas de todos os lados.)
Retomando as idéias de Dominique e Vidal Porto, Geisler falou ainda das influências das outras literaturas, como a argentina, na sua escrita, costurando assim um lugar para a literatura brasileira no grande cenário literário internacional.
Também Geisler e Nuno Ramos destacaram o que a ela chamou de “democratização da literatura brasileira”, resultado de uma inclusão de escritores nunca antes vista no país e que contribui para o enriquecimento da produção nacional.
“Nos anos 80, tínhamos grandes poetas, romancistas, ensaístas [que dominaram a literatura brasileira],” explicou Ramos. “Mas isso mudou. Agora ninguém sabe ao certo quem é ‘o grande escritor,’ e esta falta de organização em torno de grandes nomes beneficia a arte.”
O contexto apresentado pelos autores despertou perguntas acaloradas da plateia. Qual era o papel da língua portuguesa nessa relação com a América Latina? Como funciona o relacionamento entre os escritores e seus tradutores? Desconfio que o verdadeiro motivo do interesse era que agora, durante o evento, os autores mostraram como podem enriquecer a perspectiva do leitor americano. Além disso, a plateia teve a oportunidade de ouvir (por meio de leituras de textos que integraram a antologia Pessoa - Contemporary Brazilian Literature) e entender que o Brasil tem muito a dizer sobre questões universais que até agora se encontravam sob o domínio de autores americanos. Se foi essencial o papel do Brasil como país-convidado na Feira de Frankfurt em 2013 e mais cedo este ano no Salão do Livro em Paris, a participação de escritores brasileiros em um festival como o do Boston, que tira o foco das nacionalidades e procura apresentar a literatura por literatura, é uma conquista.
Agora resta-nos dar continuidade a este belo passo da revista Pessoa. O primeiro, dado neste festival - que atraiu nos últimos anos mais de 30 mil pessoas em média - pode ser firmemente mantido. A participação em eventos como este, que atendem a uma clara curiosidade pela literatura brasileira no exterior, talvez um dia deixe de ser motivo para celebração e passe a ser visto como um aspecto natural da viagem da literatura brasileira para os Estados Unidos.
* O evento da revista Pessoa no Boston Book Festival foi organizado com o apoio do Boston Literary District, MIT, Boston University e SciBr Foundation