Sem deixar a lusofonia, mergulho na polifonia, me banho em geografias. As gotas d’água na pele me fazem úmida de uma geografia tão diferente da que tinha na infância, carregadas no coração, de cor, as capitais e seus paÃses. Cresci, perdi listas antigas, não me apropriei das novas, e me assusto com a existência de um paÃs chamado Latvia.
Recorro aos conhecimentos enciclopédicos, ou diria cibernéticos?, do Google. As páginas vêm todas em inglês, mas o recorte à direita, em português, apresenta Letónia, Letônia, capital Riga. De Riga me lembro, Letônia era uma das tantas repúblicas soviéticas socialistas. Ainda não li Viagem, de Graciliano Ramos, que talvez fale de algumas delas, insondáveis em sua identidade nos tempos das U.R.S.S., e tão evidentes agora. Mas a que vem Latvia ou Letônia, nessa conversa?
Tem a ver com criança, com livro, livros feitos para crianças. O 34° Congresso do IBBY acabou de acontecer na cidade do México. O IBBY – Conselho Internacional de Livros para Crianças e Jovens – é uma entidade fundada por Jella Lepman, judia alemã repatriada ao fim da Segunda Grande Guerra para cuidar da orfandade da infância alemã. Decidiu fazê-lo com livros, que conhecia bem. Acabou fundando a Biblioteca Internacional da Juventude de Munique e pouco depois o IBBY, que tem congregado uma boa quantidade de gente a cada dois anos, em diferentes paÃses do mundo, para discutir assuntos relativos a crianças e livros. Na ocasião, são incluÃdos em lista de honra autores, ilustradores e tradutores indicados pelas seções nacionais. Foi aà que encontrei a Latvia.
E sem reconhecê-la (meu inglês é pouco), pensei que fosse um desses paÃses jovens, recém-saÃdos da casa dos pais, a proclamar sua independência e mostrando-se adultos no empenho de produzir livros para crianças. Como vi na feira de Bolonha, exclusiva para livros infantis e juvenis, em 1998. Num estande mÃnimo, despojado, três banquetas partilhavam o espaço (carÃssimo, imagino), apresentando livros simples, muito simples, para crianças: Irã, Gana, talvez, LÃbano, quem sabe? Ante os grandes estandes dos paÃses ricos, a frugalidade de páginas, cores, papel de capa, design daqueles três paÃses só permitia ao espectador comoção e admiração.
Se eram os três, lá estavam todos agora, Gana com belos livros, Irã com ilustradores magnÃficos, LÃbano com traços inconfundÃveis. E nomes de lÃnguas que não frequentavam atlas em meu tempo de geografias ralas vêm para as produções singulares. A Espanha indica autores e tradutores em basco, catalão, galego, castelhano.
Retomo lusofonias, copio Manuel Rivas nas reflexões sobre literatura e insurgência, no Congresso do IBBY em Santiago de Compostela: “Como sabedes, todo nas Mil e uma noites, a comezar pola voz de Sherezade, é um andar contra o abandono.”*
Sonoras vozes em densas geografias. Lepman deixou exemplo: fazer bons livros para crianças é andar contra o abandono.
* Manuel Rivas. ”A literatura infantil e xuvenil como poesia insurxente.” 32° Congreso de IBBY. Santiago de Compostela, 2010. DisponÃvel em http://www.ibbycompostela2010.org/plenario