No século passado, dizia-se que “em Boston, uma pedra jogada ao ar teria grande probabilidade de cair num escritor”. Fundada em 1630 e fortemente ligada à história da independência americana, a cidade tem também uma rica cultura literária que atravessa a história e impõe sua presença até hoje.
Para ajudar a preservar e principalmente difundir esse patrimônio, foi criado em outubro de 2014 o Distrito Literário de Boston (Boston Literary District, na versão original), o primeiro dos Estados Unidos. Em um segundo plano, o projeto ambiciona ainda mais. Os idealizadores acreditam que a iniciativa terá um papel importante no desenvolvimento mais amplo da cultura local, atraindo artistas e produtores culturais, na expansão do turismo e, como consequência disso tudo, no aumento do emprego.
Com cerca de 9 km2, a zona composta pelos charmosos bairros de Beacon Hill, Downtown e Back Bay, concentrará nos seus equipamentos culturais atividades literárias que poderão ser explorados a pé, como em um grande museu ao ar livre da história e da atual cena literária da cidade.
No total são 88 pontos de interesse, como a casa onde Henry David Thoreau escreveu o icônico A desobediência civil ou a residência usada por Nathaniel Hawthorne para escrever A letra escarlate. Nessa área fica o lendário Omni Parker House Hotel, lugar de encontro de escritores como Emerson, Thoreau, Hawthorne e Longfellow.
Muitos outros fatos não relacionados à literatura mas ainda assim curiosos rondam o luxuoso hotel. Foi lá que Malcon X, na época conhecido como o Pequeno Malcon, trabalhou como ajudante de garçom, na década de 1940, e o líder vietnamita Ho Chi Minh foi padeiro, entre 1911 e 1913. Foi também o lugar escolhido por Franklin Roosevelt, John F. Kennedy e Bill Clinton para reuniões privadas. Isso só para se ter uma leve ideia do imenso acervo histórico de uma das cidades mais antigas dos Estados Unidos.
Por que um distrito literário?
Tudo surgiu de um debate entre entidades públicas e privadas sobre o desconhecimento dos próprios bostonianos e também de turistas sobre as poderosas marcas literárias da cidade.
Escritores como Ralph Waldo Emerson e Khalil Gibran têm a sua vida ligada à cidade. É também em Boston que nasceu o Athenæum, uma das mais antigas instituições culturais do país que ainda hoje serve como palco de debate sobre novas tendências culturais e onde foram impressos os primeiros livros e revistas nos estados Unidos.
“Boston é também a cidade de Edgar Allan Poe e Sylvia Plath, mas a população está mais familiarizada com os locais associados à fundação dos EUA. Fizemos um mapeamento exaustivo de todos os pontos de interesse e apresentamos uma proposta à prefeitura da cidade, que entendeu a importância do projeto e criou todas as condições para que fosse aprovado por unanimidade pelo Concelho Cultural do Estado de Massachussets.”, disse em entrevista Eve Bridburg (foto), que, juntamente com Annita Walker, diretora do Conselho Cultural de Massachusetts, é uma das fundadoras da organização cultural literária.
Mais do que sinalizar marcos na cidade, o Distrito tem ainda como missão formar novos leitores. São muitas as ideias para incentivar o hábito de leitura. A primeira delas é a criação de uma programação extensa com eventos e passeios durante o ano inteiro para homenagear a ligação de autores célebres com a cidade. A maioria são escritores americanos. Mas existem também elos com escritores estrangeiros.
O inglês Charles Dickens, por exemplo, morou em Boston em 1842 e se ressentiu do tratamento de estrela que recebeu. Numa carta a um amigo, escreveu que “não posso fazer nada do que gostaria, não posso ir a nenhum lugar que tenho vontade, não posso ver nada do que quero. Sempre que saio de casa, sou seguido por uma multidão”. São episódios como este que o Distrito quer reviver ajudando a população e principalmente os estudantes a tomarem contato com a cultura literária da cidade. “Queremos fornecer material às escolas públicas de Boston”, disse Eve Bridburg.
Outra missão é desenvolver a economia criativa local. “O Distrito serve também para conectar o setor privado com a comunidade cultural”. Restaurantes, lojas e hotéis terão ofertas desenhadas para refletir o patrimônio literário do bairro. Livros serão vendidos nas feiras de rua, junto com beterrabas e bacalhau fresco. A literatura tem que sair das livrarias e das bibliotecas para povoar as ruas”, sintetiza Bridburg, que também é a Diretora Executiva da GrubStreet, uma escola de escrita criativa.
O Distrito Literário deve ainda ajudar a promover um novo tipo de turismo nos EUA: o turismo literário. “Queremos que Boston seja reconhecida como a primeira cidade literária do país, um local cujo apelo literário, do passado e do futuro, mereça ser visitado, conhecido. Queremos que os turistas brasileiros e portugueses também olhem para Boston dessa forma, queremos que todos respirem literatura aqui”, afirmou.
A criação do Distrito está inserida num novo movimento de renascença cultural da cidade, que também tem como indutor o Festival Literário de Boston. Organizado desde 2009, reúne cerca de 30 mil pessoas em outubro. Centenas de escritores já passaram pelas suas seis edições, incluindo uma mão cheia de prêmios Nobel, mas, por enquanto, nenhum escritor de língua portuguesa.
Lusofonia
Cidade multicultural, Boston tem uma forte presença lusófona, com cerca de 600 mil falantes de português, a maioria brasileiros, portugueses e cabo-verdianos, residentes na cidade ou em municípios próximos. “Queremos que esta comunidade se torne mais próxima; o Distrito não celebra a literatura americana, celebra simplesmente a literatura”, disse Eve. Presentemente, as universidades de Harvard, MIT, Boston e Massachusetts têm departamentos de estudos lusófonos, liderados por professores americanos, brasileiros e portugueses.
Parceria
A revista Pessoa é a mais nova parceira associada do Boston Literary District, ao lado da Pen New England, Edgar Allan Poe Foundation of Boston, Mass Poetry e Boston Review, entre outras organizações. O objetivo é começar a contribuir com a plataforma que agrega as principais iniciativas literárias da cidade ainda em 2015 com projetos de promoção da literatura, principalmente da lusófona, foco principal da revista.