Longe, encontrar o perto. Lugar comum, experiência antiga. Pai, mãe e filha, nenhum nome próprio, a situação conhecida da separação, a nova família do pai em outra cidade não esperando por uma visita de cortesia que a mãe insiste para a filha fazer. Não é de cortesia, a visita devida ao pai distante, escritor prestes a ficar cego. Pequenos desastres de comunicação, o retorno antecipado sem que nada pudesse ter sido dito, a admiração passada da menina pelo pai, como tantas outras coisas, sufocada na garganta.
Na volta, bagagem extraviada, o percurso desolador do aeroporto a casa exibindo uma cidade que mata seus peixes, separa moradores, enche o caminho de containers que se multiplicam como os pães e peixes da Bíblia sem que a fome seja saciada. O corpo manifesta suas dores, garganta que arde, peito que lateja, e os ossos que vão restar.
A coleção Sonho Verde, de que A longa estrada dos ossos, de Adriana Lunardi, faz parte, é idealização de Mirna Queiroz, e foi editada pela DSOP, sob direção editorial de Simone Paulino. “A ideia é despertar os jovens leitores para os desafios impostos pelas mudanças climáticas ou pelo consumo desenfreado.” Enxuta, sensível e provocadora, a obra de Lunardi dignifica a literatura brasileira que os jovens também podem ler, ou sentem-se atraídos a ler pela própria opção editorial.
A autora não dá respostas, nem apresenta conclusão ou lição de moral, só a determinação da jovem que recusa a se acostumar. “Não quero me acostumar com os peixes mortos, com as famílias sem rede pluvial e com as roupas da China. Não quero me acostumar nem comigo. São meus ossos que insistem.” Em busca de caminho diferente das vias paterna e materna, deposita nos ossos, no esqueleto que põe de pé o corpo, o corpo capaz de movimentos e ações, o foco de sua percepção. Esses ossos que restarão, ao fim e ao cabo.
Adriana ocupa-se igualmente dos ossos do ofício, e fala de seu trabalho de escritora, da dúvida em dar-se esse nome, do aprendizado da escrita a partir dos roteiros que produz para documentários. Enfatiza a necessidade de a escritora romper a porta, sair do armário, matar o anjo do lar, como Virginia Woolf já o havia dito de maneira sábia e oportuna. Questiona a divisão cruel – aqui ganho dinheiro, aqui escrevo –, onipresente na vida de quem escreve por arte e ofício.
Terreno de liberdade, a literatura pede a escritoras e escritores que se libertem. Matar as fantasias que os outros constroem acerca de nós, reinventar-nos. O mimo é essencial. O melhor de si para escrever, esta caneta, jarro de flores sobre a mesa ou madeira nua, a janela que se abre plena ou controlada. Ao sair para comprar o mimo, a arte pode pousar, tática e descuidada, pelo caminho.
Adriana Lunardi comoveu um auditório, não faz muito, no I Encuentro de Programas de Creación Literaria y Escritura Creativa de las Américas. Ainda bem que eu tinha o livro na bagagem e selamos assim nosso encontro em Bogotá, 2015.
* Adriana Lunardi. A longa estrada dos ossos. Il. Catarina Bessell. São Paulo: DSOP, 2014 (Coleção Sonho Verde) p. 43.