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A paciência do homem branco



2023-09-25

Duas palavras sobre as lutas identitárias e a defesa de uma mulher preta para o STF

 

 “Criticar o governo por questões identitárias é falta de visão estratégica”, diz, de várias formas, o companheiro branco. Questões identitárias, a saber, são todas as demandas que não acometem o corpo dele e, por isso, esse é um argumento, na melhor das hipóteses, egoísta. Eu considero canalha. Mas, antes disso. 

Não fossem as mulheres, as pessoas pretas, os nordestinos e as minorias políticas organizadas nos movimentos sociais, teríamos perdido a última eleição e os homens brancos, cis e autodeclarados heterossexuais teriam eleito seu representante mais truculento, intolerante e radical. Fomos nós, os outros, os corpos da periferia do poder e do sistema, que contivemos a barbárie. 

As nossas pautas foram o centro do debate durante a campanha eleitoral e os dois ideais de mundo postos em disputa divergiam, fundamentalmente, na questão dos direitos. Que alguns minimizam como “costumes”, o que poderia ser uma ironia, não fosse um escárnio. Eleito, Lula subiu a rampa de mãos dadas com pessoas que representavam a diversidade da gente ameaçada e que, em um revide espetacular, tirou do poder um vilão medíocre, sem inteligência nem charme, que, oxalá, ainda veremos pagar pelo mal que fez.

O ato foi simbólico da gratidão, do entendimento do tempo presente e do compromisso do presidente com a maioria, não apenas dos eleitores, mas do povo brasileiro representado na posse. Nada mais de acordo com a democracia que reafirmamos com aquela vitória. Não é democracia o Estado que perpetua a maioria de seu povo existindo à margem dos direitos. Foi esse o recado.

Mas o companheiro branco nos acusa de fragmentar o campo das esquerdas e de distrair parte da militância do centro da disputa que é a luta de classes. Acontece que toda pauta é identitária, mas só aquelas defendidas por grupos subalternizados e corpos vulneráveis são chamadas assim. Uma tentativa de fazê-las menores, circunscritas a guetos. São as que podem esperar ou serem satisfeitas lentamente, em espaços institucionais menos prestigiados. 

No entanto, trata-se da evolução do debate político possibilitada pela tomada de consciência das identidades que compõe a classe trabalhadora. E do entendimento de que a mudança do poder econômico não garante o fim das injustiças, das desigualdades e da violência. Se a luta chamada de identitária fragmenta a esquerda, talvez seja porque parte da esquerda também tenha seus “costumes”. E é legitimo que não nos acostumemos com as violações que sofremos pelas identidades que portamos.  

A pauta identitária é sobre vida ou morte. É o diapasão do pensamento progressista mais sofisticado, incontornável diante dos desafios impostos pelo nosso tempo e espetacularmente atrasada no Brasil. Os corpos que carregam as identidades desses grupos são os que enterram, dia após dia, seus mortos na guerra às drogas, em abortos clandestinos, assassinadas por seus parceiros, violentadas por familiares, pelas mãos da polícia por serem pretos, nas ruas por serem LGBTQIA+. Somos a maioria para quem os acessos são dificultados ou negados, os primeiros a sofrer nas crises do sistema, aqueles para quem a justiça tarda e falha. Os usados, de tempos em tempos, como argumento para a defesa de um Estado de Direito que nunca termina de nos incluir. 

**

 

Quando Lula assumiu, fiquei decepcionada com a formação de um ministério não paritário. Para qualquer pasta, tem uma mulher tão competente ou tão incompetente quanto o homem escolhido. Tem uma mulher para ocupar o lugar do Haddad, assim como existe outra para o lugar do Fufuca. Quando Lula apresentou o nome das 11 mulheres em 37 ministérios e eu resmunguei que faltavam pelo menos 7, o companheiro branco pediu para olhar o lado bom. Eram apenas duas no governo anterior, eu devia ter paciência e parar de colocar água no chopp da festa. Mas a única justificativa para que mulheres e pessoas negras não ocupem de forma equivalente os mesmos espaços de poder que os homens, é o esforço de perpetuação dos preconceitos e estruturas que combatemos. Não é possível mobilizar a sociedade na direção da igualdade com essa inabalável confraternização masculina e branca nos cargos decisórios do país.  

É imperativo, embora longe de ser suficiente, a indicação de uma mulher preta para a vaga de Rosa Weber no STF. 

Não é aceitável, por ninguém com o coração no lugar certo, que Lula nos legue uma suprema corte com apenas uma mulher. E nenhuma pessoa negra. E já que é para ficar mal falada entre meus camaradas, não perdoo Lula ter desperdiçado a primeira indicação com Zanin que, além de homem e branco, é conservador. Meus filhos terão quase a minha idade quando ele se aposentar. Até lá, fará parte do minúsculo círculo que determinará os horizontes da nossa justiça em uma corte que já tem Marques e Mendonça para ficar apenas nos nomes mais eminentes. Não engulo.

Não pode ser aceitável que as mulheres terminem o mandato do presidente Lula com menos espaço político de fato do que começaram. Em menos de um ano, duas já foram substituídas por homens nos ministérios. Se já é tarde para ampliar nossa participação no STF, como seria justo, que o presidente proteja ao menos as 2 vagas que ocupamos hoje. Que Lula, meu admirado presidente Lula, saiba que terá um custo político alto e um prejuízo imenso ao futuro a indicação de outro homem para a vaga de Rosa Weber. 

Todos que defenderam publicamente a nomeação de uma mulher preta para o Supremo foram atacados, não pelos conservadores bolsonaristas, mas pela esquerda que se diz democrática. Em um sistema de governança onde os valores e interesses da direita ameaçam, chantageiam e constrangem Lula desde o primeiro dia de mandato, não entendo a estratégia de não pressionar no sentido oposto, deixando Lula sem capital social, como único guardião de nossos valores progressistas.

Esse é o papel da esquerda em um governo de esquerda. Pressionar para que o compromisso com nossos ideais e direitos seja honrado a despeito dos interesses do capital, mas também da misoginia, do racismo, da homofobia e da religiosidade intolerante encardidos na sociedade brasileira. Sem a complacência do companheiro branco, Lula não cogitaria deixar uma suprema corte mais masculina e conservadora do que encontrou. 

Há poucos meses, escutei a promotora de justiça do Ministério Público da Bahia, Lívia Sant'Anna Vaz, contar sobre a Carta Mandinga, um documento histórico, transcrito da tradição oral africana, na instituição do império Mali, por volta de 1235. Aprendi que foi escrito na língua bambara – que nome bonito para uma língua - e que lá estão conceitos como igualdade entre os povos, valor da vida e da dignidade humana, erradicação da fome e da miséria, liberdade, proibição da escravidão, respeito ao estrangeiro, preservação da natureza, questões de gênero e outros temas que continuam produzindo divergência hoje e já faziam parte da cultura e vida tribal africana há oito séculos. 

Lívia defendeu que a noção de direitos humanos não é invenção nem monopólio do norte global brancocêntrico e que uma representação da justiça de olhos vendados promete apenas manter o status quo. Ela é autora do livro “A justiça é uma mulher negra” que ela projeta de olhos bem abertos para as diferenças e espada em riste contra as desigualdades. 

Eu nunca tinha ouvido falar da Carta Mandinga. E poucas vezes escutei alguém falar da justiça de forma tão viva e reparadora. Pensei que a justiça que se apresenta como uma burocrata se apequena, não transforma, não nos cobre ou cobre sempre os mesmos. Lívia é umas das juristas indicadas pelos movimentos para a vaga de Rosa no STF e não é a única.

É fundamental que meninas se vejam representadas nos espaços de poder para que possam sonhar e saber onde podem chegar, mas não é apenas por isso que queremos uma mulher preta no STF. O próprio Lula costuma invocar, com toda razão, sua biografia para justificar o compromisso com o povo trabalhador. Por que deveria desconsiderar a diversidade na hora de compor uma corte cuja pretensão é a da máxima justiça?

Queremos uma mulher preta porque precisamos do seu contraponto, porque queremos criatividade e originalidade no nosso fazer político. Precisamos do rigor, da empatia e das ideias de quem se formou percorrendo caminhos em que aquela corte, em 132 anos de história, nunca pisou. Todos sabemos que tem uma parte do conhecimento que só acessamos a partir da experiência. Em um campo tão ambicioso e fundamental quanto o da justiça, não é possível prescindir da fortuna que portam corpos com diferentes vivências para que a justiça cumpra sua promessa de alcançar a todos.  

Justamente por ser lenta, é preciso colocar a mudança em marcha. A paciência só é estratégica para o companheiro branco que acessa o Estado de Direito e tem respeitadas as regras do próprio corpo. A justiça brasileira tem a cara dele. É verdade que o presidente tem a prerrogativa de indicar o ministro, mas essa vaga não lhe pertence. Essa vaga é do povo brasileiro. E, em 2023, é de uma mulher. Preta. 

 



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




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