Na terceira volta percebo que meu pai está chorando. Não como quando ele fica comovido num filme, mas chorando mesmo, lágrimas molhando a barba, o nariz escorrendo, a cara vermelha. Eu estou no círculo de dentro da multidão que patina na quadra apertada, demoro para conseguir atravessar todas aquelas pessoas e chegar até ele.
Quando me vê, ele sorri, o rosto já seco. Tenho medo de perguntar o que aconteceu e fazer com que ele chore de novo. Digo que estou com fome. Ele diz que eu fui muito bem, daqui a pouco vou poder me apresentar naquele espetáculo no Ibirapuera.
Escolho o bolo com mais creme que consigo enxergar pela vitrine embaçada da doceria. Meu pai me deixa comer o que quiser na hora que eu quiser e eu aproveito. Mas ele mesmo come pouco. Nesse dia ele toma café e fuma. Ele sempre toma café e fuma. E eu, como sempre, queimo a língua no chocolate quente.
Na volta, peço o isqueiro dele emprestado para acender meu cigarro invisível. Ele balança a cabeça desolado, mas me estende o fogo mesmo assim, depois acende um de verdade para si. Eu assopro devagar e meu hálito quente deixa um rastro branco no ar gelado. Dou a mão para ele e vamos os dois soltando fumaça até o hotel.
Ele me deixa abrir a porta do quarto e diz que está cansado, mas me acompanha até a piscina. Enquanto eu tento chegar até a outra borda sem subir para pegar ar, ele tira o sapato e as meias e mergulha os pés na água quente. Agora me ocorre que nunca nadei com ele. Não sei se ele sabia nadar.
Todos os espaços do hotel estão sempre cheios, mas na minha lembrança estávamos sozinhos na área da piscina - talvez fosse horário da novela ou a minha memória tenha apagado as outras pessoas e me deixado só com ele. Eu nado. Tento chegar à outra borda, não consigo, volto por baixo da água e alcanço os pés cheio de veias roxas dele. Emerjo, depois mergulho e parto de novo. Quando finalmente consigo atingir a outra borda, não sei se meia ou uma hora depois, ele me aplaude.
No elevador, meus olhos ardem do cloro e meus dentes batem de frio. Ele me abraça para me esquentar, depois se afasta, segura nos meus ombros e me diz, sério, que os parabéns não eram por eu ter atingido a outra borda, e sim por eu não ter desistido.
Ouvi variações desta mesma frase muitas vezes até a sua morte, mas acho que essa foi a primeira vez. Hoje acho que esse mantra não era dirigido a mim, e sim aos companheiros dele que tinham, de um jeito ou de outro, desistido. Ele nunca baixou o tom – foi rompendo, um a um, com todos os que mudaram de partido, defenderam alianças, decidiram mudar para um sítio ou seguir carreira em alguma empresa. No final, era só ele e o Djalma planejando a revolução entre as folhas caídas no quintal da casa da Lapa.
Hoje vejo que esse mote me fez perder muito tempo com coisas em que eu era medíocre e precisava me esforçar muito para dominar. O violoncelo, o vôlei, a engenharia. O casamento com o Pedro. Foi só quando o Pedro saiu da minha casa que senti raiva do meu pai. Hoje sei que desistir também exige coragem, mas acho que ele nunca soube.
Não me lembro tão bem do resto desta viagem. No dia seguinte, minha mãe chegou e ocupou todos os espaços, como sempre fazia. Me ensinou a fazer tricô, me obrigou a levar o roupão todas as vezes que eu desci para a piscina, nos levou para comer fondue e para andar a cavalo e ficamos todos com as coxas doloridas por dias. Fomos ao festival de inverno e desta vez foi ela que chorou ouvindo Bach ou Beethoven.
Talvez me lembre daquele dia por ter sido a única vez que vi meu pai chorar, ou porque foi um dos poucos dias que passamos sozinhos. Minha mãe tinha tido que atender algum paciente no que seria o primeiro dia de nossas férias e, como o hotel já estava reservado, fomos eu e ele na frente. Não sei por que meu irmão não estava.
Lembro também que o ônibus tinha cheiro de Cheetos e Bom-Ar. Quando começaram as curvas, fiquei enjoada e ele comprou um coca-cola para mim na primeira parada – outro fato extraordinário que acho que nunca mais se repetiu. Depois adormeci e acordei numa outra parada com o barulho do motor sendo ligado. A cadeira do meu lado estava vazia. Me angustiei, achando que o ônibus ia embora e meu pai ia ficar para trás. Corri até a dianteira para avisar o motorista, que só resmungou alguma coisa e continuou com as mãos na direção, olhando pelo retrovisor. Eu não sabia se descia para procurar o meu pai ou enfiava a mão por baixo daquele volante enorme para desligar o motor. Não sei se cheguei a chorar, mas tive vontade. Nem precisei sair: no que desci os primeiros degraus, vi meu pai fumando ao lado da porta.
Depois disso, fizemos muitas outras viagens, de carro, avião, até de trem uma ou duas vezes, mas sempre junto com a minha mãe ou com meu irmão ou os dois. A tarefa de vigiá-lo nunca mais ficou para mim. Minha única obrigação era olhar para fora, sempre, e não trocar jamais a oportunidade única de ver aquela paisagem única por um gibi ou uma briga com o Rafa no banco de trás.
“Quantas vezes na vida você acha que vai ver essas quaresmeiras enquanto esses passarinhos – estes passarinhos exatamente – voam na direção da praia e esse homem vende banana no acostamento?”, ele dizia em meio à fumaça do cigarro enquanto descíamos a serra. “Já pensou que nunca mais vai ver essa cidade de pedra com essa lua crescente ali em cima?”, na França indo visitar a Dominique. “Esse horizonte sem fim?”, no meio do oceano enquanto eu vomitava.
Penso nele agora enquanto olho pela janela e vejo pela única vez uma estrada, um fio de terra que corta um campo verde-escuro e termina numa casinha iluminada, e enquanto perco a casinha de vista quando mergulhamos nas nuvens, e quando saímos do outro lado na luz do fim do dia - uma luz que faz parecer metálica a superfície de um lago, e depois outro, e outro. A umidade entre o vidro de dentro e o de fora desenha um pico do Jaraguá sem antenas na parte de baixo da janelinha. Penso nele ainda enquanto uma voz gravada, claramente dirigida aos passageiros de outra classe, nos manda devolver toalhas e guardanapos inexistentes para a comissária de bordo, e enquanto lembro da manada de antílopes que passou por mim ontem quando lanchávamos sobre uma toalha xadrez na savana. Antílopes, não: impalas, me ensinou o guia masai. Elas correm e correm e correm e não param por nada. Saltam por cima do que vier pela frente – arbustos, pessoas, outros bichos. São capazes de pular até três metros de altura e dez metros de distância e continuar correndo a quase cem quilômetros por hora, ele disse. Mas, enquanto ele falava e eu tentava empurrar aquele sanduíche com a coca-cola quente, elas passavam por nós tranquilas.