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2023-09-05

Conto inédito 

 

O nome Heitor na pasta suspensa me faz atrasar a entrega do imposto de renda. Não era para estar lá e nem era a pasta do inventário dele. Dentro acho um cartão branco com letra miúda, a lápis. Não sei como ele escrevia tão reto, mesmo sem pauta. As linhas não têm aquela base de traço igual, de quem usa a régua por baixo e deixa a letra brega. Ele nunca foi brega.

Um dia Heitor esteve ali. O punho encostou no cartão e os dedos guiaram o lápis da esquerda para direita. Subiam, desciam e faziam curvas. E outro dia ele tinha dito: cada traço, mancha ou cicatriz é o registro de um movimento. Concordei, é como falar: passei por aqui, por aqui também. Como xixi no muro, obra de arte ou as migalhas na floresta.

 

Você vai fazer um podcast e é só por desespero: o ano virou e seu livro ainda não tem editora. Você quase não tem vida on-line. Quem é que compra livros de quem não existe. Você adora um podcast estrangeiro de contos lidos em voz alta. Tem te acompanhado nos últimos meses, remete ao Disquinho, às histórias, ao um dois três, sacos de farinha da música que fazia você marchar pela sala. Você sai toda formiguinha trabalhando para viabilizar o podcast e, taí, as palavras de negócios reaparecem: viabilizar, disponibilizar, usuário, justo a vida que quer esquecer. Não que não tenha sido feliz, mas sua cota de formiga já deu.

 

A gente mal tinha começado a namorar e eu viajei. Heitor escreveu quase todas as semanas para que eu não esquecesse dele. E eu respondia. Pena que correspondência era um jogo lento, como o tênis. Demorava mais de duas semanas para saber se a bola tinha quicado no lugar certo.

Fui passar mais de meio ano no estrangeiro. Não, eu não dizia assim, falava morar fora. O pai dele é que dizia no Estrangeiro, como se fosse um lugar. A ligação era cara e eu não sabia que podia alugar uma linha. No Brasil a gente ia para a telefônica quando queria ligar pra casa. O pai dele quase foi à falência com as minhas chamadas a cobrar (só devolvi a grana depois de voltar).

 

Você tem uma amiga que escreve, o livro dela é legal. O primeiro estourou, este pode ser mais bem trabalhado na mídia. Ela topa fazer o piloto do podcast. O livro é a quatro mãos, com o filho dela. Contos de etnias diferentes. Ela passa dois contos para eu escolher um. A escolha não vai ser só pela trama, depende da duração, quantos minutos um ouvinte brasileiro aguenta uma pessoa lendo um livro? Ligo o gravador e leio em voz alta o conto que não conheço, para também medir o tempo. Envolve antas e mulheres insatisfeitas com o tamanho do pau do marido, o tipo da sacanagem ingênua de uma tribo perto da Bolívia. Um personagem cutuca o outro: quando a mulher quer comer carne de anta, é que não aguenta mais o pau pequeno do marido e sente falta de um pau grande para fazer sexo.

Você está lendo justo isso e escuta o barulho atrás da porta. É o vizinho, deve ser, vai logo entrar na casa dele, nem vai ouvir. Você não quer parar, vai estragar a gravação. O barulhinho acontece de novo. Ué, não entrou. Que escute, azar dele. Você esquece que tinha pedido ao porteiro para levar umas caixas para o forro falso do corredor. Tinha marcado aquela noite e não sabia que o seu marido ia ter de sair. Se dá conta, quando termina a leitura, de que já passou do horário combinado e chama o moço pelo interfone. O senhor veio aqui antes? Não, não, estou chegando agora. Tá na cara que é mentira.

Você mostra as caixas depressa, para fazer o incômodo desaparecer. Sabe que ele escutou um monte. Ele sabe o que escutou. O moço está saindo e você diz, vou voltar ao trabalho. Tá na cara que é mentira, e agora é ele que pensa. Ou pior, acha que eu trabalho é com sacanagem. Você morre de vergonha e qualquer coisinha te lembra do azar de ter acontecido uma coisa besta daquelas. Vai negando e também admitindo o seu descuido. Mas custava ele ter tocado a campainha logo de cara?

 

Viro o cartão antes de ler. Não é só uma carta, é o verso de uma foto. Heitorzinho faz efe com a boca, aperta o punho e se inclina para o bolo. A foto não precisa de data. As pistas estão ali: a vela do bolo tem o número dois, a mesa tem garrafas de guaraná caçula que vestem touca e avental listrados. Ele só alcança o bolo em pé na cadeira. A mãe e o pai se inclinam junto, ela de cintura fina, ele jovem.

 

Você faz ioga no mesmo quarteirão em que mora. A fala final do instrutor é sobre desejo, ele parece te encarar. Você escuta e até pensa no livro sem editora. Até aí tudo bem. Tem muito do papo budista de sofrimento que vem do desejo, de desejar o que não tem. Mas o cara termina te olhando, com “e saiba sempre o nome do seu porteiro, porque a rádio peão corre solta”. Aí você lembra, o vigia do balé ao lado te cumprimentou estranho outro dia. Seu porteiro da noite é bonzinho, mas um puta fofoqueiro, conta qualquer coisa pra ficar de amigo com os outros. Foi dele que ouviu que uma vizinha é comuna e a outra tem um filho que não bate bem.

Tudo o que a gente diz na sala se escuta no hall do elevador. Ele podia estar com o celular, gravando atrás da porta. Afasto essa ideia, depois penso na minha fotinho de WhatsApp ilustrando um áudio sacana, quem lê sou eu, e esse áudio é complementado pela narrativa do porteiro, que diz: verdade, eu estava lá. Ele acha que eu quero alguma coisa com ele. E agora você virou personagem de soft porn (ou hard, socorro). Ele não teria ido tão longe. Será?

 

Leio a carta de novo. A data entrega que Heitor estava com medo, eu é que não tinha percebido.  Faltavam duas semanas para eu voltar, acho que nem teria dado tempo de receber. Talvez ele tenha me entregado em pessoa, não lembro. O menino da foto foi a promessa não dita de filhos. E eles vieram, a gente ficou junto até o fim da vida dele. Só que eu não sabia se queria ficar com Heitor até o primeiro beijo da volta, no aeroporto. Não tinha falado assim explícito, não sei se te quero, mas nas cartas devo ter deixado transparecer.

Isso agora dá culpa, do mesmo jeito que dá culpa pensar no Heitor agora. O Jan viajou. É só o Jan viajar que o Heitor invade, mesmo não tendo sido quem colocou a foto na pasta para que eu achasse no dia do imposto. O CPF do Heitor acabou faz tempo (e doeu o dia em que me dei conta disso). O cadastro de qualquer pessoa física vai ser extinto um dia. Mesmo assim, o Jan abre um vácuo e o Heitor toma conta. Logo agora que quase me acostumei, logo agora que faz tempo, logo agora que eu e o Jan ficamos juntos de vez.

 

Você passa meses evitando os funcionários do prédio e para de ser simpática no bom dia. Percebe o sorrisinho dos vigias da rua, o problema tomou conta do quarteirão. Pensa em mostrar ao porteiro o livro de onde tirou o conto e comentar que não conhecia aquela história, mas sabe que cada explicação vai te enrolar mais. Você acaba escrevendo este texto por algum motivo terapêutico particular. Até pensa em mostrar o que escreveu para o porteiro. Era só literatura, é o que vai explicar. Secretamente espera que ele conclua que homem é bicho bobo. Você desiste, não adianta, qualquer movimento só piora, e então questiona a validade de jogar energia num podcast em vez de escrever. E ao contrário do que esperava quando começou este texto, nem ter escrito te fez esquecer.



Angela Marsiaj

É jornalista, foi pesquisadora e consultora e hoje se dedica à literatura. Foi finalista dos prêmios Kindle de contos, com Encontro Lisboeta, e SESC São Paulo, com Rui Rosco, romance que teve um trecho publicado na Revista Pessoa. Durante a pandemia falou de leitura e lançamentos na Rádio Cultura FM-SP, tendo entrevistado diversos autores. É mestre em Formação do Escritor pelo ISE Vera Cruz e fez Comunicação Social na USP. Trabalhou na Folha de S.Paulo e Abril, entre outros. Nasceu em Porto Alegre e cresceu em São Paulo.




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