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Para nao chatear maridos

Foto: Karsten Winegeart



2023-09-04

 

Meu cão começou a tomar fluoxetina. Muito estresse em casa. Dizem que a fluoxetina é boa para TPM. Perguntei à veterinária se poderia tomar também. Ela riu, não sei porquê. Meu assunto é tão sério quanto o do cão que tenta me morder, o safado. Tá que ele é muito sensível. Eu também, porra.
Marquei psiquiatra, o de humanos. Foi a segunda vez. A primeira correu mal, mas não quero falar sobre o assunto.
Quero o mesmo tratamento do meu cão, eu disse. O psiquiatra de gente levantou as sobrancelhas e nesse momento me dei conta. Merda. Marquei de novo com um homem, não aprendo nunca, e já comecei fazendo piadinha perigosa, que inferno. Se eu já teria poucas chances de ser compreendida por uma mulher assimilada, que dirá por um homem, que se apressou em empunhar a caneta.
Tive medo. Vai que ele me interna, não sei como são essas coisas aqui nesse país. Brincadeira, disse, mexendo nos cabelos e cruzando as pernas. É que meu marido vem reclamando que ando muito mal-humorada e deve ser a minha TPM que me faz querer morder as pessoas, quer dizer, me irritar com as pessoas, mas nunca ataquei ninguém, não senhor. Merda.
Silêncio. A velha tática de não interferir. Ajeitei a saia, estiquei um pouco as costas. Não ia levar uma canetada sem o mínimo de dignidade.
Então quero ficar mais calminha e boazinha que é para dar exemplo ao meu cão, coitado, tão tenso. Diz a veterinária que está viciado em estresse, quimicamente viciado nele. Que horror, não, doutor? Deus me livre de ficar assim também, a vida é tão boa e justa comigo.
Desde quando você se sente assim, ele perguntou, usando aquele tom de voz macio de quem quer parecer muito cool. Filho da puta, vai me mandar para a carrocinha, quer fazer sabão de mim esse cara. Desde que me conheço por gente, querido, porque nasci mulher e se mulher reclama de alguma coisa tipo o lixo tá cheio é porque é bruaca mal amada, pensei, mas o que saiu da minha boca precavida foi, num tom de voz muito ingênuo: “há uns quinze dias”. Mais de duas semanas assim, eu já sabia, era histeria na certa e eu detesto Valium, fico grogue e deprimida depois.
O médico latiu algumas coisas que não fiz questão de escutar. Não perguntou mais nada, porque ele tinha a habilidade genial de entender uma pessoa em quinze minutos. Explicou muitas coisas com a didática de quem alfabetiza cães, e eu ia fazendo cara de que ele era tão, mas tão incrível no que fazia, que alívio estar nas suas mãos de treinador. Agradeci muito por ele ter me explicado o que é ser mulher e não poder morder ninguém, foi muito esclarecedor mesmo, obrigada. 
A partir de agora, quando eu quiser mandar alguém à merda, posso pegar pequenos biscoitinhos de treinamento, enrolá-los num pano fazendo uma minhoca comprida e dar nela um ou dois nós, depende do tempo que eu levar depois para conseguir abri-los só com a boca. Isso ajuda a reduzir a ansiedade, ocupa e não chateia maridos. Agradeci com um sorriso e mãos entrelaçadas nos joelhos. Fluoxetina de cães é mastigável, deve ter gosto bom, ao menos a peste adora, come puro, como se fosse biscoito, espera por ele abanando o rabo, o desgraçado. O cheiro é bom. Ninguém vai perceber. Muito menos o marido, quando o humor melhorar.



Carla Mühlhaus

Jornalista e escritora nascida no Rio de Janeiro. Já foi ghostwriter, mas nunca gostou do termo. Fantasmas não existem e costumam ser invisíveis. Hoje é escritora viva, autora de Nos vemos em Marduk (Patuá) e À sua espera (Dublinense), entre outros. Reside atualmente em Portugal. 




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