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Como não morrer

DESENHOS: FRANZ KAFKA



2023-08-11

A maioria dos que falaram de Kafka definiram sua obra, de fato, como um grito desesperado que deixa o homem sem recurso nenhum. Mas isso exige uma revisão. Há esperanças e esperanças.

Albert Camus

 

Por ocasião dos 99 anos da morte de Kafka e dos 140 anos do seu nascimento, completados em 3 de junho e 3 de julho últimos, publiquei nos meses passados duas crônicas sobre sua vida e sua obra. Para dar forma a uma trilogia, volto ao autor ainda neste mês, desta vez tendo em vista um tema espinhoso, sobre o qual Kafka parece ter algo de particular a dizer: o suicídio. Que saibamos, na investigação do absurdo da morte deliberada, decupar o sonho de um sentido para a vida.

***

 Kafka pensava em suicídio. Se não em efetivamente cometê-lo, ao menos como uma hipótese que se oferecia ao exercício intelectual. Algumas entradas do seu diário o demonstram, sobretudo as relacionadas à sua vida sexual e amorosa.

Um exemplo é a entrada de 15 de outubro de 1914, em que o escritor retoma de memória uma carta escrita no contexto de suas dúvidas sobre a pertinência de seu relacionamento com Felice Bauer. Nessa época, Kafka já não sabia mais se a amava, pelo que dão conta as suas anotações.

Na carta, destinada a outrem, o escritor havia falado dos intranquilos “pensamentos que entretinha ao ir me deitar esta noite, por volta das três horas da manhã”. Um desses pensamentos era o suicídio, conforme ele registrou em uma nota anexada, no diário, à reprodução da carta.

Antes, em 4 de dezembro de 1913, Kafka já havia anotado o seguinte: “Para quem vê de fora, é terrível morrer já adulto mas ainda jovem, ou então se matar, partir num estado de grande confusão, uma confusão que, no bojo de um ulterior desenvolvimento, ganharia sentido, ir-se desesperançado ou tendo apenas a esperança de que sua presença nesta vida venha a ser desconsiderada no grande cômputo geral das coisas. É nessa situação que eu estaria agora. Morrer nada significaria senão entregar um nada ao nada, mas isso seria impossível ao sentimento, pois como poderia alguém, na condição de mero nada, entregar-se com consciência ao nada, e não apenas a um nada vazio, mas a um nada ruidoso, cuja nulidade consiste apenas em ser ele inapreensível?” Como se pode notar, Kafka investiga o suicídio à luz de um dos grandes dilemas que ele também investigaria em sua obra, o dilema da dupla nulificação: se ele de fato considerava a sua vida uma equação cujo resultado apresentava-se como uma nulificação, o que poderia a morte acrescentar ou subtrair, senão nada?

Na esteira desses pensamentos paradoxais, seus diários registram em 14 de fevereiro de 1914: “Se eu me matasse, por certo não seria culpa de ninguém, ainda que o motivo mais próximo e óbvio fosse, digamos, o comportamento de F[elice]. Já imaginei a cena uma vez, enquanto cochilava; como seria se, antevendo o fim, a carta de despedida no bolso, chegasse à casa dela, fosse repelido como pretendente, depusesse a carta sobre a mesa, caminhasse até a sacada, me livrasse de todos que correriam a me deter e saltasse do parapeito, soltando uma mão e, depois, a outra. Na carta, estaria escrito que eu saltava lá para baixo por causa de F., mas que, ainda que meu pedido de casamento tivesse sido aceito, nada de essencial teria mudado para mim. Meu lugar é lá embaixo, não encontro nenhuma outra solução; F. é apenas aquela com cujo auxílio, por acaso, meu destino se manifesta, não sou capaz de viver sem ela e tenho de pular, mas tampouco seria capaz de viver com ela — e F. pressente isso. Por que não me valer da noite de hoje para tanto?” Curiosamente, após a provocação, Kafka justapõe de pronto a sua refutação: “Já me aparecem os oradores da reunião dos pais de hoje à noite, falando da vida e da criação de condições para ela — mas me atenho à imaginação, vivo assaz enredado na vida, não vou me matar, estou completamente impassível, triste com a camisa que me aperta o pescoço, estou condenado, busco o ar da neblina.”

É interessante notar como, nas notas de Kafka, o suicídio surge, em uma face, como uma performance capaz de pôr em cena o destino literário, e na outra (duas faces, uma só moeda) apenas como uma delimitada especulação imaginativa, isto é, o sonho lúcido em que se frui a hipótese de modo a não precisar vivê-la na completude das suas consequências reais.

Tudo isso nos faz ver que, em Kafka, o tema do suicídio era fruído como uma elucubração romântica: uma espécie de estudo intelectual, e em certa medida coquete, revirado no âmago da adolescência sentimental de um escritor para todos os efeitos antirromântico — em suma, uma experiência do campo da suspensão voluntária da descrença que todos nós somos capazes de experimentar não apenas lendo literatura, mas também simplesmente imaginando. (Kafka escreve: “Já imaginei a cena uma vez, enquanto cochilava”. Note-se como o suicídio é tematizado no âmbito da fruição especulativa, ao invés de no âmbito de um programa de realização; note-se como Kafka trata e aproxima suicídio e vida com a mesma naturalidade com que aproxima guerra e natação, na mais famosa frase dos seus diários).

No dia seguinte, 15 de fevereiro de 1914, o diário ainda traz esta anotação, em que Kafka, após enfileirar uma série de atividades cotidianas, volta ao tema do próprio passamento: “Em retrospecto, como me parecem longos este sábado e este domingo. Ontem à tarde, fui cortar os cabelos; [...] depois, no caminho de volta, queixas de Max sobre meu mutismo; depois, a vontade de me suicidar [...]. Até as dez na cama, sem dormir, sofrimento e mais sofrimento. Carta nenhuma, nem aqui nem no escritório [...]”. Em sua banalidade comezinha, o contexto da nota ajuda a clarear o caráter de elucubração ficcional dessa especulação suicida: Kafka havia recebido um cartão de Felice Bauer no escritório e enviado, imediatamente, uma carta em resposta, para a qual (oh, céus!) ainda não havia recebido a aguardada tréplica.

***

No grande ensaio que escreveu sobre o tema do suicídio, a rigor um libelo em defesa da vida, Camus concluiu: “É preciso imaginar Sísifo feliz.” Camus afirmava que é preciso imaginar o homem, mesmo em face do absurdo da existência, mesmo em face da sua incontornável sina labiríntica, repetitiva, insuperável, incognoscível, fadada ao fracasso; que, ainda assim, era preciso imaginar esse homem feliz, fruindo o seu absurdo particular. É lembrando de Camus que escrevo, neste mês de agosto, a respeito do modo como o suicídio ressoa na obra e nas notas de Kafka, de certa forma contrapondo-me ao senso comum que evoca este como o mês do desgosto. Pois, sim, é preciso imaginar Sísifo feliz — feliz e fruindo ficcionalmente, como uma espécie de piada absurda, o seu incontornável fado silencioso.

Albert Camus soube notar a esperança que desponta em meio aos escritos de Kafka, normalmente lidos como pessimistas. Para ele, a literatura de Kafka sempre foi a literatura do “remédio sutil que nos faz amar o que nos esmaga e faz nascer a esperança num mundo sem saída”. Pontifica Camus: “Quanto mais trágica é a condição evocada por Kafka, mais rígida e provocante torna-se essa esperança.” Em suas elucubrações sobre o tema, Camus ainda diz: “O homem se ocupa então da esperança. Mas este não é o seu problema. Seu problema é evitar o subterfúgio. E é ele que encontro ao final do veemente processo a que Kafka quer submeter o universo inteiro. Seu incrível veredicto absolve, por fim, este mundo terrível e transtornado onde as próprias toupeiras fazem questão de esperar.”

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Questão de esperar.

A anotação mais grave sobre o suicídio surge nos diários de Kafka em 18 de janeiro de 1922. Ali ele registra a ideia de que a felicidade nunca poderia ser fruto da coragem, senão de um “destemor sereno”, tendo como inspiração para essa conclusão o fato de que os únicos dois colegas de classe que ele considerara corajosos se mataram a bala de revólver, ainda no tempo do ginásio. Ambos eram judeus.

Ainda nesse caso, a evocação do suicídio é feita não com o intuito de lhe investigar as eventuais razões profundas (como, possivelmente, o contexto judaico em face de um mundo cada vez mais antissemita), mas como mero recurso para que Kafka possa sopesar as razões ordinárias do seu suicídio especulado, isto é, os seus dilemas relacionados ao sexo e ao relacionamento amoroso. “O s[exo]., por exemplo, é coisa que urge, que me atormenta dia e noite [...]”,anota o escritor logo em seguida à evocação dos dois amigos, investindo daí em diante na investigação do seu sofrido desejo.

***

Se o motivo amoroso (e a incapacidade que se revela no indivíduo para atender satisfatoriamente a todas as demandas humanas – próprias e alheias – que daí insurgem) é o ponto de partida para boa parte das conjecturas suicidas contidas nos diários de Kafka, o mesmo tema reverbera, na literatura do autor, como mote para o autoextermínio, reiterando um ponto.

Em verdade, o assunto até aparece em O processo numa outra chave, quando, ao considerar o ponto de vista dos guardas que o avisam da sua detenção, Josef K. se espanta com o fato de eles terem permitido que ele ficasse por um momento sozinho no quarto, “onde sem dúvida tinha dezenas de possibilidades de se matar” (ao mesmo tempo, considerando o seu próprio ponto de vista, K. em seguida se perguntaria, via narrador, “que motivo poderia ter para fazer isso”, e responderia: “Acaso porque os dois estavam sentados na sala ao lado e haviam interceptado o seu café da manhã? Seria tão sem sentido se matar que, mesmo que desejasse fazê-lo, não seria capaz, por causa dessa falta de sentido”). De igual modo, o tema também surge en passant em um dos momentos mais tristes de O castelo. No capítulo 23, um secretário do castelo chamado Bürgel faz a K. uma palestra em que, de forma indireta, alude à ideia de ele, como secretário, ter o poder de dar uma solução para o insuperável impasse de K. junto ao castelo; no entanto, justamente neste momento, K. dorme, esgotado de cansaço, e não ouve em plena consciência o discurso sobre a sua possibilidade de salvação. Nesse contexto, Bürgel então diz de passagem: “Como a felicidade pode ser suicida.” Contudo, a melhor aparição do tema se dá mesmo no conto Uma mulher pequena, escrito na Berlim de 1923. Nele, Kafka diz: “A insatisfação dela comigo, como agora eu entendo, é uma questão de princípio; nada pode suplantá-la, nem mesmo a supressão da minha pessoa; a notícia do meu suicídio, por exemplo, provocaria nela acessos de fúria sem limites. Ora, não posso imaginar que uma mulher tão aguda não enxergue tão bem como eu tanto a falta de perspectiva dos seus esforços quanto a minha inocência e a minha incapacidade para corresponder, mesmo com a melhor das vontades, às suas exigências.”

Vida e literatura, literatura e vida: é a dualidade que se instaura em Kafka, até mesmo quando aquilo de que ele supostamente trata é da morte na não ficção. Esse é o modo como Kafka nos ensina a não morrer: permitindo-nos fruir, desde as vicissitudes do amor, diariamente a morte.



Ewerton Martins Ribeiro

Funcionário público federal, é mestre em literatura brasileira e doutor em teoria da literatura pela UFMG, universidade em que atua como jornalista. Publicou a novela A Grande Marcha (editoras Circuito e e-galáxia, 2014 e 2015). Nasceu em 1981 em Belo Horizonte, Minas Gerais, no Brasil, onde vive. (Foto: Foca Lisboa.)




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