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Efeito Ernaux, por Luisa Espindula e Taís Bravo

ETIENNE GIRARDET



2023-08-05

Salvar alguma coisa deste tempo

Luisa Espindula e Taís Bravo

 

A memória nunca se interrompe. Ela equipara mortos e vivos, pessoas reais e imaginárias, sonho e história.

Annie Ernaux, Os anos

 

 

Esse texto é escrito por duas pesquisadoras do doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da Puc-Rio, Luisa Espindula e Taís Bravo. Luisa Espindula é artista de teatro e no campo da literatura pesquisa diários de escritoras; ministra a oficina “a caneta fareja o rastro”, em que trata dos diários de Carolina Maria de Jesus, Susan Sontag, Sylvia Plath, Virginia Woolf e das cartas de Françoise Ega. Cofundadora da iniciativa Mulheres que Escrevem, Taís Bravo pesquisa a elaboração de arquivos e memórias na poesia brasileira contemporânea, é escritora e desde 2018 realiza oficinas de escrita criativa.

 

Quando começamos a conversar sobre a ideia de escrevermos juntas para esta coluna, logo nos deparamos com um ponto em comum em nossas trajetórias como pesquisadoras e artistas: O impulso mobilizador das escritas em primeira pessoa, um impulso que Ana Cristina César entende como central no próprio ato de escrever:

 

O impulso básico de você escrever é mobilizar alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém. Se você escreve uma carta, sabe. Se escreve um diário, você sabe menos. Se você escreve literatura, o impulso de mobilizar alguém - a gente podia chamar de o outro - continua, persiste, mas você não sabe direito [...] A gente não sabe direito para quem escreve. Mas existe, por trás do que a gente escreve, o desejo do encontro ou o desejo de mobilização do outro.

 

Se a escrita nasce de um desejo de mobilizar um outro cuja identidade permanece desconhecida para quem escreve, pode-se dizer que, ao escrever, inventamos, então, um destinatário ou uma destinatária cuja existência só se torna viável através desse gesto de endereçamento como um salto no escuro?

 

Essa questão aparece como um caminho para pensar a escrita de Ernaux e o efeito que ela provoca em suas leitoras e leitores que, ao entrar em contato com suas memórias, são mobilizados a ponto de desejarem também se lançar a esse mesmo impulso de escrever em direção a um outro que ainda não se conhece.

 

O efeito Ernaux, como a Febre Ferrante que contaminou uma série de leitoras há alguns anos com a publicação da tetralogia napolitana de Elena Ferrante, é uma espécie de contágio que se espalha entre mulheres de diferentes faixas etárias e contextos sociais. Mulheres que encontram nesses livros escritos em primeira pessoa vestígios de histórias que carregavam silenciadas dentro de si mesmas. Histórias que, quando verbalizadas e publicadas, transformam a própria possibilidade dessas pessoas de nomear seus afetos. De repente, temas que não eram sequer considerados - e se eram permaneciam confinados em uma linguagem restrita -, como o aborto e a violência de gênero, mas também o desejo, as paixões, o sexo, podem ser enunciados e compartilhados.

 

De algum modo, Ernaux, ao escrever, desperta em suas leitoras uma voz que existia ainda sem espaço no campo simbólico e, assim, impulsiona uma série de novos enunciados que começam a vir à público. Talvez porque o impulso mobilizador da escrita de Ernaux, em sua projeção de um outro desconhecido, produza uma alteridade que há muito tempo ansiava para ser ouvida, nomeada e compartilhada.

 

É compreensível que o efeito dessa leitura seja uma espécie de comichão. Mobilizadas pelo efeito da leitura de Annie Ernaux essas mulheres se veem compelidas a adentrar esse caminho simbólico e inventar uma linguagem para escrever sobre suas próprias histórias. Mais ainda, essas mulheres se sentem autorizadas a nomear essas coisas que escrevem enquanto “literatura” e, assim, transformam os próprios termos em que se circunscreve esse campo artístico e seus espaços de legitimação. Pensando sobre esse efeito, resolvemos escrever nesse ensaio sobre duas autoras mobilizadas pela escrita de Annie Ernaux: Flávia Péret e Colombe Schneck.

 

Em um texto publicado em seu perfil no Instagram[1], a escritora mineira Flávia Péret diz que o principal motivo por se identificar tanto com a literatura de Annie Ernaux é porque ela afirma não escrever ficção. Há nessa frase uma escolha verbal importante, afinal a recusa à ficção vem como um gesto afirmativo. Afirmar que não escreve ficção é delimitar a possibilidade de que a literatura também se dê em uma escrita em primeira pessoa, na qual as personagens não são inventadas, ainda que sejam também resultado de um esforço imaginativo e criativo na medida em que acontecimentos reais são transmutados em linguagem. Péret se filia à Ernaux a partir da escolha pela escrita em primeira pessoa, contando que, por muito tempo, se questionava se era mesmo uma escritora, já que não era capaz de escrever ficção. Em resposta a essas dúvidas, Péret defende o trabalho de uma escrita que, como a de Ernaux, usa a própria vida como seu material:

 

Nunca consegui criar uma personagem que se chama Joana. Minhas personagens se chamam Flávia Helena e nasceram em Ouro Preto/Mariana. O que não significa que o que escrevo não seja pesadamente inventado, trabalhado, transfigurado, lapidado e também brutalizado para caber na única coisa que me interessa: encontrar as palavras certas, o ritmo certo. Ė isso que faz de uma pessoa escritora: querer escrever, desejar ardentemente e inconscientemente escrever e escrever.

 

Anos 90[2] tem como epígrafe a frase de abertura de “Os anos” de Annie Ernaux Todas as imagens do mundo vão desaparecer. Nessa publicação digital disponível no Instagram da editora Ficticia, Flávia Péret usa uma escrita fragmentada e em primeira pessoa para compor um retrato de uma família nuclear mineira vivendo em Minas Gerais nos anos 90. Cada um dos sete pequenos blocos de textos que compõem o livro fabrica a imagem de um tempo que já desapareceu. Os personagens, além da autora, são o pai, a mãe e os irmãos, sendo o pai a figura mais central, como um eixo a partir do qual os outros membros se vinculam. Apesar da referência ao “Os anos”, a publicação de Péret também dialoga diretamente com “O lugar”, livro no qual Ernaux busca uma forma para contar a história de seu pai.

 

Busco a figura do meu pai na maneira como as pessoas se sentem e se entediam nas salas de espera, como falam com seus filhos, como se despedem uma das outras nas plataformas de trem. Encontrei em pessoas anônimas vistas não sei onde, que trazem, mesmo sem saber, traços de força ou de humilhação, a realidade esquecida de sua condição.

 

Em “O lugar”, o tema não se separa nunca da forma. Para contar a memória de seu pai, mais ainda para contar sobre a distância que a separa de seu pai, Ernaux se pergunta sobre como contar e escolhe uma linguagem que chama de uma “escrita neutra”, a mesma escrita que eu usava em outros tempos nas cartas que enviava aos meus pais contando as novidades. Essa escrita supostamente neutra faz escolhas rigorosas. O que essa escrita que recusa o “poético” e o “comovente” conta é a materialidade. O modo como escolhe descrever fotografias, o trabalho de seus pais, as roupas que usam, o que comem, os barulhos que fazem parte de sua rotina, suas angústias e seus prazeres. Cada palavra escolhida por Ernaux tem seu propósito, a linguagem, inclusive, é um campo de disputa, é uma questão de classe. As palavras que a separam de seu pai, as palavras que seu pai precisava fazer esforço para dizer.

 

Em “Anos 90”, Flávia Péret executa esse mesmo trabalho de investigação em busca de uma linguagem para contar memórias familiares. Aqui a palavra também tem como efeito um olhar incontornável para materialidade, revelando a partir de objetos cotidianos, como telefones e utensílios de cozinha, a classe social a qual essa família pertence e como essa condição financeira se espreita em seus afetos. O livro é curto mas cabe nele toda a atmosfera de uma dinâmica familiar circunscrita por um imaginário político, o Brasil durante os anos 1990, como no último fragmento, “Alumínio”:

 

Durante 27 anos, meu pai trabalhou numa fábrica de alumínio. Antes de ser demitido, ele sempre chegava em casa com presentes que ganhava no trabalho. Uma frigideira de alumínio. Um chaveiro de alumínio. Um abridor de latas de alumínio. Um cinzeiro de alumínio. Uma forma de bolo de alumínio que o tempo arranhou.

 

A escolha por uma escrita que não tem medo de assumir uma forma fragmentada e um vocabulário simples talvez seja um dos aspectos que produz um impulso à escrita como um verdadeiro comichão. Como Ernaux, Flávia Péret também nos convoca a colocar em palavras nossos afetos íntimos, transformando essas memórias em matéria pública e, portanto, política. Através de um cuidado com as palavras, com o ritmo e o tamanho das frases, essas autoras produzem uma linguagem simples, quase crua, que torna a literatura, como uma prática de leitura e de escrita, uma possibilidade para todes.

 

Nas primeiras páginas de “Dezessete anos”, a francesa Colombe Schneck fala sobre o quanto atualmente, mesmo tendo sido legalizado, o aborto permanece à margem da literatura.

No ano 2000, quando Annie Ernaux publicou O acontecimento, relato de um aborto clandestino anterior à lei Veil, o livro teve pouca repercurssão. O relato incomoda. Um jornalista desfere: ‘Seu livro me dá náuseas.’

O aborto não é um belo tema literário.

É uma guerra que se atravessa, entre vida e morte, humilhação, vergonha e lamento.

 

A lei Veil diz respeito à legalização do aborto na França, que ocorreu na madrugada de 24 de novembro de 1974. A então Ministra da saúde, Simone Veil, coloca a questão em votação e faz um discurso que termina dizendo não fazer parte das pessoas que temem o futuro.

 

Dezessete anos é um livro francês de 2015, publicado pela Relicário Edições no Brasil em 2023, país em que ainda se teme o futuro. Schneck o escreve depois da leitura de “O acontecimento”, com o tal comichão: Senti como se Annie Ernaux se dirigisse a mim. Eu precisava contar o ocorrido naquela primavera de 1984. Os romances tratam dos abortos vividos pelas autoras.

 

Em outro romance, “Memória de filha”, livro não publicado no Brasil, Ernaux escreve sobre como é a ausência de sentido daquilo que se vive no momento em que é vivido que multiplica as possibilidades da escrita; há um porvir fundado nessas situações que guardam em si muita potência. E há, em termos de repertório, um vazio sobre alguns assuntos e alguns corpos. Nesse sentido, Ernaux talvez desperte este impulso primeiro quando o legitima: ter vivido uma experiência, não importa de qual natureza, dá o direito imprescritível de escrevê-la e segue o mobilizando, o convocando, percebendo que o silêncio só contribuiria para obscurecer a realidade das mulheres e acomodá-la.

 

Schneck conta que a passagem entre os dois estados parecia sempre elíptica. Na biblioteca, a ficha “Aborto” elencava apenas revistas científicas ou jurídicas que tratavam do tema pelo viés da criminalidade.

Nas primeiras páginas de “O acontecimento” Ernaux transcreve como constava no Novo Larousse Universal, edição de 1948, as punições de prisão e multa imputadas aos envolvidos em um aborto. No Brasil, a prática, vivida por uma média de uma a cada cinco mulheres até os quarenta anos[3], é considerada crime hediondo[4], a não ser em casos de gravidez procedente de estupro, feto anencéfalo ou gravidez que gere risco de vida à mãe - e risco, aqui, só considera aspectos físicos.

 

Da época de seu aborto, na agenda constam entradas como: Estou grávida. Que horror, outra, de quando recebeu de seu médico um agendamento: Parto de: Senhorita Annie Duchesne. Previsto para: 8 de julho de 1964. Vi o verão, o sol. Rasguei o documento.

 

Hélène Cixous usa o termo ginocídio, pra falar do genocídio simbólico da mulher ou daquilo que é relativo à mulher. Pensamos também em um processo de epistemicídio que mata as possibilidades de conhecimento daquilo que permanece não dito, e do muito que pode ser vivido para além do trauma quando se fala em um assunto como o aborto. São agenciamentos dessas forças que produzem falas como muitas, públicas, de intelectuais franceses quando Ernaux ganhou, no ano passado, o prêmio Nobel de Literatura. “Como é que uma mulher que só escrevia sobre si mesma podia ganhar o maior prêmio literário do mundo?” se perguntavam, ignorando questões como o fato de que livros como “O acontecimento” e “A vergonha” narram histórias que cabem à lei, inclusive. Histórias que estão tanto dentro de um espectro sociopolítico que poderiam ter gerado prisões. Talvez a pergunta seja uma forma sutil de repetir seu livro me dá náuseas, aquilo que é relativo à mulher dá náuseas.

 

Neste texto que pretende brevemente pensar a relação de contágio que a escrita de Ernaux causa em outras escritoras, mais uma hipótese que levantamos como motivo está naquilo que a autora chamou de autosociobiografia, algo como o gênero de sua escrita. Ernaux manteve diários e agendas por muitos anos e recorreu aos mesmos para escrever a maior parte de seus livros. Quando vai escrever “A vergonha”, vai ao jornal local procurar os arquivos do domingo de junho em que seu pai tentou matar sua mãe, inscrevendo a própria experiência em uma tessitura de tempo muito maior e despersonalizada. Tateando a própria individualidade e como se construiu a partir de seus contextos sociais, busca no que pode haver de aparato de memória fora de si algumas pistas para pensar em si e no mundo ao seu redor, naquele momento, fazendo com que a própria vida caiba nele, saindo do silêncio em que antes algumas destas vivências habitavam. O cruzamento dos diários - por definição mais clássica, o espaço da escrita mais subjetiva - encontrando o macropolítico em que se inserem. Inserindo essas vivências tão pouco nomeadas, tão abandonadas no vasto território da literatura

 

 

 

 

 

 

Referências bibliográficas

 

CÉSAR, Ana Cristina. Crítica e tradução. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

 

CIXOUS, Helene. O riso da medusa. Tradução: Natália Guerellus e Raísa França Bastos. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021

 

ERNAUX, Annie. A Vergonha. Tradução: Marilia Garcia. São Paulo: Fósforo, 2022.

 

ERNAUX, Annie. O acontecimento. Tradução: Isadora de Araújo Pontes. São Paulo: Fósforo, 2022

 

ERNAUX, Annie. O lugar. Tradução: Marilia Garcia. São Paulo: Fósforo, 2021

 

ERNAUX, Annie. Os anos. Tradução: Marilia Garcia. São Paulo: Fósforo, 2021

 

SCHNECK, Colombe. Dezessete anos. Tradução: Isadora Pontes e Laura Campos. Belo Horizonte: Relicário Edições, 2023

 


[1] Disponível em: https://www.instagram.com/p/CXhvE9itvnG/

[2] Disponível em: https://www.instagram.com/p/CsEgOBSr48g/?img_index=1

[3] Dados que constam na PNA (Pesquisa Nacional do Aborto) de 2016.

[4] “Hediondo é um adjetivo que qualifica o crime que, por sua natureza, causa repulsa. O crime hediondo é inafiançável e insuscetível de graça, indulto ou anistia, fiança e liberdade provisória.” no Portal online do Conselho Nacional do Ministério Público



Ana Kiffer

É Professora da Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, Cientista do Estado pela FAPERJ e Bolsista de Produtividade no CNPq. Curadora convidada da Bienal de SP 2021. É escritora, autora dos livros Tiráspola e Desaparecimentos, Editora Garupa, 2016, A punhalada, 7Letras, 2016, Todo Mar, Urutau, 2018; colunista da Revista Literária Pessoa, pesquisadora da obra do escritor francês Antonin Artaud, vem desenvolvendo há muitos anos uma investigação sobre os diversos modos de relação entre os corpos e a escrita. Autora do livro Antonin Artaud, EDUERJ, 2016, e com Gabriel Giorgi, Ódios Políticos e Politica do Ódio, RJ: Bazar do Tempo, 2019 e Las Vueltas del ódio, BA: Eterna Cadência, 2020. Organizadora do livro A Perda de Si – cartas de A. Artaud, Rocco, 2017; e das coletâneas: Sobre o Corpo, 7Letras, 2016, Expansões Contemporâneas: literatura e outras formas, com Florência Garramuno, UFMG, 2014, entre outros artigos e ensaios.  Foi curadora, em 2020, da exposição Corte/Relação dos cadernos de Antonin Artaud e de Édouard Glissant. Para a 34ª Bienal de São Paulo. Em 2021, estreou seu primeiro romance O Canto Dela, pela editora Patuá. Fotografada por Dani Neves.




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