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Efeito Ernaux, por Alexandre Gefen

ETIENNE GIRARDET



2023-07-22

Entrevista com Annie Ernaux: “Percebemos o político através do social”

Alexandre Gefen

 

Tradução de Gabriel Martins da Silva

Revisão de Ana Kiffer

 

Entrevista publicada originalmente em Gefen, Alexandre. La littérature est une affaire politique. Paris, Les Editions de l’Observatoire, 2022.

 

Nascida em 1940, oriunda de uma família modesta de pequenos comerciantes provincianos, Annie Ernaux foi professora no ensino secundário. Seus romances e relatos autobiográficos, incluindo Os anos, inspiram-se na sociologia para abordar a história política e cultural francesa do pós-guerra e questões feministas. Ela frequentemente se posicionou no debate político, seja para criticar Emmanuel Macron, apoiar Jean-Luc Mélenchon, defender a causa palestina ou as reivindicações dos Coletes Amarelos.

 

Qual foi o seu primeiro contato com a questão política? Você se lembra da primeira vez em que votou?

 

Fui confrontada com a política desde que adquiri consciência, por uma razão simples: nasci em 1940, na Normandia. Era época de guerra, com bombardeios mortais, e depois o armistício, com meu vestidinho azul, branco e vermelho para comemorar o evento. Lembro-me de ter acompanhado minha mãe, que estava votando pela primeira vez, para aquele lugar estranho fechado por uma cortina, parecido com o confessionário da igreja, a cabine de votação. Meus pais tinham um café-mercearia. O café, que fica ao lado da cozinha ― sem porta entre os dois ―, mantém essa imersão em questões políticas, evidentemente na forma de conversas de balcão, vindas principalmente dos trabalhadores que o frequentam. Minha infância e adolescência se desenrolam num discorrido sociopolítico, com greves de verão de 1953 contra Laniel, a queda de Dien Bien Phu e, é claro, a Guerra da Argélia, chamada de “os acontecimentos” [« les événements »]. Em 1958, tenho 18 anos e estou totalmente a favor do "sim" no referendo organizado por De Gaulle, mesmo que eu não possa votar, já que a maioridade cívica é aos 21 anos. Parece que minhas primeiras discussões sérias são desse verão, sobre a Quinta República desejada por De Gaulle. No ano seguinte, oponho-me a De Gaulle e defendo a independência da Argélia. Essa questão, essa guerra, com os atentados da OAS e o golpe dos generais, afetam meus primeiros anos na universidade, assim como todos os estudantes daquela época. Não vou esquecer a primeira vez que votei: em 28 de outubro de 1962, no referendo que modificou a Constituição, estabelecendo a eleição do presidente da República por sufrágio universal. Penso nisso a cada eleição presidencial, que confirma amargamente meu voto na época, o “não”. O que Mendès France, Mitterrand, Waldeck Rochet denunciaram naquela época ― ou seja, o fortalecimento do poder presidencial em detrimento do Parlamento ― realmente aconteceu.

 

Você cresceu em uma família, um ambiente onde a política estava no centro? Havia uma tradição de discussão e ativismo? Qual é o seu habitus político?

 

Na minha família, apenas um primo era filiado ao Partido Comunista. Meus pais não eram afiliados a nenhum partido, mas, além de seu voto como pequenos comerciantes em Poujade, em 1956, eles sempre votaram à esquerda e preferiram Mitterrand a De Gaulle em 1965. A lembrança das greves de 1936 e de Léon Blum era muito vívida. Esse Léon Blum que “era bom para os operários”. Essa formulação, frequentemente ouvida, juntamente com sua contraparte “ser para os abastados” (ricos), expressa e define a visão do mundo político em meu meio. Percebemos o político através do social.

Meu habitus político não era muito claro até os 16, 17 anos, porque eu frequentava uma escola particular católica, com meninas da “alta sociedade”, professores que criticavam a escola laica, "a escola sem Deus", os socialistas e os comunistas, enquanto em casa vivíamos de forma modesta, um pouco melhor do que os trabalhadores ― que meus pais foram. A leitura de As Vinhas da Ira aos 16 anos me abalou, como se fosse nesse lugar social, entre essas pessoas, que eu precisasse me posicionar. Há um habitus político específico do migrante de classe, dividido como sua situação. Mas, na aula de filosofia, foi fácil para mim ser convencida pelas análises marxistas da professora, e o primeiro livro que peguei na biblioteca rotativa que ela havia criado foi, lembro-me muito bem, La Vie quotidienne des familles ouvrières de Chombart de Lauwe. Ali eu encontrei todo o nosso habitus social, como ainda não se dizia na época.

Dito isso, eu me pergunto até que ponto não são as injunções, os julgamentos proferidos pelos pais no dia a dia, que criam as disposições políticas. Assim, o fato de ter ouvido minha mãe repetidamente reforçar meu sentimento de inferioridade em relação aos colegas de origem mais abastada com um “Você vale tanto quanto eles!” teve tanta, se não mais, importância do que qualquer discussão entre colegas.

 

Muitos de seus textos evocam a história política francesa, que visão de conjunto você tem dessas últimas décadas?

 

Estamos testemunhando uma progressiva direitização sem ruptura, apesar dos "momentos" de esquerda ― como a coabitação de Chirac com Jospin em 1997 ―, desde a virada liberal tomada pela presidência de Mitterrand em 1983. Não queríamos ver que Mitterrand, o homem de 1981 e de todas as leis de liberdade que surgiram em avalanche ― abolição da pena de morte, quinta semana de férias, etc. ―, nos ancorava firmemente no dogma da austeridade e da economia de mercado. É difícil renunciar a uma ilusão! Há uma data-chave para mim, o programa "Vive la crise", com Yves Montand, esse companheiro do Partido Comunista no papel de alguém que nos explica mais ou menos como devemos nos submeter à ordem econômica liberal. Ao mesmo tempo, houve um apagamento do social, o povo se tornou um fantasma da política, exceto durante as eleições presidenciais. Está claro que esse afastamento da vida das pessoas, esse abandono atribuído tanto ao Partido Socialista quanto à direita, levou parte dos eleitores para o Front national, cuja presença cada vez mais forte na paisagem é um dos principais aspectos dessas décadas. Este impôs seus temas, imigração e islamismo, que não teriam se disseminado tão facilmente se não tivessem encontrado eco tanto na direita quanto na esquerda governista (Manuel Valls, para citar apenas um).

Sempre houveram greves, hoje chamadas de "movimentos sociais", mas se olharmos seus resultados, veremos que, exceto em 1995 com a revogação da Lei da Previdência Social e, em 2006, com a revogação do CPE (contrato primeiro emprego), nenhum, um pouco vasto e longo, conseguiu, e esta é uma tendência cada vez mais clara na última década, sob Hollande e Macron. Essa constante contenção dos movimentos de revolta da sociedade tem sido acompanhada por uma maior vigilância e repressão policial, únicas formas de aprovar leis que favoreçam o liberalismo e o enriquecimento de uma oligarquia financeira. É nisso que estamos agora.

 

Qual é a sua opinião sobre os movimentos sociais que atravessaram a França nos últimos anos?

 

É importante observar que esses movimentos ocorrem em um ritmo mais acelerado e têm uma duração mais longa do que antes, sejam eles a greve contra a Reforma Trabalhista, a reforma da SNCF, a Reforma da Previdência ou as manifestações semanais dos Coletes Amarelos. Eles vão além de suas demandas específicas e estão cada vez mais voltados contra a política geral de direita favorável aos grandes grupos. A presença crescente de um “bloco de frente” com estudantes, trabalhadores e sindicalistas dissidentes, cada vez mais aceito, é um sinal da exasperação de parte da população.

 

Você reivindica posições de esquerda. O que essa palavra significa para você hoje?

 

A liberdade, a igualdade e a fraternidade, mas acima de tudo a igualdade, porque ela é a condição para a liberdade e a fraternidade. Onde está a liberdade quando, pelo acaso do nascimento ― a primeira injustiça ―, vivemos na precariedade, na falta de acesso ao conhecimento e à cultura, na condenação ao trabalho mal pago? E, sem justiça social, a fraternidade é uma ilusão, um momento de emoção nacional sem futuro, como após os ataques de 2015 e 2016. O campo da igualdade é o da educação, da saúde, da moradia, das relações entre os sexos, entre todos os seres humanos, na verdade. Os partidos ou um governo que se dizem de esquerda, mas não combatem as desigualdades, não merecem essa denominação.

 

O feminismo é uma questão política?

 

Ao afirmar que "se as mulheres têm o direito de subir à guilhotina, elas devem ter o direito de subir ao palco politico", Olympe de Gouges coloca de maneira magnífica e trágica, durante a Revolução, a questão dos direitos e do papel das mulheres na sociedade. O feminismo, desde o século XIX, reivindica direitos que dizem respeito à vida pública e que são detidos apenas pelos homens, como o direito de voto, de receber uma educação igual à dos homens e de exercer profissões que lhes são proibidas. Quando pensamos na quantidade de anos, até mesmo séculos, que foram necessários para que, na França, as mulheres tivessem direito ao voto (1945), abrissem uma conta bancária sem a permissão do marido (1965), ingressassem na École Polytechnique (1972) ou pudessem fazer as mesmas provas escritas que os homens no concurso de agregação (nas décadas de 1980!), vemos que a conquista da igualdade de direitos, que requer em cada caso uma mudança nas leis, foi uma questão política importante. Nos anos 1970, com a declaração de que "o pessoal é político", tornamos a esfera privada e a liberdade das mulheres sobre seus corpos um problema político.

            Me parece que atualmente o feminismo está se tornando uma força política plena, com correntes, universalista, materialista ou intersectional. E sua luta diz respeito ao estabelecimento de uma sociedade diferente, no trabalho, na educação, na cultura, na representação política, para todos, homens e mulheres. Feminismo e revolução, é um belo programa.

 

Você tomou posições públicas em várias ocasiões. Isso é óbvio para você como escritora? É necessário separar as ordens?

 

Aos meus olhos, escrever é sempre um ato político no sentido amplo: é dar uma imagem do mundo, dos indivíduos; é, como disse Roland Barthes, escolher o campo social onde se inscreve sua linguagem. Se olho para os textos que escrevi, está claro que eles carregam uma visão e uma contestação da ordem social, por um lado, e da condição das mulheres, por outro, muitas vezes ambos juntos. Mas eles nasceram de emoções e sentimentos que eu precisava esclarecer em uma busca pela realidade. É essa exigência que sempre prevalece. Não há palavra mais absurda para mim do que "mensagem" ao falar dos meus livros e até mesmo de "engajamento" no sentido tradicional pós-guerra. O que engajo em um livro sou eu mesma, minha vida, totalmente.

A importância que atribuo à escrita está ligada ao sentimento de uma responsabilidade especial pelo que acontece aqui e agora. E, uma vez que tenho a possibilidade de ser lida, ouvida, é como um dever para mim tomar posição, intervir no debate político.

 

Você tem nostalgia da literatura engajada do pós-guerra?

 

            Não. Ela me moldou ― estou pensando em Os caminhos da liberdade de Sartre e em seu teatro, em Camus, em A Condição Humana ― mas, quando comecei a escrever, e apesar de não engajada, foi o Nouveau Roman que me atraiu e despertou meu questionamento sobre a escrita.

 

Como você avalia a relação com a política de seus contemporâneos?

 

Se partirmos da reeleição de Chirac em 2002, parece-me que há ― além da efervescência durante as eleições presidenciais ― mais do que um desinteresse em relação à política, uma incredulidade de que os governos possam mudar a vida, um repúdio às promessas repetidas e não cumpridas. Em 2005, votamos "não" com mais de 54% no referendo sobre a Constituição Europeia, e esse voto foi posteriormente desrespeitado por artimanhas políticas. O movimento dos Coletes Amarelos é uma manifestação dessa impotência e de um sentimento de que o mundo político, governantes e partidos, estão distantes do mundo real. E, ao mesmo tempo, talvez nunca antes a aspiração por viver de forma diferente tenha sido tão forte desde 1981.

 

Os políticos falam uma língua diferente da dos escritores?

 

            Os escritores e os políticos têm um uso diferente da linguagem, porque possuem finalidades diferentes. Os políticos querem convencer, seduzir, buscam o consenso imediato, e suas frases pretendem ser sempre atos: dizer é fazer. A linguagem do político é performativa, seja anunciando uma redução de impostos, um estado de emergência ou um "novo mundo". Já a linguagem do escritor é incitativa, leva a refletir, sentir, sonhar, lembrar, de forma inextricável. Não está sujeita à tirania do presente nem do resultado...

 

Quais são para você as grandes obras literárias com ambição política? O que eles nos ensinam hoje?

 

Admiro profundamente obras imensas como Vie et Destin de Vassili Grossman e La Storia de Elsa Morante, que nos transportam para a profundidade do tempo histórico ao mesmo tempo em que nos fazem vivenciar sua complexidade. Elas rompem com o individualismo e com o que caracteriza nosso tempo, o presentismo.

No entanto, tenho uma queda por O vermelho e o negro e ainda mais por A educação sentimental, obras em que o contexto e as ideias políticas são, em suma, "vividos" através de um personagem, Julien Sorel ou Frédéric Moreau. Os sábados de novembro e dezembro de 2019, com a revolta dos Coletes Amarelos, me fizeram lembrar das páginas de Flaubert sobre os dias de 1848. Os textos permitem comparar e entender: ficamos menos chocados, menos condenatórios em relação ao que temos experiência através da leitura.



Ana Kiffer

É Professora da Pós-Graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, Cientista do Estado pela FAPERJ e Bolsista de Produtividade no CNPq. Curadora convidada da Bienal de SP 2021. É escritora, autora dos livros Tiráspola e Desaparecimentos, Editora Garupa, 2016, A punhalada, 7Letras, 2016, Todo Mar, Urutau, 2018; colunista da Revista Literária Pessoa, pesquisadora da obra do escritor francês Antonin Artaud, vem desenvolvendo há muitos anos uma investigação sobre os diversos modos de relação entre os corpos e a escrita. Autora do livro Antonin Artaud, EDUERJ, 2016, e com Gabriel Giorgi, Ódios Políticos e Politica do Ódio, RJ: Bazar do Tempo, 2019 e Las Vueltas del ódio, BA: Eterna Cadência, 2020. Organizadora do livro A Perda de Si – cartas de A. Artaud, Rocco, 2017; e das coletâneas: Sobre o Corpo, 7Letras, 2016, Expansões Contemporâneas: literatura e outras formas, com Florência Garramuno, UFMG, 2014, entre outros artigos e ensaios.  Foi curadora, em 2020, da exposição Corte/Relação dos cadernos de Antonin Artaud e de Édouard Glissant. Para a 34ª Bienal de São Paulo. Em 2021, estreou seu primeiro romance O Canto Dela, pela editora Patuá. Fotografada por Dani Neves.




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