Annie Ernaux, a Nobel
Tiphaine Samoyault
Tradução de Gabriel Martins da Silva
Revisão de Ana Kiffer
Texto publicado originalmente no blog En attendant Nadeau, em outubro de 2022. https://www.en-attendant-nadeau.fr/2022/10/08/annie-ernaux-nobel/
1.
O acontecimento que representa a atribuição do Nobel a Annie Ernaux talvez seja, em primeiro lugar, este: O acontecimento, seu livro que narra a violência de um aborto clandestino, o risco enfrentado, o risco de morte, o sofrimento, a humilhação. Ela escreveu em seu diário em 1993: “Filme sobre a Polônia: eu era aquela menina trêmula de medo, de angústia, de culpa, que decide abortar”. Em um contexto mundial em que essa questão volta a ser um problema, quando países onde esse direito havia sido conquistado com dificuldade o questionam, é um forte sinal que a Academia está dando.
2.
É redutor considerar Annie Ernaux como uma representante da escrita de si. Ela não escreve romances, mas também não escreve autobiografias. Não é a sua vida que ela escreve, mas a vida em si: “A vida, com seus conteúdos que são os mesmos para todos, mas que experimentamos de forma individual: o corpo, a educação, a identidade e a condição sexual, a trajetória social, a existência dos outros, a doença, o luto. Acima de tudo, a vida como o tempo e a História não cessam de mudar, de destruir e de renovar” (Écrire la vie). Ao fazê-lo através de um “eu” impessoal (ou transpessoal, como ela mesma diz às vezes), por pouco sexualizado, tão habitado pelo outro quanto por si mesma, ela confere à História uma dimensão vivida que atribui importância a cada indivíduo. Ela alcança esse ponto de encontro entre o íntimo e o social, no qual o interior colide violentamente com o exterior e onde a vergonha nasce. Seus livros são comoventes, porque eles estão sempre no lugar da maior vulnerabilidade humana, a implacável verdade de nossa condição.
3.
A obra de Ernaux provoca a identificação das leitoras e dos leitores, mas principalmente das leitoras. A experiência constante das mulheres de se identificarem, em suas leituras, com personagens masculinos ― uma vez que geralmente são os únicos oferecidos pela literatura ― é aqui invertida. São os homens que se identificam com os pensamentos e experiências de uma mulher, e o fazem sem problemas, pois ela também fala sobre suas vidas, sobre aqueles momentos em que o passado se amplia, sobre suas sensações, sobre o que nos mantém mais próximos de nós mesmos.
Ela é a primeira escritora francesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura.
4.
É muito fácil transportar a mercearia-café de Yvetot, no cruzamento das culturas camponesa e operária, para a Romênia rural dos anos 1950 a 1990, para o Chile dos anos 2000 ou para a Etiópia atual, para além das diferenças de regimes políticos. A experiência da trânsfuga pode ser vivida em qualquer lugar, e em todos os lugares as mulheres tiveram ou ainda têm que se emancipar, não sem dificuldades nem sofrimento, das atribuições que lhes são por vezes impostas. E pensamos em todas as tradutoras e tradutores que se reconheceram tanto nessa obra que dedicaram tempo para traduzi-la em sua língua, em todo o mundo, deslocando seu deslocamento, ampliando a comunidade daqueles que se reconhecem como vozes abafadas ou em histórias silenciosas. Eles a transformaram em uma escritora global e o Nobel acaba de reconhecer esse status. Global: ou seja, testemunhando a realidade de todas as vidas e todas as classes, fazendo-o através de fatos específicos, palavras ouvidas, valores de diferentes grupos ou épocas, e dando-lhes dignidade. Embora Annie Ernaux reaja frequentemente nos jornais contra qualquer forma de nacionalismo, sua obra, traduzida e lida em todo o mundo, ao dar um lugar justo a tudo o que ela aborda, é uma resposta contínua aos fechamentos identitários e a todas as formas de dominação.
5.
O acontecimento político também é o que essa obra tem feito há muito tempo em relação à ideia de literatura, especialmente na França. Ao relacioná-la à história e à sociologia, ela derruba a literatura de seu pedestal, subverte sua autonomia. Sua escrita é caracterizada por uma espécie de magreza voluntária que causa desconforto no meio literário. Sabemos como ela trabalha: ela risca em seus manuscritos tudo o que poderia “parecer literário”, figuras herdadas, metáforas, referências que remeteriam à autoridade dos escritores canonizados. “Vingar sua raça” implica tornar seus livros acessíveis a ela. Ela frequentemente disse que escreveria livros que seu pai poderia ler, livros que não o excluiriam. Ao fazer isso, ela se expõe à crítica de ter uma escrita rasa ou até mesmo de escrever mal, o que não deixa de ser dito por dândis masculinos que veem na literatura apenas excesso e manipulação espetacular da língua francesa e que preferem, de qualquer forma, os escritores de direita, considerados por eles mais corajosos e livres do que os supostos “bem-pensantes”. Isso ficou evidente quando Annie Ernaux escreveu um artigo contra dois livros de Richard Millet, o primeiro fazendo um “elogio literário” a um criminoso, o segundo acusando a "imigração extra-europeia" de atentar contra a “pureza” da língua francesa (como Céline falando do “franco-iídiche rebuscado” de Proust). Muitos homens se revoltaram contra Ernaux em nome da liberdade da literatura e, acima de tudo, em defesa da bela literatura escrita, uma paixão francesa. Aí se trava uma batalha que está longe de terminar, pois hoje as polaridades se exacerbam e porque a indignação não é unânime e, frequentemente, ela própria indigna.
6.
Por vezes dizem que Annie Ernaux tem assuntos restritos, já que ela parte de histórias “de garotas” ou do ponto de vista de uma garota e de uma mulher. Mas não é precisamente a política da literatura igualar os assuntos? Porque ela não condena diretamente ― exceto a arrogância da dominação comum e a máquina infernal do capitalismo avançado ―, às vezes só se lembra dela pelas emoções positivas, solidariedade, compaixão, preocupação com os outros. Certamente, ela não usa grandes palavras. Mas também não se pode esquecer a grande violência dessa obra, que sempre procura dizer o que não pode ser dito ou que não é dito, que se confronta com suas vergonhas, que é atravessada pelas dores de todos aqueles que estão presos na história. Annie Ernaux dedica sua vida à escrita. Ela reconhece sua vocação na de Virginia Woolf, em sua relação de fusão e distância com o mundo, sua relação com a vida sensível. Ela está constantemente preocupada com a forma, como é evidenciado em seu mais alto grau em L'atelier noir, o diário de escrita d’Os anos; e ela coloca o problema formal da acolhida, que não é capaz de conter tudo. A hospitalidade da forma não tem a ver com questões de quantidade ou totalidade, mas sim com um poder de emergência no qual uma verdade da condição humana é subitamente dada para ser vista com brilho.
7.
Annie Ernaux mantém um diário, do qual alguns livros surgem (Se perdre, L'atelier noir, “Je ne suis pas sortie de ma nuit”), mas que também se anuncia como um acontecimento porvir, o da sua publicação, inevitavelmente adiada. Ela volta a certos momentos de sua existência, a pessoas, a lugares de memória sempre lacunares e mutantes. Mas ela nunca se repete, porque a forma muda e, com ela, tudo o que é particular. “O que importa para ela é captar essa duração que constitui sua passagem na terra em uma determinada época, esse tempo que a atravessou, esse mundo que ela registrou apenas vivendo. [...] Ela encontra então, em uma satisfação profunda, quase deslumbrante ― que a mera imagem da memória pessoal não lhe proporciona ―, uma espécie de ampla sensação coletiva, na qual sua consciência, todo o seu ser está envolvido.” (Os anos) Assim, sua vida não explica sua obra, mas a obra desdobra o sentido sutil, às vezes absurdo ou comovente, de nossas vidas materiais, solitárias e comuns, no tempo que em breve não nos conterá mais.