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O labirinto infinito

DESENHOS: FRANZ KAFKA



2023-07-03

Os esconderijos são incontáveis, a salvação apenas uma, mas as possibilidades de salvação novamente muitas, como os esconderijos.

Existe um objetivo, mas não há caminho. O que nós chamamos caminho é hesitação.

Franz Kafka

 

No mês passado, escrevi sobre a paradoxal traição que Max Brod cometeu com Franz Kafka, não cumprindo, após a morte do amigo, com o que ele lhe tinha pedido.

Kafka deixara dois bilhetes a Brod, duas pequenas cartas solicitando que o amigo queimasse todos os seus textos (diários, manuscritos, cartas, esboços) que ainda não tinham sido publicados — de preferência, “sem serem lidos”. Ao ler os bilhetes, Brod optou por trair o amigo: em nosso benefício, leu tudo o que pôde e manteve o espólio de Kafka a salvo para a posteridade.

Susana Kampff Lages, uma de nossas grandes especialistas em Kafka, detectou uma interessante contradição nesses bilhetes. “A determinação de destruir sem ler o que quer que Brod encontrasse torna-se impossível de cumprir no exato momento em que o amigo encontra na escrivaninha de Kafka bilhetes dobrados, os abre e os lê. Mas é só ao ler os bilhetes que Brod se vê confrontado com a último desejo de Kafka.”

A beleza do paradoxo: para conhecer a recomendação e saber o que integraria formalmente o conjunto de documentos que Kafka legava à destruição, era preciso, antes, lera as suas duas pequenas cartas; contudo, ao lê-las, tornava-se impossível cumprir plenamente com o pedido, pois Kafka pedia que a destruição prescindisse de toda e qualquer leitura — inclusive de bilhetes como aqueles.

“No momento mesmo em que toma conhecimento desse último desejo, ao ler o bilhete, ele [Max Brod] já está deixando de realizá-lo”, registra Susana.

Judith Butler soube notar um segundo paradoxo nessa mesma história — ou, melhor dizendo, esse mesmo paradoxo, mas por um outro viés. “Curiosamente, Kafka não pede de volta seus escritos para que ele os possa destruir pessoalmente. Pelo contrário, ele deixa Brod com a charada. Sua carta para Brod é uma maneira de dar todos os trabalhos para Brod e pedir que ele seja o responsável por sua destruição”, introduz a filósofa.

Butler explica o seu ponto: “Há um paradoxo intransponível aqui, já que a carta torna-se parte dos escritos, e assim parte do próprio corpus ou da obra, como muitas das cartas que Kafka havia preservado meticulosamente através dos anos. E ainda assim a carta pede para que os escritos sejam destruídos, o que logicamente envolve a nulificação da própria carta, e assim nulifica a própria ordem que ela dá.”

Por tudo isso, os bilhetes deixados por Kafka para o amigo Max Brod acabaram sendo a sua última obra literária, a sua última manifestação de espanto com o labirinto insensato em que vivemos, um labirinto do qual será sempre impossível escapar, em que a única coisa que resta é o confronto com o equívoco insuperável, a espécie de imprecisão que conduz sempre a uma aporia nulificadora — uma aporia e, de certa forma, uma espécie de traição: seja em relação aos outros, seja em relação a si (quase sempre, em relação a essas duas instâncias simultaneamente).

***

Naquela primeira crônica, escrevi que, felizmente, Max Brod era um homem sensato, com uma noção satisfatória do verdadeiro tamanho de Kafka, e que, em razão disso, salvara o espólio do amigo da destruição. Mais que sensatez, a melhor palavra talvez seja sagacidade, tendo-se em vista a saída que Brod escolheu para a paradoxal aporia em que o amigo o havia metido.

Em face da imperfeição de toda e qualquer alternativa, Brod soube ler nas entrelinhas e julgar, na conveniência de uma interpretação complexa, qual seria a forma mais adequada de honrar o amigo: se seguindo o seu comando explícito, delimitado sincronicamente no tempo, ou se interpretando, do lugar privilegiado de uma amizade duradoura, o que pudesse ser o seu sentimento implícito, distribuído na diacronia de sua vida.

Num ato complexo, Max Brod optou pela segunda dessas hipóteses, atitude a que Walter Benjamin denominaria, anos depois, como uma “fidelidade contra Kafka”. O mesmo tipo de decisão coube a Dora Diamant, mulher com quem Kafka viveu os últimos meses de sua vida, entre o fim de 1923 e o começo de 1924, época em que o escritor se via duplamente perseguido: por uma tuberculose, por dentro, e por fora pelo fascismo alemão.

No caso de Dora, diferentemente do que ocorreu com Max Brod, foi preciso tomar uma decisão ainda na presença viva do escritor, o que colaborou para que ela seguisse na direção contrária à do amigo de Kafka. “Ele queria queimar tudo o que havia escrito”, ela contou. “Eu respeitei sua vontade e, diante de seus olhos, enquanto ele repousava, doente, em sua cama, queimei alguns de seus textos.”

Mais tarde, Dora foi cobrada por seu ato e teve de se defender. “Fui repreendida por ter queimado alguns escritos de Kafka. Eu era muito jovem naquela época e os jovens vivem no instante, pouco no futuro.” Viver no presente, viver no futuro. De certa forma, é também sobre isso que a obra de Franz Kafka fala; sobre a fruição dessas duas impossibilidades.

Em um de seus ensaios sobre o escritor tcheco, Alberto Pucheu anota: “é-me admirável a postura de Max Brod em não queimar os escritos de Kafka, salvando-os, à revelia do pedido do amigo escritor; é-me igualmente admirável a postura de Dora, queimando alguns dos escritos de Kafka, a seu pedido, a pedido do escritor tão amado, extinguindo-os. Ambos admiráveis, o gesto da amizade e o gesto do amor.”

Em face dos labirintos que não apresentam saída que prescinda de um ônus do tamanho do mundo (conjunto a que, com Kafka, poderíamos denominar simplesmente como a vida), Pucheu se solidariza com aqueles que, ainda assim, os percorrem, tomando a difícil decisão de se mover, arcando com os custos. Em lembrança de todos eles, celebramos agora o aniversário de 140 anos de nascimento de Kafka, completados neste 3 de julho.



Ewerton Martins Ribeiro

Funcionário público federal, é mestre em literatura brasileira e doutor em teoria da literatura pela UFMG, universidade em que atua como jornalista. Publicou a novela A Grande Marcha (editoras Circuito e e-galáxia, 2014 e 2015). Nasceu em 1981 em Belo Horizonte, Minas Gerais, no Brasil, onde vive. (Foto: Foca Lisboa.)




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