Em 15 de outubro deste ano, o escritor italiano Italo Calvino faria cem anos. Para comemorar a data por aqui, a Companhia das Letras promete republicar uma série de obras do escritor. Um livro inédito lançado recentemente é Um otimista na América: 1959-1960, em tradução de Federico Carotti. O livro foi publicado postumamente, em 2014, pois, em 1961, depois de reler a sua segunda prova, o próprio Calvino o considerou “modesto demais como obra literária e não suficientemente original como reportagem jornalística”.
Um otimista na América é um livro de viagem, que descreve a experiência do escritor nos Estados Unidos da América, e, a meu ver, não tem nada de modesto: são relatos curtos, mas extremamente aguçados, sobre cultura e o modo de vida daquele país. Lendo tais anotações, é possível até mesmo traçar o caminho que levou aquela nação, considerada maior democracia do mundo, a abraçar, nos dias de hoje, ideias ditatoriais e retrógradas, que, aliás, sempre estiveram por lá: “A América [como Calvino se refere aos Estados Unidos da América] sempre tenta pensar por meio de entidades absolutas, sejam elas o dinheiro ou o sucesso; embora sua realidade seja dinâmica, ela não tem o senso de antítese a não ser como contraposição entre Deus e Satanás”.
Neste 16 de junho, em que se comemora o Bloomsday (Dia de Blomm), como é conhecida a festa em homenagem a Leopold Bloom, protagonista de Ulisses, de James Joyce, uma passagem do livro de Calvino chama a atenção: “As leitoras de Joyce”. Nele, o escritor descreve algumas características da vida de amigos estadunidenses. A família, formada por um casal e duas filhas jovens, morava no subúrbio de Washington -- “um universo de avenidas, varandas, jardinzinhos e pequenas colinas verdejantes”, como descreve Calvino, acrescentando: a “cidade mais calma, ascética e utópica do mundo, mas sem dúvida a mais tediosa”, como se lê no texto.
A monotonia desse cotidiano só era quebrada graças à paixão da família pela literatura, mais destacadamente, pelo interesse da matriarca pela “palavra dos poetas e dos escritores mais difíceis”, entre eles, James Joyce.
A senhora havia terminado o college (faculdade), mas, como a grande maioria das mulheres à época, tornou-se dona de casa, de modo que, como diz Calvino, “sua verdadeira felicidade é de leitora: leitora de James Joyce, em especial do texto mais obscuro e quase indecifrável do escritor irlandês: Finnegans Wake”. Ela o lia diariamente e defendia a tese de que “só lendo todos os dias, todos os dias, aos poucos ele se torna transparente”.
Essa leitura por prazer era compartilhada com as amigas, um “grupo de senhoras” bastante heterogêneo: “algumas eram funcionárias de ministérios, outras professoras, outras meras mães de família”. Havia também “alguns maridos presentes, bons senhores de idade, curiosos e encorajadores”.
Esse grupo se reunia frequentemente para ler e interpretar Finnegans Wake. Entre as senhoras. havia uma irlandesa que desvendava as referências a cantigas populares do país; uma outra leitora, que era católica, descobria no texto alusões à Igreja e a seus rituais, enquanto suas colegas apontavam “duplos sentidos obscenos” ou referências à biografia de Joyce.
Para descansar, se debruçavam sobre outro livro do escritor irlandês, um mais “fácil”, segundo a anfitriã. Então, como lembra Calvino, “com menos empenho”, liam e comentavam “um trecho ao acaso do livro de Joyce que vem logo a seguir na escala da indecifrabilidade: o Ulysses”.
Vale destacar que adjetivos como “difícil” e “indecifrável” foram usados apenas por Calvino. Para essas leitoras não havia dificuldade, mas curiosidade, única qualidade necessária para ler Ulisses, Finnegans Wake e, diria, outros tantos livros que fizeram experiências inéditas com a linguagem. No dia de Bloom, a leitura coletiva desse grupo de senhoras é um incentivo para que o leitor atual, ainda assustado com as possibilidades radicais do texto literário, deixe de lado seu temor e se entregue por prazer à leitura das obras de Joyce.
*Traduziu, entre outros, James Joyce, Leonora Carrington, Gertrude Stein, Edward Lear e Cecilia Vicuña. Organizou e cotraduziu com o Coletivo Finnegans Finnegans Rivolta, a tradução na íntegra de Finnegans Wake.