Para Diná e demais descendentes de Nedil e Maria
Olhou pra mim e, com severidade inesperada para os seus seis anos, disse: “Só tem três crianças”. Cara amarela de sem jeito, disse a ela: “Me enganei. As crianças cresceram, tiveram filhos e filhas, que já não são mais crianças”. Emburrada, não levou em conta minha explicação, sobretudo porque a mãe proibia a piscina, onde estavam as três crianças, quatro, havia chegado mais uma. O primo, pouco maior que ela, havia chegado mais tarde e logo estava enturmado, inclusive com dois dos meninos dentro da piscina. Mergulhou de cueca mesmo. Para ela, a calcinha foi proibida. Sinal dos tempos. Para o bem e para o mal.
Os tempos são o que são e, no que são, trazem o movimento inerente. Hoje, apenas quatro crianças na família antes acostumada a dez, quinze, nas festas familiares. Intervalo geracional, nada mais. E outros tempos, em que as moças não querem mais ser mães aos dezoito anos, afastada para sempre, esperamos, a antiga pecha de titia. Tão pouco tempo, e o imperativo social feminino de ter filhos foi trocado por namorar muito, consolidar a profissão, estudar. Estudar.
Maria e Nedil tiveram doze filhos e filhas. As filhas, atingidos os doze, treze anos, às vezes menos, iam trabalhar em casas de família. Aos filhos, o destino de pequenos biscates ou trabalhos na lavoura. Estávamos, contudo, em região praiana, turística, não longe de uma grande capital. No entanto, a economia agrária e modelos que pouco se afastavam da herança colonial era o que ainda predominava. Mas quase cinquenta anos traçam histórias.
Bonita, a jovem que se apresentou a mim era também simpática, confiante. Diná. (Trabalhava conosco ainda em experiência e alguém ao telefone chamou por Edna. “Não tem ninguém aqui com esse nome”, disse, e comentei o fato mais tarde com o marido. “Sou eu”, Diná falou. “Meu nome é Edna.” Fiquei pasma. Logo depois, a carteira de trabalho resolveu o problema. Edna... de Matos.) Mas Edna, Diná chegou por meio de uma rede de referências bastante eficiente: mulheres que precisavam de outras mulheres para ajudar no trabalho doméstico. Entrevista feita, a concordância com o pedido de uma folga extra para a festa da santa padroeira do lugar onde vivia, começamos uma parceria e troca das mais felizes. A jovem mãe e trabalhadora da educação, com horário intenso de trabalho, ocupando noites e finais de semana, ora com aulas, ora com preparação de atividades e correções de trabalhos, logo percebeu que poderia partilhar, em total tranquilidade, os cuidados da filha pequena com a profissional recém-contratada.
Naquele tempo, os contratos de trabalho doméstico costumavam envolver o pernoite. As folgas de trabalho ocorriam nos finais de semana, em geral a partir do sábado pela manhã. Tal circunstância se explicava por herança histórica da mucama familiar e pela difícil e injusta realidade econômica. As trabalhadoras domésticas assalariadas moravam, em geral, distante do local de trabalho. Em nosso caso, o trajeto equivalia a cerca de duas e meia a três horas de viagem. Mais, muitas vezes. Conseguimos, porém, manter por dezesseis anos um contrato equilibrado e justo para ambas as partes. O nome dela consta nos agradecimentos especiais de minha dissertação e de meu primeiro romance. Não fugindo à tradição sociocultural brasileira, batizamos, mutuamente, nossas filhas.
O tempo correndo, outra criança, outra e mais outra faziam um bom bulício (que palavra mais antiga) à hora da refeição. Nessas horas, era comum meu marido e eu nos calarmos, e Diná, com uma boa sacudida nas quatro meninas, garantir a calma devida à mesa. Mãe de uma das crianças e corresponsável pela criação das outras, sua autoridade era inquestionável.
Várias vezes tentei fazer com que retomasse os estudos. Visível o talento docente, em muitos momentos a palavra dela complementava ou mesmo se sobrepunha à minha – e eu aprendia. Muito inteligente, nunca se deixou tentar pelas promessas da educação formal. Não era o interesse dela.
Teve duas filhas, tem um neto, até o momento. A filha mais velha, nossa afilhada Beatriz, em breve será advogada. Pretende se dedicar à causa da gestante prisional. Sua foto de capa no Facebook estampa a fachada do Fórum Juíza Albaliz do Rosário Nascimentos, em Paraty. Bianca, a mais jovem, namora muito, curte a vida e cursa Nutrição.
Mas hoje é festa, 69 anos de Diná. A família e amigos reunidos em uma casa de festa, e só quatro crianças, eu que prometera a minha neta chão de terra pra correr, umas dez crianças para brincar. Memórias antigas me guiavam: as crianças de outro dia são as moças e os rapazes lindos de hoje, para quem casamento e deveres biológicos não constam da lista de prioridades. A neta, entediada, fazia bico, inconformada. Lá pelas tantas, apareceu um biquini emprestado, ela se arrumou com a permissão da mãe e mergulhava feliz da vida na piscina com as outras meninas. Mas então eu já conversava com Beatriz, com Telma.
Telma, que passou também pelo trabalho doméstico, foi pequena empresária, fez um trabalho público formidável com idosos e hoje coordena projetos municipais. Falamos sobre a graduação em História, interrompida para aproveitar a oferta da prefeitura de algumas graduações específicas para os funcionários. Telma optou pelo Turismo, e garante que voltará à História. Sonhamos ambas com uma pesquisa sobre Nedil e Maria, a procedência dos ancestrais. Paramos a conversa, para cantar os parabéns. O trenzinho para a foto tradicional enfileira as irmãs: Demantina, Celina, Ângela, Andréa, Ednéa, Telma, Diná. Faltam duas, que já se foram, Selma e Denair; Chico também se foi. Dos rapazes, ficaram Zezé e André.
Tenho acompanhado, com marido e filhas, as partidas e as chegadas da família. Como essa família tem também acompanhado chegadas e partidas de meu lado. À nossa revelia inicial, mas por escolhas muito claras em seguida, construímos Diná, eu e nossas famílias, uma trança de experiências e afetos.
Não deverá haver documentos para além dos pais de Nedil e Maria, filhos de prováveis escravizados. (Nedil serviu para inspirar um griô, em meu livro Bárbara debaixo da chuva.) Não sei também se irei além de meu avô paterno, bem garantida, por outro lado, a genealogia dos avós maternos e da avó paterna, imigrantes brancos. Mas descobrir a falta é também fazer História, abrir a malha do trançado.