Maria Teresa Miceli Kerbauy, professora dos Programas de Pós-graduação e Ciências Sociais UNESP / Araraquara e de Ciência Política da UFSCar, vem estudando o poder local desde sua formação como doutora na PUC-SP, sob orientação do cientista político Bolivar Lamounier. Foi uma das primeiras pesquisadoras a mostrar as mudanças nas relações de políticas de clientelas a partir do declínio econômico dos produtores rurais e latifundiários e da expansão urbana e industrial no século XX. Seu trabalho Do Clientelismo Coronelista ao Clientelismo de Estado: A ascensão de imigrantes na política do interior Paulista, escrito com a colaboração de Maria do Carmo Campello de Souza, é uma referência para se compreender esse processo de transformação da dinâmica política no interior do estado de São Paulo e também de outras regiões do Brasil. Desde então, ela vem se dedicando a vários temas correlatos, em especial aos estudos sobre a participação política de descendentes de imigrantes no estado de São Paulo, juntamente com o antropólogo Oswaldo Mário Serra Truzzi, professor da UFSCar.
Você é uma das maiores especialistas brasileiras sobre “poder local”. Vou fazer uma pergunta provocativa: num país onde a Xuxa consegue ser uma referência para milhares e milhares de crianças, onde o padre Marcelo consegue suplantar o sucesso mediático dos evangélicos, e onde 155 milhões de pessoas usam celular, qual é a importância do poder local atualmente?
Sua pergunta é bem provocativa ao tentar comparar dois ícones nacionais, Xuxa e padre Marcelo Rossi com a questão do poder local. A Xuxa é produto de um período do Brasil que no meu entendimento é passado, quando a televisão atingia mais de 90% da população brasileira. Acho que é uma referência para uma geração de crianças e adolescente da década de 1980. Ficou na memória desta geração. Apesar de ter um número muito grande de produtos culturais, a partir do começo de século XXI não se adequou ao uso das plataformas digitais. Já o padre Marcelo Rossi, apesar de ter começado seu trabalho de evangelização na década de 1990 para além dos grandes encontros religiosos, especialmente no Santuário Terço Religioso, usou vários meios de comunicação, rádio, televisão, filmes e discos e, ao migrar para as plataformas digitais, especialmente para as redes sociais, num país onde 155 milhões de pessoas usam o celular, manteve seu sucesso mediático em função do avanço da questão religiosa no Brasil e sua importância no comportamento da população brasileira.
Apesar da nacionalização destas lideranças, o poder local não perdeu sua importância. Quando a constituição de 1988 incorpora os municípios à federação brasileira e dá a eles autonomia decisória e de recursos e responsabilidade na implementação e gestão de políticas públicas de programas definidos no nível federal, redesenha a federação transformando estados e municípios em entes federativos com o mesmo status jurídico da União. A Nova Carta estabeleceu competências comuns para a União, Estados e Municípios nas áreas de saúde, assistência social, educação, saneamento, meio ambiente, proteção do patrimônio histórico, combate à pobreza e integração dos setores desfavorecidos, educação para o trânsito. A forma de cooperação entre os três níveis de governo deveria ser definida por Lei Complementar.
As fortes desigualdades regionais e as baixas condições econômicas da maior parte dos municípios brasileiros, a maioria de pequeno porte ( 22% dos 5570 munícipios brasileiros tem até 5000 mil habitantes), tornaram complexas as relações intergovernamentais diante da grave crise sanitária que o país enfrentou durante a pandemia da COVID 19, colocando em conflito os entes federativos sobre a interpretação dos artigos 21 e 22 da CF/88. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) assegurou que Estados e Municípios poderiam tomar providencias normativas e administrativas relativas a pandemia, devendo a União respeitar as medidas estaduais e municipais, dando aos municípios e ao poder local um protagonismo especial neste momento, e garantindo sua importância posteriormente, especialmente nas eleições municipais de 2020.
Ainda sobre o mesmo tema, continuando a analogia entre poder local e mídia, mas olhando de uma outra perspectiva, a televisão e o rádio se regionalizaram ou foram municipalizados nos últimos trinta anos. Como este processo tem afetado a política local?
Televisão, rádio e imprensa escrita se regionalizaram nestes trinta anos, mas o avanço das mídias sociais enfraqueceu estes meios de comunicação tradicionais e deram espaço para outras formas de comunicação. Os jornais locais, por exemplo, estão praticamente desaparecendo, não conseguem sobreviver ao avanço das mídias digitais, que foi a forma de comunicação mais utilizada durante a pandemia, produzindo a notícia em tempos real.
É possível explicar, ao menos em parte, a vitória do então candidato Bolsonaro, sem base partidária e nacionalmente pouco conhecido, a partir da dinâmica política e social das cidades? Ou seja, enquanto abordagem metodológica, os estudos sobre poder local conseguem explicar algumas das dimensões importantes desta vitória?
Para entender esta questão é necessário considerar as mudanças que ocorreram na sociedade brasileira neste período. Houve uma urbanização acelerada, contínua desindustrialização, um aumento da desigualdade, uma modernização do campo com o avanço do agronegócio e em especial a expansão das igrejas neopentecostais que passaram a usar os meios de comunicação de massa e buscaram ter uma participação mais efetiva na política. Junte-se as estas questões o aumento do envelhecimento da população, do eleitorado feminino e da escolarização.
Os protestos de 2013, as denúncias de corrupção da Lava Jato e a crise econômica de 2015 são alguns fatores apontados como sinais importantes para o descontentamento da população, em especial da classe média com a política e os partidos. Os protestos políticos que sacudiram o país a partir de 2013, quando houve uma grande mobilização nacional, provocaram mudanças e dúvidas no que estava estabelecido até então para a disputa eleitoral nacional, estadual e local.
No entanto, as análises sobre o sistema partidário e eleitoral brasileiro continuavam enfatizando o fortalecimento dos partidos, apontando para a nacionalização vertical do sistema partidário e a estabilização da competição no plano subnacional. Como consequência desse processo, o resultado seria o alinhamento das estratégias partidárias (nacional, estadual e municipal) e a avaliação de que o desempenho de um partido em uma determinada eleição teria efeito sobre o desempenho deste mesmo na eleição seguinte – independentemente do fato das eleições para o Executivo e Legislativo municipal não coincidirem com as eleições estaduais e federal. Dessa forma, desconsideraram a particularidades das eleições municipais e dos sistemas partidários locais.
Poucas pesquisas se debruçaram sobre as distintas formas de competição em diferentes distritos de um mesmo nível eleitoral. As desigualdades e heterogeneidades regionais e diferentes magnitudes dos 5.570 municípios brasileiros podem condicionar o comportamento das lideranças partidárias locais de diferentes formas. Além disso, as lideranças partidárias precisam decidir estratégias de competição e de distribuição do financiamento de campanha para municípios com turno único, por maioria simples com até 200 mil habitantes e municípios com dois turnos com mais de 200 mil habitantes, incluindo as capitais.
As eleições municipais brasileiras, cujos resultados vinham ocorrendo desde 2000 de forma mais ou menos previsível, chegaram em 2016 com um grau de incerteza em relação ao quadro partidário no país, aos arranjos locais que deveriam sair desta competição e suas consequências para as eleições presidenciais de 2018, com debates intensos sobre a possibilidade de reorganização das principais forças políticas do país e o espaço que os principais partidos nacionais – PT, PSDB e PMDB – e as siglas de menor expressão passariam a ocupar neste processo. Podemos acrescentar as reformas eleitorais de 2015 e 2017 que provocaram mudanças importantes nas regras eleitorais, como o fim do financiamento eleitoral privado, o fim das coligações para eleições proporcionais, cobrança rigorosa da cláusula de barreira e a criação do Fundo Eleitoral de Campanha. Existe toda uma discussão sobre o papel do antipetismo e da reativação do conservadorismo da população brasileira na vitória do candidato Bolsonaro em 2018, mas não houve uma percepção clara, dos analistas, sobre o que estava acontecendo nas eleições municipais desde 2008. Hoje, partidos e políticos analisam com mais atenção o que ocorre nas eleições municipais, antes de decidirem suas estratégias eleitorais para as eleições estaduais e federais.
No livro clássico Coronelismo, Enxada e Voto (1948), Victor Nunes Leal mostra como a política local é dominada pelo coronel. Hoje em dia você detecta algum ator político ocupando papel semelhante? Para Nunes existe uma estrutura socioeconômica que sustenta o coronelismo. E hoje? Qual é a estrutura socioeconômica que dá sustentação ao poder?
Victor Nunes Leal, em sua obra entende que o fundamento do poder local é o compromisso coronelista, “baseado numa troca de proveitos entre o poder público progressivamente fortalecido e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terra”. O poder privado baseado na posse da terra faz com que a força eleitoral lhe empreste prestígio político, natural coroamento de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terras. Além da posse da terra, o poder privado está assentado no isolamento dos municípios, em que o coronel permanece como mediador exclusivo entre os governos estadual e federal, mesmo que para isso seja necessário conviver com a autonomia extralegal dos chefes municipais e governistas.
A partir de 1964 o fim da intermediação exclusivista dos coronéis, as solidariedades horizontais que surgem na clientela apontam para novas formas de organização da sociedade local. O poder local deixa de ser um monopólio e se abre para outros competidores, pois surgem canais de intermediação de natureza diferentes, tais como novos partidos políticos, sindicatos, órgãos burocráticos de governo, conselhos de participação e a entrada em cena dos meios de comunicação e recentemente das mídias sociais. Diante das transformações pelas quais o país passou após 1964, as análises sobre o poder passaram a redimensionar a realidade local. A mediação entre as autoridades públicas e os municípios passa a ser exercida por novos líderes, que podem ser tanto um político influente como representantes de órgãos públicos estaduais e federais.
Na minha tese, aponto para um novo ator político, representativo dos interesses locais, que denominei “político moderno”, de acordo com a descrição weberiana do político profissional. O “político moderno” irá também pressionar as agências burocráticas e o governo central em busca de recursos e cativar largas clientelas usuárias dos serviços e equipamentos sociais. Esse “novo político local” cuida ao mesmo tempo de suas estratégias políticas municipais, estaduais e federais, utilizando para isso os meios de comunicação, cuja força se torna cada vez maior. A mídia irá redefinir seu perfil político de modo mais adequado à imagem que a base eleitoral faz de seus políticos, uma vez que os políticos locais passam a ter maior visibilidade para o eleitorado. Essa maior visibilidade dos executivos locais torna-os mais vulneráveis ao múltiplo jogo de pressões, resultando em um contínuo processo de conflito entre as agências decisórias e níveis de poder marcados pela negociação, pela barganha e pelos compromissos desses atores políticos com diferentes grupos, associações profissionais, partidos políticos e organizações da sociedade civil.
A estrutura socioeconômica que dá sustentação ao poder local são o Fundo de Participação Municipal (FUNDEB) e os vários repasses especiais do governo federal para financiar políticas sociais e mais recentemente um grande volume de recursos, o chamado orçamento secreto, que são enviados às bases eleitorais dos deputados federais para garantir a manutenção de seus mandatos e de seu domínio sobre o seu território eleitoral. Dependendo da região a estrutura econômica que dá sustentação ao poder local é diferente. Nos pequenos municípios a sustentação é dada pelos repasses do governo federal, pois os recursos originários da arrecadação dos municípios, quais sejam, Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISSQN), Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) não são suficientes para a manutenção dos serviços básicos destes municípios.
Você mostra na sua tese, “A morte dos coronéis”, que as Câmaras Municipais foram importantes para a ascensão social de uma classe média no interior de São Paulo. Quem são, hoje em dia, as pessoas que ainda usam a Câmara deste modo? Qual é o seguimento social em ascensão na política local atualmente?
Atualmente a maioria dos vereadores é constituída por servidores públicos, comerciantes, profissionais liberais, professores, fazendeiros, industriais e um número muito reduzido de trabalhadores rurais, militares e bancários. Recentemente, aumentou a representação nas Câmaras Municipais de religiosos, especialmente das igrejas neopentecostais e de representantes da segurança pública, dois seguimentos em ascensão na política local. O serviço público continua sendo uma fonte importante de recrutamento de candidatos à vereança. Se acrescentarmos a essa categoria os professores, dos ensinos fundamental, médio e universitário - a grande maioria ligada a instituições públicas - esse número tem um aumento significativo. A composição dos legislativos locais evidencia uma mudança na composição social dos vereadores em relação aos períodos anteriores. As transformações sociais, econômicas e demográficas que vem ocorrendo na sociedade brasileira podem estar influindo no recrutamento partidário para a eleição dos legislativos locais, produzindo mudanças no perfil das elites políticas parlamentares locais.
Ainda com relação aos seus trabalhos, o clientelismo assumiu novas feições com o fim do Brasil agrário. Você poderia comentar a tese de Edson Nunes sobre a prevalência do clientelismo e do corporativismo ainda hoje no Brasil?
O clientelismo assumiu novas feições com o fim do Brasil agrário, o tipo de político clientelista tradicional com conteúdo personalista, que atendia solicitações individuais, dá lugar a políticos clientelistas que se colocam como porta-vozes de categorias sociais específicas, corporativas e profissionais. Demandas grupais assumem o primeiro plano, ligadas quase que umbilicalmente às máquinas partidárias. Daí a política eleitoral do município desenhar, de alguma forma, o perfil de ação da política municipal. A incorporação de clientelas grupais ao sistema clientelista atende a injunções de escala, em função do aumento do número de eleitores sobre os quais cada chefe político pode exercer controle, tendo em vista o intercâmbio de favores que é típico do sistema. Em países com imensas desigualdades e pobrezas, como é o caso do Brasil, as estratégias clientelistas e de interesses individuais são mais visíveis e utilizadas em detrimento de procedimentos programáticos, mais universais e coletivos, evidenciando a persistência de distribuição de bens e favores, especialmente na política local, onde apesar das mudanças nos processos democráticos das últimas décadas, os vínculos personalistas e informais ainda permeiam o comportamento de políticos e eleitores.
No caso do Brasil, soma-se à desigualdade e à pobreza um alto número de municípios de pequeno porte, em torno de 90%, e com grande dependência de recursos federais. Com isso, a relação clientelista acaba se tornando uma forma de garantir acesso a bens públicos, aliando-se ao corporativismo operando com estruturas formais na intermediação de interesses.