Cêdo á soffreguidão do estomago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensanguentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus proprios similhantes
Eis-me sentado á mesa!
Como porções de carne morta... Ai! Como
Os que, como eu, têm carne; com este assomo
Que a especie humana em comer carne tem!...
Como! E pois que a Razão me não reprime,
Possa a Terra vingar-se do meu crime
Comendo-me também.
Augusto dos Anjos
Na noite anterior, um clarão muito forte explodira no céu, alcançando o chão da Terra na forma de uma lança de luz. Imediatamente uma árvore foi tomada pelo que dali em diante todos entenderiam como fogo, conquanto naquele tempo ainda não houvesse palavra, esta ou quaisquer outras mais, “conquanto”, “houvesse”, senão os conjuntos de toques, gestos, os gritos e agora este — fogo. Foi, portanto, sem dizer palavra que, ao verem que aquelas chamas tornavam claro o entorno – “entorno” – e afastavam, em tese, o perigo, os da comunidade decidiram mantê-la acessa pela madrugada, não demorando mais que um instante para descobrir como fazê-lo.
De manhã, o homem foi ao mar recolher a carne que havia posto para salpresar. Já há algum tempo o seu pessoal sabia que os animais duravam mais quando enxercados, além de adquirirem um sabor melhor. Pois o que ocorreu: assim que juntou os retalhos e voltou para os seus, o homem viu a mulher, as crianças que ela havia produzido e o restante da sua pequena tribo sob o ataque de um grupo estrangeiro. Sem demora, o homem lançou o seu corpo contra os inimigos, não sem antes jogar as suas carnes no fogo, na esperança de que ali elas restariam a salvo do saque.
Alguns minutos depois, quando já se fazia impossível não notar o cheiro de morte que queimava o ar do assentamento, os que restaram daqueles dois povos foram, aos poucos, tornando-se um só, à medida que iam montando guarda em torno das labaredas, esperando-as abrandar. Algo de novo se passava em seus corpos, seus narizes e estômagos de pós-guerra: nas fronteiras do calor, a trégua se dava, de repente, em razão da importância de uma espera, e as esperas, de então em diante, passaram a vigorar como um sinônimo das tréguas.
De certo modo, tudo isso explica por que demorariam algumas dezenas de centenas de milhares de anos para que aqueles armistícios passassem a abranger, também, os animais cujas tiras ardiam sobre as brasas.