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Nãna

Foto: Ed Leszczynskl



2023-03-24

Curadoria de Micheliny Verunschk 

 

A primeira coisa com a qual tive que me acostumar foi com o cheiro de sangue. Ele estava por toda parte, impregnava minhas narinas, me perseguia nos sonhos; e, até hoje, resiste nas minhas lembranças. Esse sangue tinha um cheiro doce que lembrava o vapor da sopa de beterraba que minha mãe costumava fazer para ajudar a curar a anemia crônica que eu tinha na infância. Era um sangue que escorria de corpos inocentes, incapazes de pecar e que, por esse motivo, se assemelhava à seiva dos vegetais ou ao pólen das flores.

Depois tive que me acostumar com os olhos - olhos que me observavam conscientes do seu destino trágico. O senhor Aparecido conhecia o abatedouro “Vamos Ver o Sol” como ninguém. Ele trabalhava lá há quase trinta anos e morava em uma casinha que ficava na parte traseira da propriedade, ao lado de um alojamento, praticamente improvisado, no qual também viviam alguns funcionários antigos que, por diversos motivos, não tinham aonde ir.

“Os bois são transportados do pasto por essa rampa”, lembro que ele explicou, apontando para o chão de madeira manchado de fezes, “e, a partir desse momento, consomem apenas água por vinte e quatro horas. Para os animais serem abatidos, eles precisam ter uma certificação do estado, que funciona como uma espécie de salvo-conduto, um carimbo que atesta que eles vieram da fazenda, vacinados e com saúde e caso algum animal apresente qualquer sintoma de doença, de infecção ou de fraqueza, ele é levado para outra unidade e convertido em ração para animais”.

Atualmente, os animais do abate são atordoados. Eles recebem uma espécie de injeção para diminuir a sensibilidade deles, e, a partir desse momento, apenas o coração e os pulmões continuam funcionando, mas, antigamente, não era assim. Os bois eram suspensos por um guincho para o escoamento de água - sem nenhum sedativo - e depois de vinte e quatro horas, iam para a sangria, onde eram mortos com um corte certeiro na jugular; o sangue deles era recolhido em grandes bacias e, na sequência, eles passavam para a esfola. Nessa fase, retiravam seus cascos, couros e vísceras. De acordo com o Senhor Aparecido, “o abatedouro Vamos Ver o Sol estava à frente do seu tempo e não aceitava desperdícios”. Por último, a cabeça do boi era cortada e era feita uma inspeção detalhada em cada um dos seus órgãos, no sistema linfático e nas carcaças traseiras e dianteiras dos animais - e foi nesse setor que fui contratada para trabalhar.

Lembro que aceitei o emprego balançando a cabeça, sem palavras, tentando agir de forma natural, mas passei a noite inteira tendo uma série de pesadelos nos quais eu corria nua e ensanguentada pelos campos, sentindo os olhos dos bois que aguardavam a morte - me observarem.

No meu primeiro dia de trabalho, levantei de madrugada, antes de o despertador tocar. Coloquei o uniforme branco que havia recebido do senhor Aparecido na mochila, peguei meu crachá, minha marmita e minha carteira que, até então, não tinha nenhum registro, e fui para o ponto de ônibus aguardar pelo transporte da empresa. Além de mim, sete trabalhadores esperavam pela Kombi. Eu conhecia todos de vista, aquela vila era um ovo, mas apenas uma mulher e um rapaz me cumprimentaram.

Fazia um mês que minha mãe tinha falecido e, durante o jantar, que preparei na noite anterior, meu pai (que cheirava à bebida) não parava de se gabar por ter conseguido (graças aos seus contatos) aquele emprego para mim. Meus dois irmãos menores estavam contentes. Eles passavam a tarde torturando ratos, atirando pedras em passarinhos ou pescando no riacho e achavam que trabalhar no abatedouro era divertido; que nunca mais teriam que comer repolho, tomates ou ovos fritos. Antes da morte da minha mãe, meu sonho era ir embora para uma cidade grande, cheia de prédios, lojas, carros e cinemas, mas agora, eu não podia partir. Tinha me transformado em uma prisioneira e durante o trajeto de uma hora, que separava nosso vilarejo de uma dúzia de ruas, da fazenda, compreendi que a tristeza dos bois vinha da consciência que eles tinham do seu destino.

Nosso turno começava cedo. Entrávamos às sete horas da manhã. Tínhamos direito a quarenta e cinco minutos de almoço - folgávamos aos domingos e feriados e aos sábados, trabalhávamos quinzenalmente, em esquema de revezamento. Assim que entrei no vestiário senti meu estômago embrulhar, fiquei verde e a mulher que havia me cumprimentado na Kombi me arrumou um comprimido.

- No começo é assim mesmo, mas você se acostuma com o cheiro. Ela disse, sem me olhar.

Agradeci a gentileza e me dirigi, de forma tímida, para o meu setor.

Quando cheguei, o senhor Aparecido já me aguardava. Ele pegou minha carteira de trabalho e me apresentou para o supervisor: um jovem negro e calado chamado Mauro. Para falar a verdade, quase todo mundo ali era negro, inclusive eu e a maioria dos moradores da nossa vila - que algumas pessoas diziam que tinha sido originada de um antigo quilombo. Minha mãe contava que a mãe dela era neta de uma antiga escrava fugida que se chamava Escolástica. Diziam que ela era uma feiticeira e que, antes de fugir, havia matado o patrão e se refugiado entre as mulheres que seguiram os soldados na guerra do Paraguai; e eu gostava de escutar essa história, essa e a do meu nome, Nãna, que minha mãe afirmava ter tirado de uma artista de cinema, em uma das pouquíssimas vezes que tinha conseguido assistir a um filme na cidade, mas minha avó dizia que isso não era verdade, que minha mãe nunca tinha ido ao cinema e que Nãna era o nome de um espírito - que tinha aparecido nos seus sonhos - e toda vez que elas entravam nesse assunto, elas discutiam.

O frio da câmara frigorífica me assustou. Mas era lá que ficavam guardados os restos mortais que eu tinha que examinar. Mauro me deu um avental de pano, uma touca e luvas de borracha e me alertou para que eu não me trancasse dentro da geladeira, (que tinha um sistema semiautomático de abertura e de fechamento), além do tempo permitido, de jeito nenhum.

A câmara frigorífica era um dos recursos mais avançados do abatedouro. Na nossa vila, quase ninguém tinha geladeira em casa e, para ser sincera, até aquele dia, eu nunca tinha visto uma tão grande. Ele me acompanhou por umas duas horas me explicando o que era cada órgão e a textura que deveriam apresentar. Caso não houvesse problemas, bastava colocar, de maneira ordenada, cada um, em seu devido lugar. Existiam recipientes para coração, rins, fígado, pulmão, intestino e cabeça. Nessa etapa, o sangue, as vísceras, os cascos e o couro do boi já haviam sido retirados e ele já havia sido cortado em dois. Também era muito importante separar a veia aorta, que estava começando a ser vendida para fins medicinais.

Por motivos de saúde e de lei, desde que o abatedouro havia sido legalizado, a cada duas horas de trabalho, eu tinha direito a um intervalo de quinze minutos. A porta não era automática, então, quando eu entrava, Mauro a fechava, e após duas horas, um apito soava e eu saía. E após quinze minutos, tudo se repetia. Era um trabalho chato, monótono e triste, mas pelo menos eu ganhava bem e trabalhava sozinha, livre dos olhares desconfiados que, ao longo dos anos, tinham se estendido dos bois para os trabalhadores locais.

Depois de uma semana, eu já havia me habituado à constante mudança de temperatura e o cheiro agridoce de morte, que passou a me acompanhar, deixou de me incomodar.

Na minha segunda semana de trabalho, o rapaz que costumava me cumprimentar na Kombi, pediu permissão para almoçar comigo e eu consenti. O nome dele era Gentil - me apresentei - mas ele disse que sabia quem eu era, eu era “Nãna”, a única menina da vila que, depois de ter terminado o ginásio, foi fazer o colégio na cidade. Fiquei envergonhada. Não porque ele disse que me conhecia, o que - naquele lugar - era mais do que previsível, mas por ter que admitir que eu não tinha conseguido concluir a escola e me tornar professora, como havia planejado. Por causa da doença e da morte da minha mãe, precisei voltar e não concluí os estudos.

Eu também o conhecia de vista. Ele era quatro anos mais velho do que eu e quando era criança, vivia sujo e brigando pelas ruas, como meus irmãos. Além disso, a única informação que eu tinha sobre ele, era a de que sua mãe tinha ficado maluca e, por causa disso, foi internada em um manicômio, depois de ter andado pela vila inteira nua, em uma noite de lua cheia. Mas algumas pessoas diziam que isso era mentira, que, na verdade, ela havia fugido com outro homem, e com vergonha por ter sido traído, seu marido inventou essa história absurda.

Sempre fui tímida e os dois anos que passei estudando na cidade reforçaram em mim essa impressão, porque a maioria das meninas da minha classe era branca, andava sempre com roupas bonitas, perfumadas, com batom e me tratavam com desprezo.

Eu tinha dezessete anos e era virgem. Nunca tinha tido um namorado. Achava-me feia, magra e desajeitada. Eu e Gentil passamos a almoçar juntos todos os dias. Era ele quem dava o golpe mortal na jugular dos bois; e dizem que era muito bom nisso. Aos poucos, nos tornamos amigos, e esses quarenta minutos de intervalo compartilhado colaboravam para tornar minha rotina mais alegre, apesar do olhar apático da maioria das pessoas que nos rodeava; do calor infernal entrecortado pelo frio do frigorífico e dos animais que subiam a rampa, tristes e desiludidos.

O abatedouro tinha quarenta funcionários. Eu e mais sete, morávamos na vila. Doze moravam na cidade, que ficava a uns cinquenta quilômetros de distância, oito moravam na roça, em localidades próximas à fazenda e os demais moravam no alojamento improvisado do próprio abatedouro. De acordo com Gentil, os moradores do alojamento eram funcionários antigos, da época em que a fazenda não havia sido legalizada e os bois eram assassinados sem a ajuda de nenhum método científico, de forma mais violenta e primitiva ainda.

Entre esses funcionários que moravam no alojamento, havia uma menina que me chamava a atenção. Ela devia ter uns quinze anos, não aparentava ser muito certa da cabeça, trabalhava fazendo pequenos serviços de limpeza, lavando o chão, limpando a cozinha, essas coisas, e toda vez que eu e Gentil conversávamos, ela ficava nos observando, de uma maneira sombria.

Gentil me contou que ela era órfã. Foi o pai dela quem ensinou o ofício de cortador de carótidas para ele, mas, infelizmente, um dia, um boi que estava mais revoltado e esperto do que deveria - se soltou - e movido pela adrenalina, o atacou. O homem não resistiu e morreu antes de chegar ao hospital. Ele era viúvo e morava com a filha deficiente no alojamento. Não conseguiram contatar ninguém da família e, com dó, o Senhor Aparecido a deixou ficar ali, fazendo pequenos serviços de limpeza em troca de casa e comida. O nome dela era Filomena e ela era muito arredia, parecia até um bicho, não conversava com ninguém e vivia se escondendo.

***

 Demorou um mês para que eu e Gentil começássemos a namorar. Eu estava apaixonada e minha vontade de ir embora sumiu. No início, fiquei um pouco desconfiada das intenções dele, porque, apesar de ser pobre como eu, ele era branco (um dos pouquíssimos homens brancos daquele lugar), mas com o passar do tempo, essa desconfiança me pareceu uma tolice e desapareceu. Por sorte, quando ele me pediu em namoro, eu já havia recebido meu primeiro pagamento e, apesar de ter arcado com a maioria das contas de casa e com a dívida do armazém, me sobrou um pouco de dinheiro, o suficiente para comprar um vestido, um desodorante e um batom.

Encontramo-nos domingo na praça, em frente à igreja. Era a primeira vez, desde que nos tornamos amigos, que nos vimos fora do abatedouro. Ele estava com uma camisa bonita, perfumado. Cheirava à limão, mas, mesmo assim, eu senti aquele leve aroma agridoce e enjoativo de sangue que nos perseguia e, ao mesmo tempo, nos unia - como se compartilhássemos um estigma que era imperceptível para as pessoas comuns.

Demos uma volta pela praça de mãos dadas. Sentamos em um banco vazio e ele comprou um saco de pipoca doce que dividimos e que deu um sabor de infância ao nosso primeiro beijo. Eu sabia que - logo - meu pai descobriria, porque as pessoas falariam, mas não me importei. Era eu quem sustentava a casa e quem cuidava dos meus irmãos. Era eu quem fazia janta todos os dias, quem pagava as contas de água e de luz e ia às reuniões escolares dos filhos dele, escutar, pacientemente, as reclamações dos professores; e eu não ia ser submissa àquele homem inútil, como minha mãe havia sido.

Na segunda-feira à noite, meu pai chegou mais bêbado do que de costume e, conforme eu já esperava, assim que entrou em casa, começou a me chamar de puta e de vagabunda. Ele ameaçou me bater, mas me levantei, joguei os pratos no chão e gritando, mandei ele se afastar, deixando bem claro que não iria aceitar aqueles insultos.

- Se você tocar em mim, juro que saio por aquela porta e não volto nunca mais, entendeu?

Eu nunca tinha gritado com meu pai. Ele ficou atônito, estático, com a mão no ar. Não estava acostumado a ser desobedecido, principalmente por uma mulher. Depois, sem saber o que fazer, começou a chorar, e meus irmãos saíram correndo para não serem testemunhas do momento da queda daquele demônio bruto. Minha avó dizia que existiam dois tipos de bêbados, os covardes e os bondosos, e, infelizmente, meu pai pertencia à primeira categoria. Depois que se acalmou - ele me olhou nos olhos - e, pela primeira vez, lamentou a morte da minha mãe, a mulher que, ao longo dos anos, ele tinha ajudado a matar. Minha mãe se afogou no rio. A maioria das pessoas acreditava que ela havia morrido de forma natural, por causa do câncer, mas eu e meu pai sabíamos que havia sido suicídio, porque, além de termos encontrado seu corpo boiando na água, ela deixou um bilhete, que nós dois decidimos rasgar.

Um dia, fui até a venda comprar pão e quando voltei, ela não estava na cama. Atrás da nossa casa passava um rio, e quando não a encontrei onde a havia deixado, apesar de surpresa, soube o que tinha acontecido. Joguei os pães no chão e corri até lá, mas era tarde e quando a avistei, ela flutuava desfigurada. Era um domingo. Chamei meu pai e a retiramos da água. Enxugamos seu corpo, trocamos sua camisola e a deixamos sentada no sofá - como se nada tivesse acontecido. Meu pai disse que não queria que minha mãe fosse enterrada feito uma pagã, fora do cemitério, como naquela época costumavam fazer com os suicidas. Essa foi a primeira e única vez que ele fez alguma coisa por ela, mas, até hoje tenho minhas dúvidas. Não sei se a preocupação dele era legítima ou se, na verdade, ele tinha agido assim com medo de ser acusado por algum crime, ou seja, por covardia.

 Contei o incidente da briga com meu pai para o Gentil, que me pareceu incomodado. Ele disse que, se eu quisesse, ele ia até minha casa conversar, explicar a situação, me pedir em namoro, como era certo, mas não deixei. Mesmo morando no fim do mundo, eu julgava que pedir a mão das moças para o pai era algo antiquado, que ninguém deveria fazer. A decisão é minha, falei, e o que o meu pai pensa - não me interessa. Gentil me escutou e respondeu que faria o que eu achasse melhor, mas - algumas semanas depois - estava instalado no meu sofá, assistindo futebol na televisão que eu havia acabado de comprar e tomando cachaça com o velho, como se os dois sempre tivessem sido amigos.

Após seis meses de namoro, eu e o Gentil transamos pela primeira vez, em um quartinho apertado e sujo que ficava próximo ao alojamento dos trabalhadores do abatedouro. Era um sábado abafado de abril, véspera do domingo de Páscoa. Geralmente, os sábados eram mais tranquilos, havia menos animais para abater e embalar e apenas vinte funcionários cumpriam suas rotinas, de forma morosa e lenta. Nesse sábado, às duas horas da tarde, nós já estávamos ociosos, sem ter o que fazer, mas, mesmo nessas circunstâncias, nosso patrão não permitia que o motorista nos levasse de volta à vila, antes das dezessete horas.

Quando isso acontecia, a maioria dos funcionários que dependiam do transporte da empresa, se sentavam nas sombras e ficavam fumando cigarros, bebendo o resto do café que eles mesmos traziam, descascando frutas que encontravam nas redondezas ou descansando em silêncio. Raramente havia risadas ou conversas. Era como se a presença dos bois que logo seriam atingidos por um destino terrível, não permitisse nenhum segundo de descontração. Nosso ambiente de trabalho era tenso e quando separei o último coração e saí da câmara frigorífica tirando a roupa protetora e as luvas ensanguentadas, Gentil me puxou para um canto e me beijou. Fiquei com medo de sermos descobertos e despedidos, mas ele me acalmou, disse que conhecia um lugar seguro e me arrastou até um quartinho, que ficava bem afastado de tudo e no qual eu nunca tinha reparado.

Foi um sexo apressado e grosseiro, bem diferente do que eu havia imaginado. Nós dois cheirando a sangue de boi e suor em cima de um colchãozinho encardido. Ele chupou os meus peitos, enfiou o dedo na minha vagina e, em menos de cinco minutos, me penetrou com força, rindo. Durante esses seis meses, nós já havíamos feito quase tudo e quando finalmente aconteceu - ao invés de me sentir feliz - me senti suja. Estranha - pelas coisas terem acontecido daquele jeito, mas ele me abraçou e, apesar da dor, não tive coragem de reclamar.

Quando saímos, Filomena estava sentada na porta. Ela estava zangada. Encarou-me e começou a dizer coisas sem sentido e a me insultar:

- Você vai me pagar sua porca. Ela sussurrou.

- O que você disse? Perguntei, tentando entender o que estava acontecendo e ela começou a gritar.

- Porca! Porca! Porca!Porca!Porca! Porcos! Todos vocês.

Gentil me deu a mão e saímos correndo. Eu estava apavorada, mas ele ria.

- Ela tá brava porque transamos na casa dela.

Fiquei furiosa.

- E você sabia disso?

- É claro, não fica brava, ela é doida, ninguém liga pro que ela diz. É só um lugar.

Puxei minha mão com raiva, entrei no vestiário feminino, coloquei um pouco de papel higiênico na minha calcinha para evitar que meu sangue sujasse minha roupa e fiquei lá até o motorista me chamar. Essa foi nossa primeira briga e também foi a primeira vez que desconfiei do caráter do Gentil. Achei que ele não ia mais me procurar, mas, no dia seguinte, ele apareceu e agiu como se nada tivesse acontecido. O ignorei, mas ele se sentou no sofá, entregou uma caixa de doces para meus irmãos que saíram correndo contentes com o presente e ficou assistindo ao jogo de futebol com meu pai. Por causa do domingo de Páscoa, eu tinha feito um almoço especial, uma macarronada com frango assado e fui para a cozinha lavar a louça. Depois, ao invés de me unir a eles, me sentei na minha cama, pintei minhas unhas de vermelho e fiquei folheando um livro que eu havia ganhado de presente de aniversário da minha antiga patroa, na época em que ainda sonhava em me formar.

Quando o jogo terminou, Gentil apareceu. Bateu na porta do quarto e pediu para entrar. Deu-me uma rosa, se desculpou, e concordei em sair para tomar um sorvete. Naquela época, ele ainda me comprava rosas e sorvetes. Meu pai o adorava, ele era bom com meus irmãos e acabei perdoando ele pelo que tinha acontecido no dia anterior. Tentei explicar como me sentia, mas ele não compreendia. Para Gentil, o importante era a gente e não o lugar. “Por que você se importa tanto com uma doidinha” Ele falou. Mas insisti que não queria nunca mais transar no quarto dela e, após essa discussão, passamos a usar o quarto dele para nos encontrar, o que me desagradava, porque ele morava com o pai: um velho pedreiro que estava sempre de cara amarrada e não costumava me cumprimentar, provavelmente, porque eu era negra; e eu sempre escutava ele se referir a mim como uma mulher suja e vulgar, entre outras ofensas.

Gentil falava que seu pai era um idiota, para eu não ligar e quando me dei conta, após alguns meses, não havia mais voltas na praça, rosas ou sorvetes, só os almoços de domingo na minha casa e aquelas quatro paredes caiadas, enfeitadas com um pequeno crucifixo; onde ele me penetrava sempre de forma violenta; e no qual apenas o olhar triste de um cristo desbotado parecia me enxergar.

***

Um dia, Mauro, que era muito calado, me chamou em um canto e disse que não era da conta dele, mas, como eu era uma boa moça, decidiu me avisar: “Tome cuidado com o Gentil”, ele murmurou: “O mal nem sempre tem cara de mal. Por que você está falando isso? Perguntei, mas ele disse que não tinha mais nada para contar e se fechou no seu costumeiro silêncio.

Aquilo me intrigou e no sábado à noite que se seguiu a essa estranha conversa com o Mauro, falei que queria sair para tomar um sorvete, mas Gentil se recusou. Disse que estava sem dinheiro. Fiquei brava e ele me contou que o pai estava muito doente e que ele tinha gastado boa parte do seu pagamento em remédios e exames. Para mim, o velho parecia o mesmo, se arrastando encolhido pela casa, feito um galo de rinha, com sangue nos olhos, pronto para me atacar. Ofereci-me para pagar, mas ele disse que não podia aceitar - que seria uma vergonha ser sustentando por uma mulher. Fiquei irritada, mas ele foi inflexível, e, no dia seguinte, apareceu em casa, como fazia todos os domingos, meio-dia em ponto, de banho tomado, pronto para almoçar.

Durante anos eu tinha sido a melhor aluna da escola e quando concluí o ginásio, minha professora de Língua Portuguesa, foi até a casa da minha mãe para dizer a ela que achava uma pena eu parar de estudar. Minha mãe estava em dúvida. Ela queria que eu estudasse, mas não tinha dinheiro para me enviar para outro local e onde morávamos não existia escola que oferecesse o antigo segundo grau. Minha professora Clarice já contava com isso e tinha arrumado uma solução. Segundo ela, sua irmã mais velha tinha uma padaria na cidade e estava precisando de alguém para ajudar. Se eu topasse, poderia morar com ela, trabalhar na padaria e, em troca, frequentar o curso de magistério no período noturno. Aceitei na hora. E perturbei tanto minha mãe que, apesar das brigas com meu pai, ela acabou cedendo. Foi a primeira vez que ela passou por cima da autoridade dele e quando entrei no ônibus, carregando minha mala quase vazia, ela começou a chorar. Senti o coração apertado, mas sabia que aquele choro era de alegria e sentada no banco do ônibus, quando ele partiu, nem olhei para trás, com medo de que aquela paisagem desolada se colasse à minha alma e me desse azar.

A dona da padaria me arrumava algumas roupas usadas, comprava meu material escolar e, de vez em quando, me dava algum presentinho ou um pouco de dinheiro, mas era tão pouco que mal dava para comprar um lanche na cantina da escola. Só consegui ir até minha vila visitar minha mãe algumas vezes porque minha professora comprou minha passagem ou me levou. Apesar de tudo, eu estava indo bem nos estudos e estava feliz. Só faltava um ano para concluir o magistério e, depois disso, eu poderia dar aulas e tinha planos de conseguir um emprego melhor.

Uma tarde, eu estava atendendo os clientes na padaria, como sempre, e tomei um susto quando vi minha mãe entrar pela porta. Demorei alguns segundos para me convencer que, de fato, era ela, e não algum espírito zombeteiro que me chamava por meu nome de batismo. Ela sorriu, mas estava magra e pálida e descobri que o motivo da visita era a realização de alguns exames. A dona da padaria me concedeu um intervalo e conversamos. Ela tentou me acalmar, disse que tudo ficaria bem, que tinha conseguido os remédios no posto de saúde e que estava se sentindo melhor. Fomos a pé até a rodoviária. Apesar de a cidade ser bem maior do que a nossa vila, aquela era uma cidade pequena. Fiquei responsável por buscar o resultado dos exames, mas antes que eles ficassem prontos, minha mãe caiu de cama e, pela primeira vez, a dona da padaria me concedeu alguns dias de folga e pagou minha passagem de ônibus. Retornei para casa com a intenção de cuidar dela por um tempo e voltar, mas não foi o que aconteceu.

Alguns dias depois da minha chegada, minha professora apareceu em casa com os laudos médicos e com uma sacola de remédios. Ela tinha conversado com o oncologista e as notícias não eram boas. Minha mãe estava com um câncer avançado e não sobreviveria. Na sacola, ela tinha trazido um monte de comprimidos de morfina. De acordo com ela, aliviar a dor era tudo o que podia ser feito. Aliviar a dor e rezar. Cuidei dela por quatro meses, até ela fugir para o rio e se afogar. Foi difícil. Eu tinha combinado com a dona da padaria que, assim que fosse possível, eu retornaria. Queria concluir a escola, mas como meu pai era um imprestável e eu tinha dois irmãos pequenos, um de dez e outro de onze anos, quando ela morreu, não tive coragem de abandoná-los e decidi ficar mais um pouco, para ajudá-los a se organizar.

Aquelas palavras do Mauro ficaram ecoando na minha cabeça. Já fazia quase dois anos que eu e Gentil estávamos namorando e ele nunca tocava na palavra casamento. Eu não tinha nenhuma amiga. Todo mundo da vila sabia que a gente transava e me chamava de vagabunda e de prostituta pelas costas, me evitava. No trabalho, além das palavras do Gentil e das ordens do Mauro, o único som que eu escutava eram os mugidos tristes dos bois, o barulho do motor da geladeira e, quando tinha sorte, o vento.

Um dia, comentei com o Gentil que queria ficar noiva e ele riu. “Noiva pra quê? Noivo a gente fica de mulher virgem. Aquilo me atingiu como uma faca. Ele tentou me abraçar, disse que estava brincando, mas saí correndo e mandei aquele desgraçado sumir da minha vida.

No domingo seguinte, ele apareceu em casa, como se nada tivesse acontecido e, pela primeira vez, criei coragem e o expulsei. Eu precisava pensar e ao invés de passar uma boa parte do meu domingo fazendo almoço e lavando louça, me enfiei na mata e comecei a andar para tentar colocar as ideias em ordem. Acho que já tinha andado umas duas horas por caminhos que eu não conhecia ou nos quais nunca havia prestado atenção quando ouvi uma voz me chamar. Era a voz do Mauro. Ele morava em uma casa afastada, que ficava naquela região e, quando me viu, me convidou para tomar um café.

Aceitei e após alguns minutos de silêncio, ele me perguntou do Gentil. Fiquei sem graça, mas contei que havíamos brigado e que eu havia expulsado aquele traste da minha casa e saído para andar. Ele sorriu, parecendo satisfeito, mas não fez nenhum comentário. Ao invés disso, mudou de assunto e me perguntou se eu tinha gostado do café. Não me contive e quis saber o motivo de ele ter me dito aquela frase enigmática de que nem sempre o mal tinha cara de mal. Eu queria saber o que ele quis dizer com isso. Ele ficou pensativo e disse que, se tivéssemos sorte, e eu concordasse, no dia seguinte, durante o nosso turno de trabalho, talvez, ele pudesse me mostrar. 

Na segunda-feira, no meu primeiro intervalo de quinze minutos, subi na moto velha dele. Pensei que iríamos para algum lugar distante, mas ele parou em frente aquele quartinho imundo, que ficava ao lado do alojamento de madeira dos funcionários, no qual eu tinha perdido minha virgindade e desceu. A princípio, não entendi, fiquei com medo de que ele me agarrasse à força, mas, se essa fosse a intenção dele, no dia anterior, não haviam faltado oportunidades. Fui à frente e assim que me aproximei escutei alguns gritos e uma voz parecida com a do Gentil. Olhei pela janela e, quando o vi, constatei que a voz era, de fato, a dele, e os gritos da Filomena, que estava sendo currada, de uma forma bem violenta. Ao nos ver, ele tentou se vestir apressado, mas Mauro entrou e deu um soco certeiro nele. Segundo ele, fazia tempo que estava tentando pegá-lo em flagrante e finalmente conseguiu. Corri atrás da Filomena que saiu nua e se misturou desesperada com os bois. Consegui alcançá-la e a abracei. Os bois nos rodearam e começaram a mugir, como se quisessem nos consolar; e então eu compreendi que os únicos seres confiáveis daquele lugar eram os animais.



Vanessa Molnar

É Historiadora e Mestre em Estudos Culturais pela Universidade de São Paulo. É autora dos livros Crônicas de Uma Tara Gentil, pela editora Escrituras, publicado com verba do PROAC de São Paulo e dos romances: A Importância dos Telhados que ganhou o prêmio Nacional da Editora CEPE na categoria Romance e foi semifinalista do prêmio Oceanos de 2020 e de A Rota dos Ratos publicado pela editora Patuá em dezembro de 2021. Além disso, possui uma série de contos e poemas publicados em antologias. Foi Executiva Pública na Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, professora e Conselheira de Cultura na área de Literatura da Prefeitura de Santo André.




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