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Dia das Mulheres, o rescaldo

Foto: Simone de Beauvoir. Reprodução



2023-03-22

 

No final do passado dia das Mulheres, eu tinha de brindes na bolsa uma flor e um creme para as mãos e, na cabeça, um pensamento secreto: “Ufa, acabou.” Naquele dia passaram as coisas mais aflitivas pela minha timeline e na pesquisa que não resisti a fazer depois. Maldito vício do jornalismo. No fundo, foi como uma viagem no túnel do tempo para aquele momento histórico seminal em que os homens, aparentemente com muita propriedade, explicam como são as mulheres, o que fez com que, século após século, as mulheres acreditassem neles.  

Teve de tudo. Um deles exaltou a Sharon Stone, que fez 65 anos e continua linda de morrer, uma das mulheres mais sexys do planeta e que não inventou desculpas para aplicar botox. Em seguida, o sujeito criticou a Madonna por ter aplicado botox, dizendo que por isso ela deixou de ser punk. Houve um que postou uma foto de cinderela moderna exaltando a mulher virtuosa cujo valor excede ao de rubis, e nessa hora lembro de ter levantado para buscar um antiácido.

Houve um psiquiatra que inventou um curso para as mulheres se apaixonarem por elas mesmas, um pai que disse que as filhas serão sempre as princesinhas do papai, uma coach evangélica (sim, isso existe) lembrando que a mulher deve temer ao Senhor, outra dizendo que as mulheres são o alicerce da vida, são luz, inspiração e encantamento por onde passam, e nessa hora passou um homem mandando um abraço solidário para as mulheres, o que achei até coerente. Outro fez questão de marcar que a luta feminina deve ser para que a feminilidade continue respeitada e valorizada; muitos preocupados em dizer que os avanços contra a desigualdade social estão acontecendo, vejam bem, mas que sem a mulher não há poesia, e nessa hora apareceu um vídeo de uma loura angelical correndo na praia com os cabelos ao vento, deixando cair um pouco a camisa e mostrando o ombro bronzeado.

Já tinha perdido o sono, engolida por aquele redemoinho de exaltação fúnebre. Ser mulher é... “fazer 30 coisas ao mesmo tempo e todas bem feitas; é lembrar detalhes, datas, eventos e tudo o que for inimaginável”. Estava começando a pensar na hipótese de explicar à autora dessas frases o que é o mental load quando li a frase seguinte: “Ser mulher é se esforçar um pouco mais para mostrar seu potencial”. Obviamente não bastaria explicar só o que é o mental load. Para arrematar, outra assumiu seu papel de objeto afirmando, em lapso fatal, que a mulher pode ser quem e “o que” ela quiser.

Haveria ainda aqueles que esbravejariam contra o gênero neutro (É o disparate!) e vaticinariam, do alto de seus pedestais de privilégio, que a literatura não existe para ser inclusiva ou exclusiva, esquecendo que ela pode ser uma coisa ou outra e que a linguagem inclusiva é fundamental porque, sem um nome, não se existe. Outro afirmou ser um pleonasmo dizer que uma mulher é cis, esquecendo que os atributos sexuais são um dado biológico, mas que o gênero é produto de um processo histórico. Este mesmo senhor muito esquecido escreveu que, com o “ataque” aos binários, a mulher começa a ser erradicada do seu próprio universo. Ena, que maravilha seria isso, pensei, mas a esta altura já estava esgotada demais para gritar, com voz rouca, que a História da mulher é ser desde sempre e continuamente erradicada da sociedade e, em seguida, encarcerada no seu “universo”, como se o universo não fosse de todos.

Estava muito cansada com todos os afazeres do dia para rebater os que ridicularizam as siglas LGBTQIA+ dizendo que é preciso um curso para aprendê-la, e ora bolas, não são todos tão orgulhosos de suas notas escolares? Pois que aprendam mais essa e decorem muito bem para o teste, senhores, porque só depois vai ser possível interpretar a identidade em chave aberta, como escreveu uma amiga, uma das poucas pessoas lúcidas do dia, lembrando que as alteridades são, sim, trincheiras de luta. Afinal, não custa lembrar, não há nada de “natural” na coletividade humana, que é eminentemente cultural. Mas ela era uma contra dezenas de “guardiões das fronteiras” que criticam Judith Butler e Donna Haraway e qualquer outro ser pensante que ouse pensar diferente deles e, heresia maior, ouse mexer na língua portuguesa, como se o lugar da linguagem fosse o museu e não a rua.

Nestas horas, volto sempre à Simone de Beauvoir como quem pede um colo de mãe. Recupero meus cadernos com todas as minhas notas como quem procura uma receita especial e sempre encontro, porque está tudo lá. Beauvoir poderia dizer à coach, por exemplo, que é a suprema vitória masculina que se consuma no culto de Maria: “É a reabilitação da mulher pela realização da sua derrota. É a vontade de Deus que a escraviza ao homem e, enquanto serva, a mulher tem direito às mais esplêndidas apoteoses.”

Escravizada como mãe e querida como mãe (“Há uma má fé extravagante na conciliação do desprezo que se dedica às mulheres com o respeito com que são cercadas as mães”), a mulher é em grande parte uma invenção do homem e vive de acordo com os mitos que escrevem sobre ela. No entanto, lembra Beauvoir, é negando a ideia de mulher que se pode ajudar a mulher a ser considerada um ser humano, porque é apenas platônico o conceito de que só as ideias de virilidade e feminilidade é que abarcam o ser.

Há uma recusa do homem em ser uma carne “surdamente habitada pela vida e pela morte”, por isso é tão importante jogar esse mistério todo nas costas das mulheres, e assim a “verdadeira mulher” do dia das Mulheres é aquela que aceita, sem reticências, definir-se como o Outro. O mito da mulher é, enfim, um luxo para o homem. Sai pra lá, encosto. Postei mentalmente, ainda de Simone: “A mulher já foi tudo. Exceto ela mesma. A ideia do ‘eterno feminino’ deve ser rejeitada no armário das velharias ”.

Desliguei o computador e fui assistir ao excelente documentário espanhol Que R#io se está a passar?, da Netflix, que aborda a desigualdade de gênero na Espanha e os movimentos feministas recentes naquele país. Simone gostou da companhia de mulheres destemidas como a filósofa Ana de Miguel, a jornalista Nuria Varela e a socióloga Rosa Lobo, todas seguras e incansáveis em dizer que a linguagem também pode ser opressão e que o machismo não tem discurso, porque é impossível explicar com seriedade e lógica o fato de homens terem privilégios em relação às mulheres, ou que é “natural” que elas sejam assassinadas e estupradas.

O que o machismo faz, então? Utiliza violência simbólica e verbal, ridiculariza, desrespeita, despreza, inventa fatos e mitos. O êxito do patriarcado, afinal, foi ter conseguido se tornar invisível. Sem alarde, conseguiu estabelecer os desígnios de Rousseau, o de que o amor romântico é o mais importante das nossas vidas e que as mulheres foram postas no mundo para tornar a vida mais fácil e agradável. Para eles, é claro. Por isso elas não se esquecem de nada, são valentes, cuidadoras, carinhosas, o alicerce da casa, pura poesia, mistério, deslumbre e todo o rol da propaganda de margarina que se repete a cada Dia da Mulher. Tome uma flor pra você, querida.

E por que o feminismo voltou com tanta força, meninas? Porque o neofascismo, com todo o seu componente misógino e consequente aumento da violência sexual, está aí à porta, vide os últimos quatro anos bolsonaristas no Brasil, o trumpismo e as pautas conservadoras da extrema-direita por toda a Europa. O feminismo é a única força capaz de conter esse novo e velho levante, lembram as entrevistadas. Somos em maior número e a maior força-motriz de um país.

Na Espanha, o trabalho não remunerado das mulheres representa 100% do PIB. Segundo dados da Organização Mundial do Trabalho, as mulheres fazem 2/3 do trabalho do mundo e recebem 10% dos salários. Fora isso, é claro, o negócio mais lucrativo do mundo, depois da indústria de armamentos, é a prostituição. Não foi à toa que, naquele país, na quarta onda feminista, o 8M juntou meio milhão de mulheres nas ruas. Quando elas param, o mundo pára.

Fui dormir com uma pontinha de otimismo, abraçada aos meus volumes de Simone, tão anotados e manchados de café, porque a língua é, sim, instrumento de transformação social. Feliz mês das mulheres, mulheres, sejam vocês quem forem. 



Carla Mühlhaus

Jornalista e escritora nascida no Rio de Janeiro. Já foi ghostwriter, mas nunca gostou do termo. Fantasmas não existem e costumam ser invisíveis. Hoje é escritora viva, autora de Nos vemos em Marduk (Patuá) e À sua espera (Dublinense), entre outros. Reside atualmente em Portugal. 




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