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Senhor, escutai as nossas pressas

Imagem: Jean-Auguste Dominique Ingres



2023-03-08

Levarás no equipamento uma pá para fazeres uma fossa, quando saíres para fazer as necessidades. Antes de voltar, cobrirás os excrementos. Pois o Senhor teu Deus anda no meio de teu acampamento para te proteger e entregar em teu poder os inimigos. Teu acampamento deve ser santo, para que o Senhor não veja nada de inconveniente e não se afaste de ti.

Moisés

 

Manhã

Ao ver o filho mais novo atrasadíssimo para a escola e ainda dormindo como um defunto, a mulher o acorda com um beijo mais violento que um tapa, enquanto já pensa na desculpa que dará ao chefe por mais um atraso: “Que o Senhor te elimine e te cape, meu filho”, acaba dizendo, distraída. Em seguida, puxando o molenga pela mão, resmunga baixinho, ao mesmo tempo em que é acometida por um inesperado piriri, correndo para alcançar a van da escola: “Que Deus te abençoe e te sacrifique...”

No que o carro parte com a criança no banco de trás, a mulher levanta as mãos para o céu, dando graças, como quem visse piada nas próprias desgraças: “Deus não escolhe os capacitados, ele decapita os escolhidos.” É só então que ela se lembra da filha mais velha, esquecida no outro quarto, quando também deveria estar naquela van. Sem poder mais se conter, a mulher evacua nas calças, mandando tudo ao diabo.

 

Início de tarde

Horas depois, ao chegar ao trabalho já depois do almoço, Maria resmunga para si mesma, decidida a levar os trocadilhos até o fim: “Se alguém for por nós, Deus será contra nós.” E, presa no elevador no instante seguinte, acaba berrando, simulando a histeria: “Hahaha, SIM, eu CREIO SIM no Deus IMPULSIVO, eu creio SIM!”

Sem ter o que fazer a não ser esperar, Maria se entrega ao exercício criativo: “Todos podem te abandonar, mesmo Jesus.” Ora, as palavras menos e abandono imediatamente a fazem se lembrar do imprestável com quem se casou, levando-a a radicalizar o nonsense: “Se Deus é pornôs, quem será contra...” — mas aí ela se lembra que essa ela já tinha usado.

 

Fim de tarde

Quando finalmente se vê livre do elevador, a mulher é chamada à sala do chefe. Caminhando desistida pelo corredor do escritório, inspira-se nessa: “Vem, Espírito Santo, vem e remova a minha vida!” Na porta da sala, pensando se ainda poderia uma vez mais escapar da inevitável demissão, crava em voz alta, confiante: “Para Deus, nada é possível.”

Mais tarde, enquanto recolhe suas tralhas da mesa, Maria se lembra das palavras proferidas pelo estúpido coaching contratado a peso de ouro para a última reunião de setores e decide ampliar o seu escopo de achados, juntando autoajuda à temática religiosa: “Ora, mas o negócio é viver um dia de cadáver...” Sentindo-se realizada na meta, a mulher esboça o primeiro sorriso do dia — é quando a dor de barriga volta com tudo, ela outra vez no elevador, tudo descendo sem freio.

 

Noite

Chegando em casa, Maria encontra a filha adolescente deitada na mesma posição em que a tinha deixado pela manhã. Ela olha então para os céus, como se procurasse o... — mas tudo o que encontra é uma barata no teto do quarto, pronta para botar o terror. “A esperança é a única que morre”, resigna-se, lançando o chinelo. E, em face do próprio fracasso, resume o caso para os ouvidos moucos da menina, soprando a frase como quem contasse aos outros uma piada interna: “Dorme, enfiada de Deus, dorme que é melhor.”

A caminho do quarto do menino, arrisca uma mais complexa: “Assim vem o Senhor, sarrando todos os enfermos...” É quando ela vê que a sua bombinha de ce-cê e chulé se deitou para dormir sem nem mesmo tirar o uniforme, o que a obriga a emendar: “...até que sejamos todos arrebentados no Juízo Final.” Antes de apagar a luz, a mulher ainda dá um último beijo na peste, já no automático: “Some com Deus, meu filho. Some com Deus.”

 

Madrugada

Quando finalmente pode se sentar no banheiro, a mulher acaba concluindo, rindo de nervoso: “A alergia do Senhor é a nossa forca”. Em seguida, ao ver o estado precário de suas partes íntimas depois de tanta caganeira, acaba caindo no choro, um choro curiosamente atravessado por gargalhadas de horror.

“O Senhor está com trigo”, diz finalmente, antes de dormir de cansaço, ainda sentada na privada. “Deus te ensaboe.”



Ewerton Martins Ribeiro

Funcionário público federal, é mestre em literatura brasileira e doutor em teoria da literatura pela UFMG, universidade em que atua como jornalista. Publicou a novela A Grande Marcha (editoras Circuito e e-galáxia, 2014 e 2015). Nasceu em 1981 em Belo Horizonte, Minas Gerais, no Brasil, onde vive. (Foto: Foca Lisboa.)




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