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8 de março



2023-03-05

Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento. *

São dois ou três homens conversando em 2021. O convidado tem 34 anos e nasceu em Salto, interior de São Paulo, uma cidade de 142 mil habitantes, onde ainda vive. À primeira vista, parece inofensivo. Um dândi afetado com ternos coloridos e relógio enorme. Jeito de bicheiro de novela, camisa aberta, vocabulário cheio de gírias, palavrões e imprecisões. Sem citar nenhum autor, qualificação ou vivência que não seja a sua própria de rapaz saltense, se sente confortável para qualificar e julgar mulheres sobre suas condutas. Escreve livros sobre relacionamento e vende mentorias para ensinar homens a serem homens de verdade, o que significa, basicamente, ganhar dinheiro, cuidar do “shape”, lustrar 5 vezes por dia seus egos e desprezar mulheres. 

Ele representa o Red pill, um movimento de afirmação do patriarcado caquético reiterado como se novidade fosse, e se apresenta como autoridade em comportamento humano quando parece apenas um cara traumatizado e inseguro (e malandro) cujo medo das mulheres escorrega patologicamente para o ódio. 

Esse machista atualizado é meritocrata, empreendedor, vaidoso, flagrantemente inculto e obcecado por consumo e ostentação. Não curte fotos de mulheres nas redes sociais, quer ser curtido por elas, “parem de inflar o ego dessas filhas da puta”, escutei. Eu me espanto com a assertividade com que reproduz ideias há muito fora do debate de tão anacrônicas, preconceituosas e violentas. Ainda que continuem povoando imaginários.

A mulher “de valor” estuda menos do que ele, ganha menos do que ele e é mais baixa do que ele. Usa o sexo como barganha e sua sexualidade só existe endereçada a ele. Deve ser maternal, doméstica, se vestir com recato e não ter perfil nas redes sociais. Deve provar fidelidade e ser obediente. Não pode sair com as amigas e, depois dos 30, aparentemente, deve deixar de existir. 

Demorei a perceber que não estou incluída quando ele se refere a mulheres. Que, para ele, são criaturas nascidas com vagina depois de 1993 e sem filhos. Acima dessa idade, as criaturas com vagina só aparecem no discurso confinadas à família, ridicularizadas ou desprezadas. Quanto menos interesse sexual despertam, menos valem. Quanto mais bem sucedidas, mais odiadas. Ele aconselha que corramos para encontrar um macho nos 12 anos de vida adulta que nos são concedidos, quando podemos escolher os melhores “alfas”, ou teremos de nos estapear pelos “betas” que ainda nos quiserem depois dessa idade. Como se nossas vidas fossem uma órbita ao redor de seus falos.

Assisti a algumas participações desse homem em podcasts e entrevistas. O algoritmo me apresentou vários outros que propagam as mesmas ideias. É espantosa a quantidade desse conteúdo. Na visão da Redpill e de movimentos similares como o Incel e MGTOW, as mulheres têm a vantagem de serem as guardiãs do sexo, um direito masculino. Qualquer atitude feminina que não seja de subserviência lhes ameaça a masculinidade. Mulheres são interesseiras, manipuladoras e perigosas. Misoginia em todos os estados da matéria. 

Absolutamente nada do que dizem é novo, mas nós sabemos onde grupos excitados pelo ódio podem chegar. 

Nesses vídeos, é evidente o sentimento de fraternidade, um dos mais bonitos conceitos filosóficos, presente no tripé do ideal revolucionário francês e expresso no primeiro artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos. É uma liga poderosa, na qual eu acredito. Deveríamos nos preocupar quando a fraternidade organiza o ódio em rede. Fundando comunidades de pensamento com alcance, capilaridade e a intenção declarada de “ajudar outros homens” a se fortalecerem contra o que consideram a naturalização da promiscuidade feminina. Ódio ordenado por retalhos científicos e teóricos desfigurados, mas que embasam preconceitos e justificam violências. Existe um “mercado de desenvolvimento masculino” em que toda a prática supõe a supremacia do homem de forma, mais do que indisfarçada, declarada. O acolhimento dessas comunidades tem o poder de enlaçar homens e rapazes inseguros, solitários, frustrados e adoecidos no medo, desprezo e ódio pelo feminino. 

As mulheres conhecem a potência desse campo. A internet é o marco da chamada 4ª onda do feminismo oportunizada pelas redes sociais que deram amplitude inédita para o debate das nossas pautas, denúncias, trocas, informação, estratégias e formação de redes de apoio. E a fraternidade - que entre nós chamamos “sororidade” já que, lamentavelmente, os afetos que irmanam não são universais -, é o que possibilitou nossa resistência e revolta até aqui. É em reação a esse feminismo do século 21 que se organizam esses novos grupos de machos. 

O machismo e a misoginia não admitem (no limite, sequer supõem) um sujeito desejante na mulher que não seja aquele ditado por um suposto instinto ou destino natural. A proteção garantida pelo macho, a escolha de um bom provedor para a prole, os cuidados com a casa, marido e filhos e fim. Ainda que muitas, por inúmeras razões, se submetam, a única mulher que esses homens consentem sequer existe. Simplesmente porque não é isso uma mulher. 

O machismo atende muitos interesses. A dominação dos corpos das mulheres é uma exigência do sistema que depende do trabalho não remunerado da reprodução e do cuidado. Por isso, o feminismo, como entendo, é uma luta antissistema. Como se não fosse ruim o bastante, nem os melhores homens, também os bacanudos progressistas, estão dispostos a renunciar aos privilégios do machismo. Isso vai ter de ser na marreta, na subversão, na lei, até que se reflita na cultura.

Mas não podemos transigir com a misoginia, o ódio que violenta e mata as mulheres enquanto adoece tudo em volta. Em um dos vídeos, com 34 mil visualizações, um redpillado argumenta, orgulhoso, que sexo é uma necessidade tão vital, que os homens são capazes de “transar” em qualquer circunstância, “o que mais acontece nas guerras é estupro, mano (...) os caras matam e vão comer a mulherada”. Não se envergonham ou lamentam. “Transar” na situação mais adversa é heroico. E, então, figuras como o dândi saltense, mesmo que pareçam espantalhos de época, ficam menos engraçadas. Ao menos para quem é mulher em um país onde duas de nós são estupradas a cada minuto, segundo a última pesquisa do Ipea. A história recente nos previne a levarmos a sério esses propagadores subterrâneos de ódio. 

A filósofa Kate Manne, no livro em que examina a misoginia - Down Girl, a lógica da misoginia, faz a pergunta fundamental para a sua elaboração. “Quando as mulheres serão humanas? Quando?” 

Eu não sei. Tenho uma inquietação e uma tristeza que ficam como retrogosto da indignação e da revolta que essas ofensivas misóginas provocam. Em nenhum dos vídeos a que assisti existe qualquer consideração ao amor. Ou a qualquer afeto que não caiba em uma planilha. Nesse discurso, a relação entre um homem e uma mulher não produz um fiapo de beleza. O sexo e o dinheiro são instrumentos de poder ao redor do qual eles se movimentam apenas de forma masturbatória. Da mulher, querem submissão e serviço. Seria triste e pobre se não fosse tão perigoso para nós. Mas é também triste e pobre. 

 

Eu lembro bem. O machismo era coisa que os homens faziam, mas não os meninos. O pátio, a rua, o prédio, a quadra em que fomos iguais em direitos e possibilidades. Na primeira vez que vi acontecer com meu filho, foi em Roma, com uma menina que também jogava futebol. Depois, no Brasil, uma outra com preferências e jeito mais adolescentes do que ele estava habituado. Hoje, aos 11 anos, essa tensão deliciosa está instalada na sua turma. Eles ainda não sabem o que está acontecendo, são crianças, mas eu posso sentir o frio na barriga, a vontade de ficar perto, as vergonhas, as grandes coragens, o imperativo de chamar atenção, a alegria de ser descoberto pelo olhar do outro. A gente só sabe contar dessas primeiras vezes muito tempo depois. Aos 11 anos, supostamente guardados pelas mesmas prerrogativas, meninos e meninas simplesmente gostam uns dos outros. 

Penso que o babaca da Red pill também teve 11 anos. E hoje prega, categórico, o absurdo de que os homens não precisam de amor. E que as mulheres precisam de proteção. Então, por esse caminho torto, manter as mulheres vulneráveis é a melhor maneira de tê-las. Isso é expresso de várias formas por esse homem atormentado. O que terá acontecido com ele, em que terreno baldio afetivo terá crescido o menino para se tornar um homem danoso assim? 

O machismo é um adoecimento que, quando não mata ou violenta, interdita o encontro. Condena os homens à frustração, por mais sexo que façam, por mais submissa que seja sua feliz esposa. Estão do lado de fora da festa. Nós ainda lutamos pela integridade e posse dos nossos corpos. Os homens deveriam lutar pela integridade e posse de seus espíritos, para se expressarem livremente com suas subjetividades, pelo direito a beleza da troca com o outro. 

Aos homens que se consolam no ódio: O mal-estar é legítimo. Se existe uma crise da masculinidade, ela também é causada pelo machismo. A opressão da qual vocês se queixam não é culpa das mulheres, mas do sistema. A misoginia não resolve o desamparo. Para saber o que quer uma mulher, ou pelo menos tentar, reconheçam nela uma outra pessoa. Depois, escute. As mulheres aprenderam a dizer o que querem melhor do que vocês. Não é possível ser progressista, “homem de bem”, cristão ou decente sem levantar da cadeira e ocupar seu posto na luta das mulheres. Não somos nós que inventaremos o homem que nosso tempo exige, como tremem os redpillados diante do drink oferecido por uma mina. Isso é com vocês.

 

*Último verso do belíssimo poema da Hilda Hilst cujo perfume senti enquanto escrevia esse texto, depois de horas de podcasts, em que me senti ofendida e ameaçada. “Olha-me de novo”, tem uma pessoa aqui.



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




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