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As modificações

Círculos em um Círculo, Wasily Kandinsky (1923); Wikicommons.



2023-02-14

Ao longo das voltas que a vida dá nos labirintos do desconhecido, o peito aberto encontra maravilhas e experiencia modificações em sentido ascendente.

Li A modificação, de Michel Butor, bem devagar, entre o fim de 2022 e o início de 2023. Ao longo da leitura deste romance que, após sua publicação na França em 1957, foi prontamente traduzido por Oscar Mendes e editado no Brasil em 1958 pela editora Itatiaia, fui impressionado por algo de que já tinha conhecimento, graças à coletânea de poemas Abordagens preliminares [Travaux d’approche] (Gallimard, 1972), ainda inédita em portugês: as realizações de Michel Butor se situam nos arredores da movida surrealista.

Embora Butor jamais tenha feito parte do grupo surrealista de Paris, não é à toa que ele frequentou algumas das reuniões no café e, sobretudo, André Breton. Tanto que em agosto de 2004, ao ser interrogado por Antoine Spire sobre suas relações com o movimento surrealista, o autor de A modificação afirma:

"O surrealismo teve uma grande importância para mim, antes de mais nada pela seriedade com que os surrealistas concebiam a literatura e a pintura (...)."

De fato, é notável que algo desta frequentação e deste compromisso se fixou em sua obra. Aliás, é preciso sublinhar que em certa medida o interesse é mútuo: Michel Leiris é quem assina “O realismo mitológico de Michel Butor”, posfácio À modificação; e, embora mantivesse uma distância crítica em relação à grande parte dos romances e romancistas, Breton possuía pelo menos quatro livros de Butor em suas estantes, todos autografados pelo autor. No entanto, o que mais chama atenção em meios aos arquivos de Breton é um pequeno bilhete. 

No verso de um convite para a exposição do pintor Christian Chenard, ocorrida de 17 a 31 de outubro de 1961 na Galerie R. Creuze, Breton copia uma passagem de uma entrevista intitulada “A pintura se repovoa”, dada por Michel Butor à revista Figures (dirigida por Bernard Dufour e lançada em setembro de 1961) e publicada em seu primeiro e único número, na qual podemos ler:

"Enquanto antes os elementos tomados de empréstimo à natureza eram integrados em uma composição que, por sua vez, era um pensamento, a partir de 1860 o procedimento de composição se torna por si só a imposição de um quadro, em geral retangular como um visor fotográfico, sobre uma região da realidade que literalmente temos diante dos olhos."

Visto que esta anotação data dos anos 1960, podemos supor que ela diz respeito aos trabalhos ligados à exposição Afastamento absoluto [L’Écart absolu], ocorrida na Galeria L’Oeil em 1965, e que tinha por ponto focal a crítica a sociedade de consumo, inspirando-se no mote do socialista Charles Fourier registrado em A falsa indústria (...) (1836):

"Para alcançar um novo mundo continental, Colombo adotou a regra do afastamento absoluto; ele se lançou em um oceano virgem, sem levar em conta os pavores de seu século; façamos o mesmo, procedamos por afastamento absoluto, nada é mais cômodo, basta experimentar um mecanismo em contraste com o nosso." 

De minha parte, segue me interessando tanto o afastamento absoluto e à crítica à sociedade de consumo e também a do espetáculo, quanto a démarche e as figuras do nouveau roman e os resultados daí obtidos, sendo que esse interesse é fruto das voltas que a vida dá. 

Digo isso pois lembro que, provavelmente depois de passar uma semana em Belo-Horizonte em 2013, trouxe na bagagem um jornal ou suplemento cultural que mencionava uma visita de Michel Butor à Minas Gerais. Naquela época pouco se me dava quem era aquele simpático e fornido senhor sentado em um banco de praça na fotografia que acompanhava a matéria. Eu estava dedicado a coisas mais espalhafatosas e não tão sutis, por sinal bem diferentes daquilo que hoje sei ter sido o Colóquio Universo Butor, organizado por Márcia Arbex e Roger-Michel Allemand. 

De todo modo, creio que o desinteresse de então não era apenas fruto de ignorância ou de outras preocupações, mas sim, e ao menos em parte, a expressão de um sintoma social. Pois ainda hoje me espanta que, apesar da presença de Butor no Brasil, tanto em carne e osso quanto sob a forma de traduções e estudos, sua obra, como aliás a de muitos outros grandes autores, inclusive lusófonos, não parece exercer grande influência sobre as publicações veiculadas com ISBN emitido em território brasileiro. 

Claro, sem dúvida, grande parte do país e de seu povo supõe ter mais o que fazer e mais do que cuidar ao invés de ficarem passeando em vagões de trem e mergulhando nos vórtices do ser, como possibilita A modificação. Além disso, outra justificativa seria a de que tampouco os franceses e outros “gringos” manifestam grande interesse por lusófonos que assinam romances audaciosos como, por exemplo, Clarice Lispector, Manoel Carlos Karam, Gonçalo M. Tavares ou Veronica Stigger. Em todo caso, isso não parece suficiente para legitimar o silêncio em torno daquilo que é novo e convida a altos voos, como a meu ver são as realizações de Butor e dos autores que acabo de listar.

De minha parte, movido pelo fascínio, desejo que realizações de sujeitos como Michel Butor, e também Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Marianne Van Hirtum, Arno Schmidt, Nora Mitrani e muitos outros, circulem e circulem mais e mais, encontrando variações, derivas e reações na escrita daqueles que se dedicam a suplementar a realidade, de modo que possamos lê-los em português não somente em traduções, digamos, “convencionais”, mas também a partir de sua assimilação a obras que lhes são estranhas e de sua presença nos acontecimentos da própria vida.

A meu ver, não são poucas as razões para se temer um certo protecionismo, que aliás costuma ceder à máquina do espetáculo estadunidense, e a pretensão de não-contaminação, expressa via de regra por um ufanismo pouquíssimo cosmopolita. Ainda que a jactância possa surgir como afirmação necessária após um processo de exploração e dominação, é preciso observar que com frequência cerrar as fileiras e obstruir a entrada do desconhecido configura algo nocivo à construção de pontes, estabelecimento de trocas e, sobretudo, aos que buscam o maravilhoso seja lá onde ele estiver.

 

Círculo em um Círculo, Wassily Kandinsky (1923)



Natan Schäfer

Natan Schäfer (Ibirama, 1991) é mestre em estudos literários pela Universidade Federal do Paraná e pela Université Lumière Lyon 2. Foi professor do curso de Bacharelado em Artes Visuais da UNESPAR e tradutor convidado nas residências Looren América Latina (Suíça) e Résidence Passa Porta (Bélgica). É autor de Taquaras (Contravento Editorial, 2022) e tradutor de, dentre outros, Por uma insubmissão poética (Sobinfluência, 2022) e La promenade de Vénus (Venus D'Ailleurs, 2022). Atualmente é membro da Psychoanalytische Bibliothek Berlin e responsável pela Contravento Editorial, também assinando a coluna "A Fresta" na página da editora Sobinfluência. Além disso, dá a ver em desenhos, pinturas, escritos e fotografias algo da poesia que lhe atravessa.




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