O Brasil tem passado por períodos recorrentemente dramáticos, tensos e imprevisíveis, em que muitos se perguntam: que país é este, como é possível compreender o que está acontecendo? Desde o início do século XX cientistas sociais têm adensado um campo de estudo sólido e inspirador sobre as interpretações do Brasil. Por meio de ensaios, pesquisas empíricas e um grande esforço teórico, autores clássicos do pensamento social brasileiro, como Gilberto Freyre, Caio Prado Junior e Vitor Nunes Leal buscaram responder as estas perguntas, numa empreitada analítica que se inicia pela formação da sociedade brasileira.
A Gramática Política do Brasil: Clientelismo e Insulamento Burocrático, de Edson Nunes, se soma à essa tradição, ao apresentar uma interpretação original, ousada e atual do Brasil. Edson Nunes é doutor em Ciência Política pela Universidade da Califórnia Berkeley e Professor Emérito da Universidade Cândido Mendes. O trabalho de pesquisa foi realizado em meados dos anos 1980 (a primeira edição é de 1996), mas o livro é capaz, ainda hoje, de prestar uma enorme contribuição para se compreender as complexas relações entre cultura e desenvolvimento institucional no Brasil, desde suas origens coloniais até este início do século XXI.
O autor incorpora à análise da cultura política a estrutura socioeconômica, coisa rara atualmente porque os trabalhos que abordam o mesmo tema tendem a sobrevalorizar aspectos culturais e identitários, sem considerar os suportes materiais da esfera cultural, assim como a enfatizar as ideias e as “narrativas” no lugar dos processos econômicos e da dinâmica organizacional. Além disso, Nunes é muito criterioso e transparente ao empregar conceitos, de modo a esclarecer o que está efetivamente falando, evitando, assim, jargões e expressões “da moda” que desprezam a precisão conceitual. Um exemplo disso é a diferenciação que o autor apresenta entre “coletivo” e “público”, como pode ser visto na entrevista abaixo, chamando a atenção não apenas para a distinção mas também para o embate entre as duas esferas, geralmente confundidas.
A propósito, na apresentação da primeira edição do livro Luiz Carlos Bresser Pereira escreve se tratar de uma das mais originais análises da política brasileira. Ricardo Lessa, na apresentação da terceira edição em 2003, destaca que o livro de Edson Nunes o coloca entre os autores fundamentais do pensamento social e político brasileiro, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Raymundo Faoro. Edson Nunes, continua Lessa, escapa das armadilhas dualistas típicas do debate acadêmico à época: modernos / tradicionais; ordem pública / ordem privada e focaliza sua análise no processo de construção institucional ao longo da sua história.
O objetivo central de As Quatro Gramáticas (vamos chamar o livro assim) é compreender como o processo de construção do capitalismo moderno neste país resultou na criação de um sistema institucional sincrético e centralizado no poder executivo federal, e não mais regional nem dualista.
De acordo com Nunes, atores e instituições políticas no Brasil atuam segundo quatro lógicas de ação: clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos. Trata-se de um processo historicamente construído e que reforça, ainda hoje, padrões (altamente flexíveis e híbridos) na relação entre estado e sociedade.
Aqui, o capitalismo se desenvolveu mantendo o sistema de trocas generalizadas, típicas das sociedades tradicionais. Isso quer dizer que as trocas de bens materiais e imateriais não se encerram com a sua realização. Ao contrário, numa sociedade agrária tradicional, as trocas estruturam um sistema de expectativas futuras (o proprietário da fazenda “doa” a comida em troca de lealdade política. No Brasil, segundo Edson Nunes, não apenas este tipo de troca continua presente entre atores individuais e particulares, mas também entre instituições, empresas, associações agências públicas, partidos políticos. Isso explicaria a persistência do patrimonialismo, de bolsões de coronelismo, nepotismo e, especialmente, a força predominante do clientelismo.
Assimilado culturalmente, o clientelismo, a mais antiga das instituições brasileiras, é o conceito chave para se compreender as relações socioeconômicas, a dinâmica partidária e as agencias burocráticas. Frequentemente aparece combinado à lógica corporativista e mais raramente - mas sem excluir de todo - as duas outras gramáticas (insulamento burocrático e universalismo de procedimentos). As quatro gramáticas funcionam como as regras de um jogo que só alcança estabilidade institucional quando combinadas e balanceadas.
O clientelismo é típico das sociedades agrárias, onde predominam relações sociais de troca assimétrica de poder entre “patrões” e “clientes”, o clientelismo foi peça chave no processo de colonização brasileira. Contudo, ele não apenas sobreviveu à industrialização e à urbanização, como também se fortaleceu ao longo do século XX. Sua principal característica é a troca generalizada de modo informal, que inclui desde expectativas de vantagens econômicas até a simples troca de favores pessoais e interesses particulares. A reorganização dos partidos políticos após 1945 (PSD, PDT, UDN etc.) foi também marcada pelo clientelismo, pela patronagem e pelo fisiologismo, mesmo com a redemocratização dos anos 1980. Como se sabe, a impessoalidade é um dos fatores formais básicos do mercado e da noção de cidadania e é, portanto, um componente fundamental das democracias capitalistas modernas. Mas no Brasil a “pessoa” ainda hoje oblitera a esfera pública, tomando o lugar do cidadão.
Já o corporativismo é um sistema de representação de interesses regulamentado por leis formais, incorporado ao próprio estado, baseado em valores de racionalidade, organização e formalização burocrática. Trata-se de uma estratégia organizacional que visa a eficiência econômica e a redução dos conflitos e disputas classistas.
O aparato corporativista implantado nos anos 1930, especialmente durante a Ditadura Vargas no Estado Novo, teve como intuito mitigar tensões e conflitos, canalizando demandas sociais sem a intermediação de partidos - extintos à época - para o interior do aparato institucional. Para isso, foi criada a estrutura de representação trabalhista atrelada e chancelada pelo estado. Por prescindir da mediação dos partidos, o corporativismo se fortaleceu durante a ditadura miliar e, por estar baseado num aparato institucional formalizado, o corporativismo se distingue do padrão personalista do clientelismo. No entanto, ambos proporcionam legitimidade ao estado, na medida em que se tornaram peças-chaves na composição do sistema de intermediação de interesses, demandas sociais e na distribuição de cargos públicos e vantagens a eles associadas, seguindo a mesma lógica personalista do clientelismo.
O insulamento burocrático surgiu como uma estratégia de controle do clientelismo, para garantir a racionalidade das decisões e procedimentos baseados no mérito e na especialização técnica, por meio da proteção de um núcleo técnico do aparato governamental contra interferências na alocação de recursos políticos, sociais e econômicos. Apesar de formal, o insulamento pode ser temporário e variar de grau. Não se trata de um processo puramente técnico e muito menos apolítico.
Historicamente, o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP) foi o primeiro exemplo. Criado pela constituição outorgada de 1937 com o objetivo racionalizar, centralizar decisões no âmbito do poder executivo federal e padronizar a burocracia pública adotando formalmente o universalismo de procedimentos. Contudo, o DASP retirou a autonomia dos estados da federação e dos municípios, especialmente o poder de arrecadação. Mas, ao mesmo tempo em que reduziu os recursos antes distribuídos no jogo clientelista regional, o governo federal centralizado, tornou-se, ele mesmo, o grande e único distribuidor, também adotando a lógica de interesses clientelistas e corporativista. Outros exemplos de organizações estatais insuladas, no momento de sua criação, são a Petrobras e o BNDES.
O universalismo de procedimentos é um recurso político-institucional formalmente associado ao conceito de cidadania e de igualdade, para alocação de benefícios e encargos públicos de acordo com regras e procedimentos universais. Assim definido, ele é parte integrante das democracias modernas. Contudo, no Brasil esta gramática teve especial relevância a partir da turbulenta década de 1930 e, especialmente na criação do DASP, cujo arcabouço legal foi associado à “modernidade”, mas não à democracia.
A substituição dos partidos e órgãos de representação social por técnicos e anéis burocráticos foi uma estratégia utilizada pela ditadura do Estado Novo e pela ditadura militar. Ainda que a Constituição de 1988 tenha tentado resgatar, ao menos formalmente, a ideia de universalismo, é o corporativismo que vem ganhando espaço na política brasileira.
O cerne da questão
Lógicas de ação aparentemente excludentes podem ser operadas pelo mesmo ator político. Segundo Edson Nunes, num país onde a instabilidade é sempre uma ameaça às instituições e à democracia, os períodos de maior instabilidade política foram justamente aqueles em que houve a prevalência de uma ou de algumas, e não de todas as quatro gramáticas políticas.
A principal tese do livro é que, apesar de aparentemente contraditórias, tais formas de relação entre estado e sociedade permearam a história brasileira mesmo com o avanço da industrialização – que, para o autor, não superou completamente a ordem tradicional – gerando uma espécie de sincretismo institucional, alternando a prevalência de umas sobre as outras em determinados períodos, mantendo, no entanto, a convivência entre elas.
A seguir, a entrevista de Edson Nunes concedida à Revista Pessoa, sobre o alcance explicativo das quatro gramáticas nas primeiras décadas do século XXI.
Os leitores de As Quatro Gramáticas da Política Brasileira ficam se perguntando a mesma coisa: as lógicas de ação, as regras desta gramática política, ainda podem explicar o jogo político no Brasil pós Constituição de 1988? Você poderia dar exemplos de ocorrências significativas na política brasileira recente?
Creio que em alguma medida, sim. Trata-se de uma observação sobre a implantação tardia de um sistema capitalista periférico que ocasionou um processo descontínuo de construção do Estado, ao lado de uma sociedade que integrou traços sociais distintos, constituindo uma “variante de capitalismo” que parece um pouco com aqueles do Norte Atlântico europeu e dos EUA, mas também apresenta traços distintos e, a análise histórica mostra, muitos dos quais se tornaram permanentes e, assim, embora sofram algumas modificações ao longo do tempo, constituem parte de quem somos, do que somos.
Entre as “gramáticas” apontadas no estudo, a que mais chama atenção, no momento, é a dinâmica corporativista, cristalizada fortemente no setor público, suas carreiras, suas eleições corporativas para as chefias, seus direitos especiais e tudo mais que, hoje, se sobressai de maneira contundente, talvez até assustadora, pelo menos para mim. Aguardemos, com o novo governo, uma intensificação do corporativismo. É que, tradicionalmente, governos de esquerda santificam tudo que lhes parece “coletivo”, como se fossem portadores de todas as virtudes do mundo. O “coletivo” lhes parece virtuoso, em contraposição ao individualismo possessivo, considerado como uma maldade, um desvio de caráter, gerado pelo maldoso sistema capitalista. Mas deixam de observar que o corporativismo, santificado por ser “coletivo,” nada mais é que uma estratégia privada, normalmente protegida por lei, de acumulação de poder e riqueza, por meio de extração e apropriação de recursos públicos, beneficamente sancionada pelo congresso, para grupos privados. Não há nada intrinsecamente virtuoso no corporativismo. Ou naquilo que é coletivo. A seu lado, a dinâmica clientelista mantém sua integridade institucional, principalmente no legislativo, recentemente com poderes renovados por obra do chamado Centrão. Fazem parte do que somos.
Das quatro gramáticas o insulamento burocrático (universalismo de procedimentos), que poderia ser tomado como uma espécie de termômetro de um sistema político democrático, é a que menos tem espaço no Brasil. Você concorda?
O universalismo de procedimentos (procedural universalism) é o que caracteriza a constituição de um “espaço público”, uma “ordem pública” na qual os indivíduos comparecem em igualdade de direitos e circunstâncias, por meio da qual todos são tratados igualmente, independentemente, de sua origem ou riqueza. O “espaço público” é uma ficção institucional destinada a equalizar, pelo menos formalmente, as diferenças de poder e recursos existentes na sociedade. No capitalismo moderno, com a ordem democrática à qual está frequentemente associado, a igualdade de direitos e sua proteção constituem pilares fundamentais para harmonizar, neste “espaço público”, as diferenças de meios e origens que separam os indivíduos e os estratos sociais. A igualdade perante a lei é o fundamento natural do universalismo de procedimentos e da democracia capitalista contemporânea. Certamente não se pode dizer que o Brasil tenha conseguido institucionalizar um “espaço público” verdadeiro, no qual todos sejamos iguais perante as leis.
Das quatro gramáticas o corporativismo voltou à tona nos últimos anos, especialmente quando se considera o protagonismo político dos militares e do judiciário?
Não é que tenha voltado à tona, uma vez que nunca submergiu completamente, mas, sim, ganhou primazia robusta na ordem política brasileira, não só quanto aos militares e judiciário, mas também quanto à captura de renda, prestígio e poder dentro do aparato estatal brasileiro. No caso do judiciário a estratégia de acumulação e riqueza ainda é mais evidente porque o judiciário tem orçamento próprio, por meio do qual se atribui e manda pagar vantagens próprias e únicas dentro do setor público. E isto nem chega a aborrecer às outras corporações que, inteligentemente, usam tais vantagens abusivas como pretexto e justificativa para que sejam imitadas e copiadas, estendidas a outras carreiras poderosas. O corporativismo desafia a natureza naturalmente hierárquica das organizações e entidades associadas ao Poder Executivo, que contém, naturalmente, na cadeia burocrática e no comando executivo da sua hierarquia funcional, a principal característica de um Poder que se chama de Executivo. As corporações de ofício e as carreiras burocráticas ganharam poderes representativos, além dos remuneratórios, para escolha de suas chefias, direções e coordenações, por meio de “consultas”, verdadeiras eleições protagonizadas pelos sindicatos das várias carreiras, tirando do Executivo uma de suas premissas essenciais, de cadeia de comando burocrático, fazendo com que se busque, dentro das carreiras e órgãos do executivo, uma representatividade dos integrantes das carreiras, como se fossem partidos ou sindicatos. É uma poderosa limitação sindicalizada dos poderes ministeriais e presidenciais que deveriam ser exclusivamente de natureza executiva, não representativa, na nomeação de chefias, procuradorias e diretorias dos órgãos do Executivo.
É possível e desejável que o clientelismo deixe de ser a gramática predominante? Como as formas de clientelismo têm se modificado neste início do século XXI?
Vem à mente a distinção conceitual entre “trocas específicas” e “trocas generalizadas”, já incorporado ao léxico clássico das ciências sociais. A troca específica constituiria uma característica do capitalismo e da relação entre indivíduos independentes. Já as trocas generalizadas seriam característica de sociedades rurais, por exemplo, ou de sociedades pré-capitalistas. Nelas, cada troca realizada, seja uma compra, uma venda, um casamento, uma gentileza, contém uma referência a uma cadeia de outros eventos associados, tais como favores, direitos, obrigações futuras. Singelamente, no capitalismo moderno, com indivíduos independentes, o cidadão compra o seu litro de leite na loja ou no mercado e ali se encerra a operação de compra e venda do leite. Já nas sociedades pré-capitalistas, a compra do leite, como no exemplo da relação descrita por Graciliano Ramos em Vidas Secas, o patrão compra o leite e outros produtos do seu empregado, colono ou meeiro e esta “compra” inclui uma série de outros compromissos, alianças e obrigações, como compadrio, proteção frente ao Estado, apadrinhamento de filhos e casamentos. Enfim, a “compra” está integrada por outros compromissos e alianças. Não se esgota ali. Muito deste exemplo se aplica ao mundo político-partidário de hoje, também ao congresso, legislativos estaduais e municipais, às gestões de estados e municípios e também à vida brasiliense.
O clientelismo nada mais é que um sistema de “trocas generalizadas”, nas quais os atos contêm cadeias de regras, perfeitamente compreendidas pelos envolvidos, de ajuda, compromissos, lealdade, patronagem. Uma “gramática” própria existe ali, que dá sentido e compreensão imediata aos atos.
A ideia de “gramática” dá sentido a um conjunto de combinações culturais e elementos dentro de uma mesma estrutura social. Eu a tomei emprestada do famoso antropólogo Clifford Geertz, em sua discussão sobre o poder explicativo de análises culturais. Para ele, cultura é como uma gramática, a partir de cujo conhecimento nenhuma declaração ou gesto pode ser objetivamente previsto, embora uma infinidade possa ser imaginada, mas sem a compreensão pelo menos implícita da gramática operante nenhuma declaração real pode ser integralmente compreendida.
Assim, o clientelismo, bem como o universalismo de procedimentos, são gramáticas que embasam as relações entre as pessoas e instituições envolvidas. E são perfeitamente compreendidas pelos participantes. A cultura política brasileira está assentada numa gramática histórica de trocas generalizadas, na qual cada troca está encadeada a um liame de outras trocas e compromissos futuros. E as consideramos como coisas normais à vida política. Daí a proeminência do Centrão e vários outros “centrões” existentes em diferentes esferas de nossa vida.
Observe, contudo, que nós brasileiros somos poliglotas no uso destas gramáticas que envelopam nossas vidas. Podemos muito bem fazer parte de arranjos estritamente corporativos, como em nossas carreiras, profissões e pertencimentos, e fazer uso da retórica individualista de “direitos universais” para todos, ao mesmo tempo em que nos valemos de estratégias clientelistas para outro conjunto de ações. Tudo isto é perfeitamente lógico e compreensível para nós, em todos os momentos de nossas vidas condicionais. Assim, vivemos num contexto complexo e cambiante de regras, sem dominação clara de uma sobre a outra, exceto em contextos absolutamente específicos. Somos gramaticalmente poliglotas. E achamos natural.
A teoria com que você trabalha, centrada nos sistema de trocas, é básica da Sociologia Econômica. Nos seus trabalhos posteriores você deixou de lado esta abordagem? Por quê?
Esta pergunta requer uma resposta de natureza mais pessoal, relativa à minha trajetória profissional. O estudo que levou à existência do livro A Gramática Política Brasileira era um projeto de pesquisa razoavelmente simples e objetivo, bem resumido pelo seu próprio título, que peço licença para mencionar em inglês, conforme o original: Uneven State Building and the Taming of Modernity in Contemporary Brazil. A domesticação da modernidade. Ao invés de basear nossa trajetória na modernização prevista na literatura, o Brasil a domesticou, personalizou, reinventou.
O estudo nasceu no contexto da longa discussão acadêmica sobre desenvolvimento, dependência, subdesenvolvimento, capitalismo dependente e modernização, ainda muito em voga, àquela época, final dos anos 1970, na comunidade acadêmica de Berkeley e Stanford. Eu trabalhava como coordenador de um projeto do Berkeley-Stanford-Joint-Center for Latin American Studies, coordenando um projeto de estudos brasileiros dirigido por professores de Berkeley e Stanford. Os debates sobre os regimes autoritários latino-americanos e as características das economias e sociedades da região ocupavam os interesses da comunidade especializada. Atraía-me a lógica dos debates, o Brasil seria, ademais de um governo militar autoritário, bureaucratic authoritarianism no jargão da época, um país subdesenvolvido, em desenvolvimento, apenas dependente, ou algo mais, na sua tentativa de implantação de um sistema capitalista periférico? Haveria um capitalismo brasileiro ou apenas seríamos retratos empobrecidos de processos derivados do capitalismo central? Afinal, quem éramos nós? O quê éramos nós? Uma polêmica central e que dividia o mundo acadêmico era a eventual diferença entre desenvolvimento e modernização. Os partidários do desenvolvimento, ou subdesenvolvimento do desenvolvimento, eram considerados mais à esquerda, os partidários da teoria da modernização eram considerados mais à direita.
Um resumo caricatural da polêmica dizia que a modernização, processo pela qual ocorrem mudanças nas instituições e na orientação individual das pessoas na direção do capitalismo moderno, baseado em individualismo, igualdade perante a lei e constituição de um “domínio público” e de instituições modernas, baseadas no universalismo de procedimentos, assemelhado àquele dos países centrais, constituiria um falso caminho, uma falsa premissa, para os defensores do desenvolvimento como uma mudança estrutural, profunda e permanente. Modernização não se confundia com desenvolvimento, este era mais denso, menos superficial e requeria a mudança profunda nas estruturas sociais e políticas, amarradas e obstaculizadas pela natureza mesma do capitalismo dependente. Resumindo drasticamente, modernização nunca se confundiria com desenvolvimento pleno.
Repare que uma das chaves de entendimento do processo de modernização inclui a existência de uma dominância do universalismo de procedimentos, igualdade formal perante a lei e as instituições, dentro de um Estado que repousa e se baseia no universalismo de procedimentos. O Brasil não correspondia a esta característica, com a constituição tardia de um Estado que se queria moderno, principalmente a partir de 1930, mas que fora capturado por lógicas aparentemente contraditórias, como o clientelismo ancestral e o corporativismo inventado a partir da revolução de 30. E ainda mais, a partir da década de 1950 caracterizado por vários nichos burocráticos independentes da ordem política tradicional, insulados de sua influência.
Ao observador parecia o caso de um país que repousava, simultaneamente, em estruturas políticas diversas, num aparente sincretismo que não refletia integralmente as premissas do processo de modernização e nem portava sinais de mudanças estruturais profundas que o levasse ao “desenvolvimento”. Desta observação nasce a ideia de “gramáticas políticas” distintas e simultâneas, como se fossem linguagens e estruturas sociais existentes, objetivas e concretas, aparentemente contraditórias, de um lado, e aparentemente harmônicas e sincreticamente combinadas, de outro. A ideia nasce da insatisfação heurística com as terminologias frequentemente usadas no debate sobre o Brasil, os “dois Brasis, o rural e o urbano, o moderno e o atrasado. Como, então, dar nome e sentido a um sistema que parecia mais complexo e que ia muito além das dicotomias?
As “gramáticas” constituíram apenas o recurso heurístico que pareceu apropriado para entender este caso de capitalismo periférico, que parecia domesticar a modernidade, e advém de observações antropológicas e de estudos sobre sociedades camponesas do leste asiático, bem como de outros estudos sobre modernização e desenvolvimento, assim como da literatura sobre economia do desenvolvimento.
As “gramáticas” constituíam um recurso heurístico capaz de descrever satisfatoriamente o “capitalismo brasileiro” ou a variante capitalista brasileira, ajudando a entender a sua progressão e eventuais desdobramentos. Notem que é um estudo encerrado em 1984, de natureza histórica e de ambições explicativas. A publicação do texto em português exigia, conforme explicava o editor, um título compreensível no país, já que o título original era muito fechado e permeado pela ótica acadêmica externa, ruim para o mercado brasileiro. Daí nasce o título do livro A Gramática Política do Brasil¸ da insistência do editor, o velho amigo e saudoso Jorge Zahar, que só foi publicado 13 anos após sua finalização, em cooperação com a ENAP, pela generosidade acadêmica e fome intelectual do então ministro Bresser Pereira que, por sua incansável atividade intelectual o havia localizado nos microfilmes dos arquivos de teses de doutorado, então alojados na biblioteca da Universidade de Michigan. Não fosse o ministro Bresser Pereira e a ENAP, o livro não teria existido. E não fosse o Jorge Zahar não teria o título atual.
Quanto ao uso, ou abandono, dos mesmos fundamentos do livro A Gramática Política do Brasil em trabalhos posteriores, penso que não se trata exatamente de uso ou abandono de uma perspectiva teórica específica. As noções que embasam o estudo provêm de variadas fontes e bases. Por exemplo, a noção de insulamento burocrático é uma combinação de pontos vindos tanto de sociologia organizacional quanto de antropologia cultural.
A sociologia das organizações mostrava que em ambientes empresariais ou organizacionais em severa crise, na qual existe uma sobrecarga de interações e determinação entre um número excessivo de variáveis, quando tudo parece ter impacto sobre tudo, ambientes de supercomplexidade (overcomplexity na linguagem original) a melhor alternativa seria a de isolar o coração técnico das organizações para que não sofressem desgastes com a crise generalizada. Na linguagem típica dos estudos organizacionais isto significava to insulate the technical core das empresas e organizações, de modo a combater a crise sem ter impacto sobre a missão e o produto principal. Também a ideia de “insulamento burocrático” de organizações estratégicas e cruciais, como se fez nos anos 1950, se beneficia, por oposição lógica à noção de instituições totais e engolfadas, conforme estudos antropológicos conhecidos.
O clientelismo tradicional brasileiro era visto como um traço nacional que “engolfava” a vida e o funcionamento das instituições brasileiras. O insulamento burocrático, então, consistiria num processo de proteção do coração técnico das decisões estratégicas, impedindo que o clientelismo consumisse suas atividades e fundamentos.
Isto de não utilizar as mesmas bases teóricas em estudos posteriores se explica pelo fato de a Gramática Política ser apenas mais um projeto de pesquisa em meio a uma trajetória acadêmica com interesses diversos e variados, inquietudes transitórias, conforme atestam trabalhos publicados anterior e posteriormente. Daí a variedade de publicações e livros sobre temas diferentes ao longo da vida.
Venho de uma formação, em ciências sociais, bem antiga, lá dos anos 1960, na qual não se valorizavam especializações tópicas. Por inclinação própria mantive esta orientação intelectual ao longo da vida e nos programas de pós-graduação que frequentei, talvez uma forma inadequada de formação quando a trajetória acadêmica das disciplinas sociais começou a apontar para a solução de problemas mais específicos e para maneiras de especialização profissional.
Não estou declarando esta formação como uma virtude, apenas como uma vertente que existiu no passado. No meu caso, esta variedade de perspectivas talvez tenha sido possível porque nunca estive associado a programas de ensino e pós-graduação. Tive uma trajetória de gestor técnico e direção executiva no serviço público e também de gestor técnico e direção executiva em universidade particular, mas nunca pertenci a um departamento acadêmico de ciências sociais. Sou talvez um cientista social diletante, sem especialização alguma e sem vinculação acadêmica específica.