Imagem 1675889849.jpg

O amor acaba



2023-02-08

(Com spoilers da série Cenas de um Casamento)

Por toda vida tenho sido observadora dedicada, leitora entusiasmada e confidente atenta de histórias de amor. Eu gosto de escutar e, por isso, as pessoas gostam de me contar. Pelo visto e ouvido até aqui, nada autoriza uma visão otimista, no que se refere às expectativas de realização e longevidade, do amor romântico. Embora seja das coisas que detestamos reconhecer, o juramento de conduta ilibada e satisfeita, nas situações mais adversas, até que a morte separe, vale como aposta, mas é impossível como promessa, mesmo sendo honesta. Dentro da norma do casamento ou não, monogâmico ou poliamoroso, onde duas ou mais pessoas estiverem reunidas em coabitação, haverá frustação e desencontro. Deveria ser do jogo, mas ainda nos escandaliza o amor que acaba.

Não sou uma cínica na matéria, pelo contrário. Sou entusiasta do amor. Defendo, persigo, até prego. Amar e ser amado é o mais racional sentido que podemos dar para nossa existência. É o que nos faz gostar de ser quem somos, o que nos distingue e nos torna extraordinários. Talvez acabe quando o olhar do outro já não nos veste e somos devolvidos para a categoria das pessoas banais. Portanto, o que pode parecer ceticismo é apenas meu profundo respeito pelo amor. 

Em uma dessas madrugadas resolvi ver o primeiro episódio de Cenas de um Casamento, criado por Hagai Levi. Eu não conhecia a série original filmada em 1974, por Ingmar Bergman, tampouco o filme que resultou, portanto não tinha expectativas na madrugada em que, sem conseguir interromper, assisti aos cinco episódios da refilmagem. 

Na primeira cena, vemos Mira e Jonathan, o casal protagonista vivido pelos excelentes Oscar Isaac e Jessica Chastain, sendo entrevistados. Uma estudante investiga a monogamia em casais heteronormativos “bem-sucedidos”. Com recorte em famílias onde a mulher fosse a principal provedora, como é o caso. Perguntado sobre como se definia, Jonathan diz que é homem, acadêmico, judeu, asmático, pai dos filhos, democrata, bom pagador, bom amigo, bom filho, um cara ótimo. Na vez de Mira, ela começa hesitante. Diz que é mulher, esposa, mãe. Menciona o trabalho se atribuindo tão pouca importância que só sabemos mais tarde que ela é uma profissional de tecnologia poderosa e em ascensão. A referência de onde ela parte para se definir é a família enquanto o marido sequer considera a esposa ao falar de si. A série mal começou e já somos apresentados às expectativas em colisão que custam tão caro ao amor. 

(Lembro da história que escutei de uma amiga. Provocada sobre como podia ser casada com um homem medíocre, uma mulher reconhecidamente brilhante teria respondido “ah, ele é só meu marido”. Essa resposta só é uma anedota porque dita por uma mulher.) 

No original de Bergman - que assisti, também de uma vez, no dia seguinte - embora seja uma advogada de sucesso, não é Mira quem sustenta a casa e ela jamais deixa de ser a principal cuidadora da filha. A ousadia de Hagai Levi foi trocar o sujeito da trama principal. Na sua história, é Mira quem sai de casa para viver outro amor enquanto Jonathan fica na merda, cuidando praticamente sozinho da filha. Não sei se foi também essa a intenção do diretor, mas a ideia de forçar os protagonistas a posições de poder mais equivalentes, fez com que eu pudesse me identificar com os dois e dormir as 5 da manhã, depois de tomar o partido do amor.

Acontece que, apesar de ser a mesma história e praticamente o mesmo texto, não fui capaz da mesma empatia pelo casal filmado por Bergman. Cheguei a sentir certa repulsa pela relação dos dois. A Mira de 1974 é uma mulher deserotizada que, mesmo quando desejada, aparece infantilizada. Mesmo quando rejeita o homem e impõe sua vontade é submissa. O marido a ama como se ela fosse um animalzinho, me parece. Um ser vivente digno de afeto, alguma satisfação e até tesão, mas não outro sujeito. A despeito de ser uma mulher deslumbrante (a atriz Liv Ullmann) e profissional competente, Mira é café-com-leite. Daí que a intimidade que nos coloca dentro da relação do casal de Levi, não existe entre os protagonistas originais. 

A intimidade a que me refiro não é possível sem identificação, só acontece entre iguais em valor, possibilidades e direitos. A condição rebaixada da mulher de Bergman faz com que a raiva seja o afeto predominante entre os dois porque é ela o que cresce de mais verde nas relações entre opressor e oprimido. Ao conceber seus personagens (até certo ponto, obviamente) fora da hierarquia imposta pelo patriarcado e pelo machismo é a ternura o afeto que marca o fim do amor na versão de Levi. Mesmo os diálogos mais violentos e difíceis são conduzidos por um tipo de cuidado e ética. Há um limite amoroso mesmo quando Mira diz que não há o que remediar se ela não o deseja mais. Ou quando Jonathan fala que já não se importa de vê-la sofrer. E isso me comove. 

Nas duas versões, o momento mais tenso da longuíssima DR é quando os casais se fazem acusações sexuais e descobrimos que todos estão insatisfeitos nessa seara, maridos e esposas, desde a década de 1970, mas desconfio que tem mais tempo. Parece ser esse um dos maiores desafios do amor romântico. Manter a relação erotizada é a conta que não fecha dentro das expectativas de sucesso do casamento, mas ninguém quer falar sobre isso. O sexo no casamento é um tabu maior do que aquele feito fora dele. Está no centro de grande parte dos conflitos e, no entanto, existe um “silêncio heroico”, como diz o Jonathan da primeira versão. 

Sempre escutei com suspeita a expressão “só sexo”. Sexo nunca é “só”. Sexo é sexo. Íntimo, pessoal, com demandas e escalas de importância diversas e variáveis no tempo e entre os sujeitos. É um horror o quanto nossa cultura o rebaixou e reprimiu. No entanto, sexo é apenas uma das razões para duas pessoas ficarem juntas e talvez não seja a melhor delas. Em determinado momento, a Mira de Bergman diz que com gentileza, afeto, humor, amizade, tolerância e expectativas realistas o amor não é necessário. “Não estávamos apaixonados, mas nós dois estávamos infelizes”. É um motivo legítimo. Muitas pessoas querem a sorte de um amor tranquilo, como cantou Cazuza. Mais gente do que supomos vive satisfeita em arranjos dessexualizados. 

O delírio é acreditar que podemos penhorar tão radicalmente, já que até à morte, nosso amor e nosso desejo, mas, apaixonados, juramos que podemos. (E é assim que tem de ser, paixão boa é aquela que não concebe seu fim.) Mas talvez seja esse o mise en place da frustação e do rancor. De onde vem o ressentimento que sentimos pelo outro e por nós mesmos quando o amor acaba. Registramos o fim como fracasso e, por isso, não somos capazes de produzir a amizade (ou outros sentimentos com vocação para a eternidade) com o que ficou do amor.

Cenas de um casamento não é “uma história de amor”, mas “a história de um amor” e por isso me toca tanto. O amor nunca é idêntico a si mesmo, cada encontro é pedra talhada pela intenção, mas também pelo acaso. Inédito, irrepetível, imponderável. Gosto quando o amor aparece inteiro, com sua monstruosidade e sua ternura. Quando não é um badulaque, um contrato, um lugar, um estado ou uma promessa. O aspecto sobrenatural me interessa menos do que o cascalho da construção e da performance. A fantasia me interessa mais do que os objetivos alcançados. Gosto sobretudo quando o amor é nosso laço de compaixão.

A partir do tema recorrente da infidelidade, a série sugere que o amor oferecido em sacrifício no altar do casamento, esvaziado seu conteúdo erótico e até mesmo atravessado por outros amores, pode ser tratado com mais deferência, desassombro e gratidão. E que o casamento pode ser passagem, asilo coerente e provisório para o amor, sem que isso seja um fracasso. Talvez o amor de fato não acabe, apenas se transforme em matéria prima que, como poemou Leminski, a vida se encarrega de transformar em raiva ou em rima. 

No último episódio, depois da longa e dolorosa travessia até o divórcio, Mira e Jonathan reencontram o corpo um do outro. Já não querem voltar, não é o caso, fica a impressão de que descobriram nos corpos o lugar mais confortável para aquele amor. Talvez seja uma solução forçada demais, Mira e Jonathan terminarem como amantes um do outro, mas nos faz relativizar a norma diante do desejo e pensar em tudo que cabe entre a indiferença e a paixão. 

Quando falei da série para Ana, cometi um ato falho lindo. Disse que gostei porque não tinha “vilão e bandido” quando a intenção era dizer “mocinho e bandido”. É isso mesmo. “Não tem ninguém inocente nessa história”, dizia meu primeiro analista. “Não há o que perdoar por isso mesmo é que há de haver mais compaixão”, cantou o Gil. 

Na última cena, Jonathan é despertado por um pesadelo. Ele tenta agarrar Mira e sua filha, mas percebe, horrorizado, que não tem mãos. Na sua frente está a mulher que ele não pode alcançar. No entanto, ela o coloca nos braços, “vem cá, está frio”, e os dois adormecem. A cena então é cortada e os atores se despem (ou se vestem) de Mira e Jonathan. E quando Oscar e Jessica deixam o set de filmagem, abraçados, eu choro de verdade. “Amar é dar aquilo que não se tem a alguém que não o quer” talvez seja um dos mais misteriosos aforismos de Lacan. Da categoria das coisas que, como o amor, só é possível entender depois de sentir. Ou nem assim.

 



Juliana Monteiro

É jornalista e escritora, tem dois filhos e mora em Roma.




Sugestão de Leitura


A paciência do homem branco

   “Criticar o governo por questões identitárias é falta de visão estratégica”, diz, ...

A igreja dos pretos

Todo ano eu passava por lá na volta das férias no Rio de Janeiro, para onde eu ia nos dezembros da minha infância. Paracatu e ...

Brasília, Brasil

Não foi a primeira vez que cheguei ao Brasil brigando. Na pandemia, meus filhos já tinham me visto aos berros, na esteira de restit ...
Desenvolvido por:
© Copyright 2023 REVISTAPESSOA.COM