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Três canções anafóricas / três hinos fluviais

Foto: Amy Shamblen



2023-02-06

Curadoria de Luci Collin

 

00. A partitura

Não vi: ... -_-_-_

Vi: -_*-_*-_*

Vi: -_*-_*-_*

Vi: -_*-_*-_*

Vi: -_*-_*-_*

Vi: -_*-_*-_*...

 

01.Visão do menino

... apenas um menino suado no parquinho;
tira a camiseta e um besouro se aproxima dele como um pequeno ventilador;
o besouro refresca a pele do seu braço queimado;
roncando sempre, o besouro se afasta com movimentos bruscos tal qual uma pipa negra no ar ardente;
o ventilador volta rente aos pés descalços do menino, e é como se a frescura da correnteza subterrânea alcançasse os seus dedos sujos;
o banco de madeira no qual se senta é a sua canoa ancorada...

 

02. Visão da menina

... apenas uma menina à sombra de um jambolão;
reclinada na espreguiçadeira do deque, a menina de biquíni vê o velho gambá cruzar o gramado;
o bicho roliço se aproxima dela sem temor, como se almejasse as azeitonas espalhadas no deque;
mas desparece rápido sob as tábuas manchadas de roxo;
o gambá mergulha na penumbra acolhedora que a menina adivinha entre as frestas do deque;
agora se refestela em águas frescas tal qual um ornitorrinco, conclui ela...

 

03. Visão do casal

... apenas dois jovens num bosque;
com a mesma colher devoram a metade de uma melancia;
sementes ficam nadando no fundo claro;
são peixes desse riozinho que é uma listra na toalha estendida na grama;
se formigas se juntam e sobem pela carcaça da fruta formando uma renda clara;
a renda se estende também por dentro da fruta cavoucada... tal qual uma rede de arrasto na correnteza piscosa...

 

[Este poema integra o livro Massa nebulosa, a ser publicado em junho de 2023.]



Sérgio Medeiros

É poeta, artista visual, ensaísta e professor. Publicou, entre outros livros de poesia verbal e verbo-visual, O sexo vegetal (já traduzido para o inglês), Totens, Trio pagão e John Cage no hemisfério sul: uma biografia. Seu ensaio A formiga-leão e outros animais na Guerra do Paraguai discute a escrita inumana, um tema que pesquisa há vários anos e que o levou a traduzir para o português, com o scholar inglês Gordon Brotherston, o Popol Vuh, poema épico maia no qual a prosopopeia (a fala dos deuses, dos animais e das coisas) é fundamental. Seu livro Caligrafias ameríndias recria a escrita vegetal em todos os poemas, tomando como referência o movimento das palmas da mítica Pindorama, a Terra das Palmeiras. Influenciado pela escrita assêmica (ou fantasiosa) de Jerônimo Tsawé, calígrafo e narrador xavante com quem conviveu nos anos 1990, dedica-se atualmente a criar “massas nebulosas”, um tipo de poesia que reúne diagramas, imagens, glifos, letras e frases.




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