Genebra, 19 de julho de 2022
Querida Juliana,
Aceito tua convocação para a rua, para a luta, para a lua.
Recebo como um prêmio e celebro teu generoso convite para um café, um aroma que faz parte do que meus sentidos identificam como lar. Mas um aroma que também fez parte da construção de um Brasil que, hoje, me pergunto se faz sentido.
Sim, você tem toda razão. Após dois anos de pandemia e do desmonte de tantas certezas, precisamos do encontro inclusive para saber quem somos, quem de fato amamos e quem não queremos ao lado.
Nas dez cartas que recebi de você ao longo deste ano, um dos trechos que mais me emocionou foi quando você, nesta última, chamou o pai dos teus filhos de companheiro. Não era o marido, o homem e nem o esposo. Mas o companheiro, uma palavra que eu considero como mágica. Um termo do latim que designa aquele com o qual queremos dividir o pão: com-panis. Ou compaignon, no francês antigo.
Cortar o pão pelo meio e repartir com aquele que importa para nossas vidas. Dividir o alimento. Dividir o desafio da sobrevivência.
No caso brasileiro, porém, acredito que o momento é de encarar uma realidade que por décadas tentou-se negar, adiar ou esquecer. O Brasil não carece de um reencontro, como alguns sugerem. O que ele precisa de fato é de se encontrar, provavelmente pela primeira vez. Precisamos forjar a ideia de compartir o pão e o destino.
Fico pensando como um país que nasceu do estupro, da escravidão, da busca pelo lucro da metrópole, do coronelismo, do abandono e da violência batiza seu “caráter nacional”?
Um país que cresceu com o gosto de sangue, com os estilhaços de carne chicoteadas e o cheiro do trabalho forçado. Um país que se tornou adulto banalizando a violência e que, 200 anos depois de sua suposta independência, viola seus cidadãos com a mesma facilidade que destitui seus filhos do futuro e trai sua promessa de sol.
Um país cujo termo que designa a nacionalidade - o brasileiro - vem de uma atividade econômica de exploração de recursos naturais. E não uma cultura ou etnia.
Tua carta me fez pensar nos próximos passos e a verdade é que nossa geração tem uma responsabilidade imensa. Ou agimos e evitamos uma implosão. Ou entraremos para história como aqueles que optaram pelo silêncio diante da destruição.
Outro dia, aqui em Genebra, ouvi de uma antropóloga estrangeira um lamento sobre o Brasil que me chamou a atenção. “O primeiro projeto de uma nação global fracassou”, ela suspirava. Será que era essa a esperança quase ingênua do mundo em relação a nós?
Diante de tudo o que você constata em tua estadia em nosso país e diante do terremoto social, eu tenho a firme convicção de que o Brasil não pode se reinventar. Ele precisa, finalmente, se inventar.
Sabe, Juliana, meus filhos sentem as mesmas sensações que tomam os espíritos de Gael e Anita quando vão ao Brasil. Marc me diz que, no Brasil, tudo vem em abundância, do tamanho do beijo da avó, passando pela vasilha com a feijoada às trombas de chuva. Pol se esbalda no suco de melancia e água de coco, misturado com picolé, esfiha de carne e húmus.
Mas esse é mesmo o Brasil de todos? Ou principalmente daqueles que herdaram os benefícios da escravidão, da exploração e da arquitetura que chega a desenhar apartamentos com cubículos para as domésticas. Esse Brasil insustentável chegou ao seu limite.
Há poucas semanas, me deparei com um documento confidencial enviado por relatores da ONU ao governo brasileiro desmontando o mito de que o país é acolhedor. Para os nossos filhos, festa e pão de queijo. Para refugiados e imigrantes africanos, haitianos, venezuelanos e bolivianos, o desprezo e a xenofobia.
Precisamos urgentemente de um processo de reconciliação. Um caminho que não repita o teatro montado por alguns países que optaram pela impunidade. E, em seu lugar, estrearam obras e espetáculos midiáticos para dar vozes às vítimas como protagonistas.
Precisamos ir além do que fizeram os sul-africanos, os guatemaltecos e outros que, depois de décadas de injustiças, montaram comissões de reconciliação e verdade com a função de restabelecer os fatos. De designar as vítimas e os opressores.
Fundamental para a busca pela verdade? Certamente. Revolucionárias até para a construção de democracias e da busca por estabilidade.
Ao longo do tempo, porém, ficou provado que o exercício é insuficiente para fechar feridas. O perdão é necessário e pode ser o preço da paz social imediata, traduzido em anistias amplas.
Mas corre o risco de perpetuar a impunidade, além de criar o sentimento, por parte das vítimas, de que seu sofrimento foi alvo de uma barganha política.
No Brasil, o genocídio indígena, a escravidão de séculos e seus ecos no século 21, a opressão de diferentes governos e a teimosa disparidade social se acumulam hoje em um país incapaz de superar seu passado. E, portanto, de construir seu futuro.
Mais recentemente, perdemos quase 700 mil irmãos, pais e amigos. Vamos repetir o modelo fracassado de colocar uma pedra e fingir olhar para frente, de novo?
O nosso processo de reconciliação nacional terá de vir com justiça, ações afirmativas, uma revolução no ensino e uma insurreição das mentes. Ou então ele não existirá.
Já vimos que anistias não colocam um ponto final no pesadelo. Tampouco podemos aceitar a noção de que precisamos “virar a página”. Nossa história deve ser lida e relida para que cada geração saiba quem ela é.
Mais de 70 anos depois da derrota de Adolf Hitler, a Alemanha continua seu processo de desnazificação. Diariamente. Ali, não está em jogo o passado. Mas o futuro.
Sem lidar com os crimes que formaram o Brasil, monstros voltarão. O que chamamos hoje de bolsonarismo já teve outros nomes. Todos eles empunham armas nas mãos e o ódio nas consciências.
Ao optarmos sempre pelos atalhos, deixamos feridas expostas. Desbolsonarizar o Brasil, portanto, não virá apenas com as urnas. Mas enfrentar seus principais pilares.
Juliana, ao longo dessa troca de cartas, você foi minha companheira mais leal nessa tentativa de olhar para o Brasil aqui do estrangeiro. Tuas palavras serviram de bússola, lupa e telescópio. Sim, chegou a hora do encontro. Da força dos corpos e da energia das mãos dadas que, depois de alguns segundos, passam a coordenar a batida do coração daqueles entrelaçados em seus destinos.
Ocupemos as praças, os locais de votação, as festas, os bailes, as ruas, as assembleias, as igrejas, os coretos. O coração pulsa.
O chão no Brasil treme. Seja pelo forró que brota da terra, pelo grito de gol na arquibancada, pelos protestos ou pela violência. Mas ele sempre treme. Um país que chacoalha com o imaginário do planeta.
A reconciliação como política de estado e objetivo de uma sociedade terá de usar armas poderosas como a verdade, a igualdade e justiça. Só assim teremos, finalmente, um encontro e uma identidade múltipla e resiliente.
Em muitos aspectos, a independência do país nunca ocorreu. Ela não virá de um tratado internacional pelo qual compensaremos os colonizadores e nem de um desfile militar. Ela existirá quando um povo inteiro souber que conta com direitos e que o destino individual não está acorrentado.
A descolonização de uma sociedade e a invenção do Brasil estão em nossas mãos. E somos muitos.
Vamos, Juliana?
Para ler a última carta de Juliana Monteiro enviada a Jamil Chade, clique aqui.