Brasília, 18 de julho de 2022
Querido Jamil,
Escrevo do Brasil. É a primeira estada longa das crianças desde antes da pandemia que, por aqui, terminou à revelia dos números e dados, assim como começou. A paisagem familiar é perturbada apenas pela visão de uma máscara ou outra no caminho. E pela fome – que é da categoria das coisas que é preciso que o corpo testemunhe para que a gente, de fato, entenda. Se não a dor e a humilhação, ao menos o absurdo e a urgência.
No aeroporto de São Paulo, durante a conexão, um rapaz surdo nos entregou, tão displicente e sem esperança e tão distante de nós quanto nos semáforos, o papelzinho xerocado pedindo dinheiro. Nas três horas que passamos em Guarulhos, quatro pessoas nos abordaram pedindo o mesmo. Pagamos o lanche para um menino. Diante dos outros pedintes, a surpresa das crianças e meu mal-estar. Para meus filhos, o Brasil é uma paixão idealizada e muito bem recompensada, além de qualificada por seu caráter eventual. Eles gostam de ser brasileiros, é um aspecto importante e misterioso da autoestima deles, embora mal tenham experienciado isso. Na maior parte do tempo, vivendo em Roma, ser brasileiro é ser estrangeiro. Estavam ansiosos pelas férias, serem brasileiros no Brasil, e eu sentia um constrangimento imenso pela rudeza com que meu país os recebia, logo na entrada. Antes mesmo do abraço na avó, o Brasil já os prevenia que é tão hostil quanto pode ser um lugar onde tem gente com fome.
Dias atrás, em um mercado caro, duas moças, aparentando mais idade do que certamente tinham, pediam, impacientes, que eu lhes pagasse as compras da cestinha. Eu já havia pago a conta de um senhor de aparência empregável pelo sistema, calça social, sapatos, camisa, olhos vermelhos e neófitos do pedir. Quando me abordou, sussurrando, eu ia dizer que também estava fazendo a conta dos itens que colocava no carrinho, o que era verdade, os números agora são grandes, Jamil. Mas fiquei com vergonha do queijo e da cerveja contra o macarrão e o leite do senhor. Já do lado de fora, entreguei o arroz que havia prometido para a mocinha que me abordou na chegada, bebê no colo, um dos olhos fechado no que parecia uma terrível picada de inseto. Estava tão agradecida. Quanto mais ela sorria, mais pressa eu tinha em empurrar minhas compras e minha vergonha. Ela perguntou se eu queria que levasse o carrinho, meu deus do céu, não, vá para casa, cuide dos seus olhos e desse bebê, o arroz é uma esmola e ninguém nesse mundo deveria esmolar.
Tenho a impressão de que nossos compatriotas não sentem da mesma forma o intolerável da fervura porque acompanharam a temperatura subindo, grau a grau, infâmia a infâmia. Mas, para quem retorna, depois de um ano, o país parece arruinado. Onde quer que se vá tem gente de cabeça baixa e olhos de fome. Lembrei de uma viagem ao Camboja. Em Phnom Penh, os turistas evitam as mesinhas da calçada que ficam, literalmente, às moscas. Preferem os terraços de onde podem ver o encontro do Mekong com o Tonlé Sap por cima dos miseráveis enquanto tomam seus drinks e comem bem sem preocupar-se com o preço sempre barato para seus dólares ou euros. Embaixo, os pobres e mutilados são parte incômoda e quase evitável da paisagem, detalhe periférico nos relatos sobre as magníficas ruínas de Angkor. Caminham desviando dos que pedem, como se de buracos na calçada, sequer reparam, desviam rápido o olhar, não se implicam, estão de férias. Eles, os turistas, nós, sempre os sonsos essenciais de Clarice.
Uma tarde, ao sair de um desses restaurantes, uma moça franzina e furiosa, sempre com um bebê no colo, teve força para segurar meu companheiro pelo braço e arrastá-lo para dentro de uma venda. Pegou uma caixa de leite e, com o olhar, nos ordenou que pagássemos batendo com força a caixa no balcão. Saiu antes de nós. Sem agradecer, graças a deus.
Aqui em Brasília, o motorista do aplicativo diz que está assim no mundo todo. Escutei isso muitas vezes por esses dias. É um pensamento desmobilizador e conveniente, mas é mentira. Está assim no Brasil, talvez no Camboja. Não está assim na Itália, tampouco na Suíça. A miséria também não alcança a Faria Lima, a Vieira Souto ou os terraços de Phnom Penh. Os que habitam as coberturas continuam lá. São sempre os inquilinos dos andares de baixo os expulsos para a rua.
Nosso país vai mal, Jamil. Enquanto uma capciosa e subterrânea propaganda, escoada do Palácio de Planalto, aliena e convence uma parte relevante do povo, mesmo o que sofre, a fazê-lo pior. Não sei até que ponto quebramos, mas envergamos perigosamente a espinha. Porque não é apenas contra o Estado a ofensiva do governo, mas contra a brasilidade.
Eu gosto da distinção que o historiador Luiz Antônio Simas estabelece entre o Brasil e a brasilidade. Enquanto o primeiro é um projeto bem-sucedido de ódio e exclusão, o segundo é o caldo de cultura engendrado nas fissuras do Brasil institucional, difícil de definir, mas expresso no samba, no frevo e no carimbó, nos versos do Gil e na poesia do Drummond, na religiosidade sincrética do povo e no seu ateísmo místico, nas celebrações e rituais, na praia, no terreiro, nos diminutivos da linguagem e no dito popular, no jeito de chegar sorrindo, no café coado e na temperatura aloucada da cerveja, no corpo receptivo ao toque e sensível à dança, no arroz e feijão e no hábito de reunir vários alimentos diferentes no mesmo prato. Até o brasileiro que menos participa desses ritos é bordado com a mesma linha da brasilidade.
A brasilidade é o escudo que construímos contra a opressão colonial, nosso símbolo maior de resistência, o laço que forjamos para reconstruir as identidades fragmentadas pela diáspora da qual é feito nosso DNA. Isso que não cabe nas cores básicas demais da bandeira e em nenhum patriotismo boboca, que não se exprime na pretensão do hino nacional nem em slogans sem poesia como “ordem e progresso” ou “Brasil acima de tudo”.
Não sei bem como definí-la, mas sei que a brasilidade é nossa mais forte experiência de coletividade nesses trópicos e que está sendo mutilada por esse movimento de vandalismo institucional, sem vergonha e de ambição fascista que chamamos bolsonarismo. Já não nos parecemos com nós mesmos, Jamil. Isso é imperdoável. Por isso, como na poesia de Neruda, para os que salpicaram a pátria de sangue e para os traidores que ascenderam sobre a infâmia: peço castigo. Não apenas como punição, mas como imperativo de futuro.
É bonito o entendimento das culturas de terreiro de que o contrário da vida não é a morte, mas o desencanto. De férias com meus filhos, enquanto tento lhes explicar as contradições desse país amado e preencher seus currículos gringos com a história (da injustiça) do Brasil, me dedico a extrair a festa possível de cada hora. Quero encantá-los. Porque a alegria desengaja do ódio com o qual o Brasil institucional tenta domesticar nossos corpos dentro do moralismo do pecado, servil ao capital e ao trabalho, submisso à reprodução e à virilidade masculina.
Para meus filhos, sobrevive no relicário do afeto a terra das palmeiras e sabiás que meus olhos já não reconhecem. O Brasil é o lugar onde as mangas são sempre doces, tem banho de piscina no inverno e tudo de beber é gelado. Eles se esforçam para apreender nossos molhos e recheios, a textura da massa podre da empada, o susto magnífico do torresmo, o todo-dia do feijão. A música sempre alta, a dança sempre que música. Outro dia, Anita disse que “todos os impossíveis acontecem aqui” e eu pensei que talvez sua experiência de brasilidade não seja assim tão pequenina.
Logo que chegamos, levei os dois para um festival cultural. Em um pequeno palco, uma atriz extravagantemente vestida fazia as vezes de uma diva de cinema. Senti ternura ao ver as crianças morrendo de rir com um esquete tão brasileiro, entre trapalhão e escatológico, dessas coisas bestas das quais gostamos de rir talvez pela identificação com o desajeito, o azar e o vexame. Gael com um enorme pastel de queijo, Anita com um potinho açaí, tão exóticos pareciam em suas mãos. Nas tendas de artesanato, todo mundo mexe com elas, mas não da maneira carina que os italianos têm de abordar as crianças, mas com certa ginga e malícia que o brasileiro não renuncia mesmo com as pequenas. Os acentos e modos de falar são infinitos em Brasília, o vocabulário de palavras misteriosas, as referências, os chistes, a gírias, as crianças têm dificuldade de entender. Quando entendem, costumam me olhar e vejo o Brasil flamejar nos olhos delas. E cada vez que saímos de um desses comércios levamos algo, mesmo quando não compramos nada.
Eu tenho uma fotografia de Gael no clube, com sete anos, em outro inverno passado aqui. Ele está em cima de uma árvore e, com um galho nas mãos, tenta resgatar a bola que ficou presa na copa. Embaixo dele, três meninos torcem pelo sucesso da empreitada. Gael passara o dia brincando com eles. Exausto, já de noite, no silêncio do carro, fez uma das perguntas mais sentidas que já escutei na vida. “Mamãe, é verdade que tem amigos que a gente só vê uma vez?”
Essa é a agonia e a beleza dessas voltas para casa. Vivemos cada encontro como o único. A saudade dói já na chegada, sabemos da falta e, talvez por isso, sintamos tanto amor.
Toda semana festamos na casa de alguém. De longe, escuto a música, as risadas, reparo na quantidade de abraços, beijos, toques, cheiros. Descanso nas histórias que só podem ser contadas no português daqui, meu máximo deleite. Nunca vi crianças mais bagunceiras do que as nossas. Gael e Anita, depois de uma semana no Brasil, comportam-se como caubóis ou selvagens, de todo modo, foras da lei. Felizes.
De perto, na conversa particular, ninguém está bem. A depressão cívica parece se manifestar em sintomas físicos e atrair todo tipo de infortúnio. Tudo é caro. Todo mundo esteve ou está doente. Ou desempregado. Ou endividado. Preocupado. Deprimido. Com medo. Puto. Está difícil viver por aqui e esse lugar de fala é o dos privilegiados. Mas meu amigo enxuga os olhos no meio do desabafo para cantar o Fundo de Quintal que começou a tocar na caixa de som. Eu canto com ele. Outras pessoas cantam e, de repente, somos todos. As crianças percebem que ali acontece um poderoso ritual de brasilidade e também chegam. Por alguns minutos, adoramos ser quem somos. Acho que essa é uma definição bonita para brasilidade.
Na manhã seguinte de uma dessas festas, eu dirigia pela estrada que dá acesso ao jardim botânico, nada especial, um descampado dos dois lados e um resto de cerrado esturricado de julho. Gael, que aos dez anos já passou por mais de vinte países, fala, como quem pensa alto, “o Brasil é tão lindo”.
Não sei o que ele percebia quando disse a frase, mas acho que sim, querido amigo. O Brasil é lindo. Vamos tomá-lo de volta. Ou tomá-lo, enfim. No sistema em que vivemos, a via é política, eleitoral e democrática. Por isso, a roda, a festa e a alegria. Certamente a revolta, oxalá a revolução. Carinho para segurar o rojão. A urgência. O tesão.
Temos falado muitas coisas por aqui, mas a gente devia se ver, Jamil. Do que aprendi durante nossas trocas, no quente desse tempo extraordinário onde tudo nos afasta – pandemia, guerra, crise econômica, bolsonarismo, redes sociais -, quero ser presencial. É no encontro que a brasilidade ou qualquer outra identidade se faz. O escritor Roberto Moura dizia que não foi o samba que deu origem à roda, mas a roda que inventou o samba. O ser humano pode ser muito sombrio sem a roda e acho que as redes têm desencantado as gentes.
Mas a esperança, essa espera com asas, é que já começamos a inventar a roda também pelas redes, às cotoveladas com fake news, algoritmos e discursos odientos. Aqui e ali, aqui e aí, produzimos beleza, cultivamos afeto, organizamos a revolta. Talvez a revolução possível passe mesmo por aí. Mas antes – ou durante e depois – deve passar pelas ruas, pelas rodas, pelas fossas. Pelas luas, pelas lutas. Pelas urnas. Por uma passeggiata em Genebra enquanto ainda está quente ou um espresso lá em casa quando você quiser.
Um beijo,
Juliana
Para ler a última carta de Jamil Chade enviada a Juliana Monteiro, clique aqui.