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Eu te pergunto: e se optarmos por amar?

Foto: Joanna Kosinska



2021-10-03

Ao Brasil, com amor: uma troca mensal de cartas entre dois “estrangeiros” que nos levará até meados de 2022. Jamil Chade (em Genebra) e Juliana Monteiro (em Roma) compartilharão suas reflexões sobre o que será e quem seremos nesse momento de revolução. São cartas digitais. Mas os sentimentos, angústias e buscas são tão reais quanto seus próprios sonhos.

 

Genebra, 3 de outubro de 2021

 

Prezada Juliana,

 

Recebi tua carta num cenário cruelmente perfeito. Eu estava no ambulatório de uma clínica de luxo em Genebra, a cidade com um dos maiores índices de desenvolvimento humano do mundo. Meu filho caçula esperava para ser atendido por uma pediatra que trazia, na plaquinha de seu nome, as bandeiras das quatro línguas nas quais ela poderia atender os pacientes. Um aquário do tamanho de uma parede dividia as salas e, no estacionamento do local, cheguei a pensar que estávamos numa exposição de carros sofisticados.  

Eu segurava a mão dele, numa tentativa de enganar a dor do garoto, que tinha algo na garganta que incomodava. Mas enquanto eu lia a carta, à medida em que as minhas lágrimas começavam a aparecer, eu sentia que era ele quem segurava na minha mão. Sentia que era eu quem tinha algo na garganta. 

Olhando ao redor, tuas palavras serviam como uma espécie de óculos especial para enxergar a realidade. Você tem essa magia de transferir para cada um de nós – seus leitores – esse poder. O da visão daquele que teimosamente parece ter desaparecido do centro: o ser humano.   

A distância entre os personagens que você me descreveu e onde eu estava não se mede em quilômetros. Mas em direitos. O que existia nessa distância é a constatação de que um dos artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos é ainda um sonho distante. "Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos" diz o Artigo 1 daquele documento que serve de bússula para a civilização.

Quando a pandemia desembarcou, lembro-me que uma das primeiras campanhas aqui da sede da OMS foi a de instruir as pessoas a lavar as mãos. Chegaram a envolver atletas famosos para as campanhas. Mas, em poucos dias, eles se deram conta de que água e sabão, em pleno século 21, são ainda itens de luxo.  

Apenas no Brasil, seis milhões de crianças iam para a escola antes da pandemia em estabelecimentos sem esses dois instrumentos.  Em 2017, estimava-se que mais da metade (55%) da população mundial não tinha acesso a serviços de saneamento seguros e mais de um quarto (29%) não tinha água potável. No mesmo ano, dois em cada cinco domicílios no mundo não tinham instalações básicas para lavagem de mãos.  

Em pleno século 21, as sombras dos Severinos de João Cabral de Melo Neto continuam a perambular em suas lutas por existir. Cada vez que leio esses números, ecoa pela minha mente aquelas frases sobre uma outra igualdade, e que de justa não tem nada. 

 

«E se somos Severinos, iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia». 

 

Avanços aconteceram, sem dúvida. Desde os anos 1990, as pessoas ao redor do mundo de fato estão vivendo mais tempo. E isso precisa ser comemorado. Nos países mais pobres, a expectativa de vida aumentou em 11 anos entre 2000 e 2016. Houve ainda uma redução à metade da mortalidade infantil entre 2000 e 2018.  

Mas o progresso ocorreu de uma forma profundamente desigual e extremamente lenta para uma parcela da sociedade. Alguns dos dados refletem a dimensão da odisseia que ainda será necessária para garantir o direito à saúde, uma espécie de termômetro dessa desigualdade.  

Em Moçambique, uma pessoa viveria hoje 57 anos, contra apenas 51 na República Centro-Africana. Já nos países ricos, a expectativa de vida média é de 80,8 anos. Ainda hoje, apenas um terço da população mundial tem acesso aos serviços essenciais de saúde.  

Se a desigualdade é ainda obscena, a pandemia também nos mostrou que nada é inevitável. O progresso humano não é um caminho sem volta. Em 2020 e 2021, em nosso país, a pobreza voltou e, junto com ela, o choro já sem lágrimas daqueles que disputam ossos como animais abandonados para sobreviver.

Mais irônico de tudo isso é que, quando o vírus desembarcou, ultraliberais que tinham proposto privatizar até o oxigênio gritavam desesperados: onde está o estado?

Mas você me fez um apelo em sua carta para que eu contasse algo “bonito”. Juliana, estou convencido de que a pandemia mostrou o pior e o melhor da humanidade. A ganância e o egoísmo foram realidades desse período que atravessamos. Mas também vi como pessoas não pediram autorização para existir, como a resistência se fortaleceu, como a ciência venceu.  

Ninguém sairá dessa crise sanitária como entrou. E quero acreditar que isso seja uma boa notícia. Talvez eu esteja sendo ingênuo. Ou querendo ser ingênuo. Mas vi como temas como a solidariedade e o amor voltaram ao centro do debate, inclusive político. Serão atropelados pela realpolitik? Provavelmente. Mas, ainda assim, quero acreditar que o amor colocou seu pé na porta.  

Utopia? Certamente. Mas não seria insuportável a vida sem ela? 

Irracional? Apenas para aqueles que conseguem dormir tranquilos sabendo que o mundo tem comida para 2 planetas e, ainda assim, a fome é uma realidade para milhões de pessoas. 

Recusar o amor no centro do debate nos custará caro demais. A insistência em recusar tal conceito dentro da política ou da comunidade não apenas nos torna insensíveis, mas também tenho a convicção de que nos impede de tomar as decisões mais sustentáveis. Sem amor, nossos esforços para nos liberarmos da opressão – seja ela qual for – estão fadados ao fracasso.  

Foi construída a noção de que o conceito de amor se refere apenas ao casal, à família ou a um grupo. O que eu proponho é que o amor não seja um assunto privado, que não esteja acorrentado.  

O amor como um ato subversivo. O amor como prática revolucionária. Cuidar do canteiro de flores numa esquina de Roma, do cachorro, do irmão, dos avós, do vizinho, de um desconhecido, de um estrangeiro, da cidade, do país e de seus bosques, do planeta e de suas maravilhas. O que é a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 senão uma carta de amor à humanidade?  

Há uma percepção distorcida que apenas o pessimismo é sinônimo de inteligência. Tuas cartas desmontam essa tese, até por falarem em flores. Teu apelo, por si só, revela a vontade de luta e de otimismo. 

E, então, eu te pergunto: e se optarmos por amar, inclusive como ideologia política?

Já com saudades até a próxima carta, te mando um abraço. 

 

Jamil  

 

Para ler a carta de Juliana Monteiro a Jamil Chade, clique aqui.

 



Jamil Chade

Jornalista, graduado em Relações Internacionais. Com passagens por mais de 70 países, atualmente é colunista do UOL, El País e do Grupo Bandeirantes. De seu escritório na sede da ONU em Genebra, ele tem contribuído com veículos internacionais como The Guardian, BBC, CNN, Le Temps, Swissinfo, CCTV, Al Jazeera, France24 entre outros. É autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Ele também venceu o prêmio Nicolas Bouvier, na Suíça, foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se e escolhido como um dos 40 jornalistas mais admirados do país (Maxpress). Em 2020, o jornalista venceu o principal prêmio do ano da Associação Internacional da Imprensa Esportiva por suas revelações sobre a corrupção no futebol e, em 2021, recebeu o troféu Audálio Dantas por seu trabalho sobre direitos humanos e democracia




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