Vária

A pata

Daniela Pinheiro

2020-11-13

É quando, acho, o dono da casa se sente especial, como se tivesse, ele, parido a pata. E aí, devolve as observações simpáticas com platitudes repetitivas, que fazem com ele se sinta ainda mais importante - provavelmente menciona algo sobre o preço ou a dificuldade de se achar uma daquelas nos dias de hoje. Ele finaliza o ato com uma risada cretina e autoritária do alto da sua cadeira de diretor de cinema. A pior combinação num ser humano é a insegurança encoberta pela arrogância. Deve ser por isso que acho que ele é jornalista. Os vampiros se reconhecem.

É sábado, quase uma da manhã, as crianças dormem e eu continuo a espiar a vizinhança. Da janela do meu quarto, junto à minha mesa de trabalho, encaro o prédio avarandado de quatro andares, pintado em amarelo canário com detalhes em ocre - uma construção anódina e atemporal. No rés-do-chão, há uma joalheria (aqui, diz-se joalharia) chamada “Antigo Decor”, ao lado a pizzaria “Anema & Core” - que nos frustra por não terminar a reforma que já dura meses -, uma butique, cuja vitrine só exibe roupas estampadas, e a morada desse homem barrigudo de cabelos desgrenhados e barba cor de sal-e-pimenta,...

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Daniela Pinheiro

É jornalista e mestranda em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Foi bolsista John S. Knight na Universidade de Stanford e do Reuters Institute for the Study of Journalism, em Oxford. Trabalhou na Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e nas revistas Veja e Piauí. Foi diretora de redação da revista Época. Ganhou quatro vezes o Troféu Mulher Imprensa e duas vezes o Prêmio Comunique-se como melhor repórter de mídia impressa do país. Fotografada por Roberto Moreyra.