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Linha de sombra

Foto: Frank Baez



2020-10-07

A crônica de Frank Báez é publicada na revista Pessoa no âmbito de uma parceria com o LCB diplomatique

 

Minha mãe percebeu que uns abacates que tínhamos embrulhado em jornal para amadurecerem mais rápido ainda estavam verdes, no mesmo ponto em que os colhemos do abacateiro. Fui verificar e estavam mesmo verdes. Fiquei refletindo como a minha vida era igual a esses abacates. Ou seja, este tempo todo que passei confinado por causa da pandemia do coronavírus, não escrevi nenhum poema e não amadureci nem um pouco.

A única coisa que parece mudar é quantidade de contagiados pelo coronavírus divulgada pelo Ministério da Saúde. A cada manhã, o ministro da Saúde anuncia os novos números da COVID-19 durante uma entrevista coletiva. Os números sobem e descem, mas no final de semana voltam ao ponto inicial. Essa dinâmica me fez pensar que o ministro é como Sísifo e que o índice de contágio pelo vírus é a pedra que subirá e descerá a montanha ao longo de 2020. Em 25 de agosto, tivemos 609 casos novos. No dia seguinte, o número desceu para 340. Vamos ver qual será o número no próximo dia. Conforme escrevo estas linhas, aqui na República Dominicana tivemos no total 92.557 pessoas infectadas e 1.613 mortes por causa da COVID-19. Continuamos sendo o país caribenho com a maior quantidade de casos e mortes causadas pela doença.

Por assim dizer, estamos na “linha de sombra”, conceito ao qual se referiu Joseph Conrad no livro de mesmo nome, em que narrou pelo que passou da primeira vez que atuou como capitão de um navio. Logo depois de partir do porto de Bangkok, seu navio chegou até a entrada do golfo da Tailândia e permaneceu ali, encalhado nas águas plácidas por mais de 17 dias, esperando que o vento voltasse a soprar. Para piorar, a tripulação pegou uma febre tropical e o medicamento se esgotou. Numa das passagens, Joseph Conrad chega a comentar o seguinte: “Quando voltei os olhos para o navio, tive uma visão mórbida dele como uma sepultura flutuante”.

Conforme digito este texto no meu laptop, uma música de merengue começa a tocar em um dos edifícios da vizinhança. É do Omega, um artista urbano dominicano. A canção se chama Dicen en la calle (tradução livre: “dizem pelas ruas”) e parte da letra parece evocar o livro de Conrad:

Yo soy el que tiene el control

Estou no controle

El que tiene el timón

O que tem o leme

Soy el capitán de un grupo de muertos

Sou o capitão de um grupo de mortos

Que son mi tripulación

Que são minha tripulação

 

Estes versos cantados por Omega em 2020 parecem encontrar inspiração no inferno em que Conrad viveu em 1888 e sobre o qual publicou no livro de 1916. Não sei se Omega escreveu essa música da prisão, onde esteve no ano passado após ser preso por violência de gênero, mas seria interessante se esse tivesse mesmo sido o caso.

No entanto, olhando pela janela deste quarto, que mais parece a escotilha de um navio a cada dia, tenho a esperança de que cedo ou tarde uma brisa favorável nos ajudará a ultrapassar a linha de sombra do coronavírus. Talvez, então, os abacates amadureçam e eu escreva poemas novos. Ou talvez não.

 

*

Tradução de Rafaela Lombardino.

 

Essa crônica foi publicada originalmente no portal LCB diplomatique em espanhol, inglês e alemão e é apresentada na Pessoa em português como parte de uma parceria entre as duas plataformas. Confira as outras versões aqui.  

 



Frank Baéz

É um poeta nascido em Santo Domingo, República Dominicana, em 1978. É autor dos livros de poemas Jarrón, Postales, Ontem à noite sonhei que era DJ e ​​Este é o futuro que esperavas. Publicou um volume de contos, Pague os psicanalistas, três livros de crônicas reunidos em A Trilogia dos Festivais, uma compilação de ensaios intitulada O que o mar trouxe e o livro artesanal La Marilyn Monroe de Santo Domingo, que contém gravuras do artista Nono Bandera. É fundador e integrante da banda El Hombrecito, que lançou três discos e um DVD. Seus livros foram traduzidos para o inglês, alemão, árabe e holandês. Postales foi publicada em seis países e foi premiada com o Prêmio Nacional de Poesia Salomé Ureña em 2009. Em 2019 publicou o O ​​fim do mundo chegou ao meu bairro.




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