Minha conta Gmail estava lotada, não cabia mais mensagens. E o Google ficava me enviando aqueles avisos malcriados informando sobre a falta de espaço, a necessidade de, em breve, devolver minha correspondência; relapsa era eu, que deveria pagar mais espaço e ganhar mais um respiro e tudo seria cobrado, docemente, pelo cartão de crédito, em parcelas suaves, eu nem sentiria. Enquanto a gigante tech tentava me convencer a assinar um plano, quase me chantageando com meu querido endereço de e-mail, eu decidia se pagaria a conta mesmo e me tornaria sua escrava ou se, espertinhamente, abriria nova conta, com endereço eletrônico semelhante, a fim de dar um drible nada original neles. Afinal, foi o que fiz. De anadigital passei a anadigitalpro, em questão de minutos. E foi assim que comecei uma resposta à correspondência da Mirna Queiroz, editora da Revista Pessoa, em abril de 2017: explicando a ela que mudaria de endereço virtual.
Recuperando aqui as mensagens trocadas por nossos endereços, reavivo a memória e encontro, em 2014, nossas primeiras conversas assíncronas. Foi quando participei com uns poemas de uma antologia produzida em Paris sobre a literatura brasileira viva. Depois disso, passamos um tempo discutindo como o belo volume chegaria até minha casa, por correios, fisicamente. Conseguimos.
Daí, em 28 de março de 2017, Mirna enviou uma mensagem que mexeu com meus planos: “Queria fazer um convite despropositado: para você colaborar com a revista Pessoa.com, colunista ou curadora”. Como adoro despropósitos como estes, já senti o coração acelerar. Uma bela revista, um belo espaço, minha intuição não falha. Da última vez que aceitei convites assim, fiquei no site até hoje... e era 2003. Mais uma ótima oportunidade de ter a maravilhosa obrigação de escrever, escrever sempre. Ser curadora nem me interessava tanto. Eu teria de buscar, a intervalos regulares, pessoas para escrever sobre isto ou aquilo; teria de fazer isso na base da amizade; teria de rezar para não haver atrasos, etc. Estresse demais, não? Eu comigo teria mais chances de manter acesa a chama daquela coluna. De fato, só me atrasei uma vez, nesses mais de três anos e quase quarenta blocos.
Explicava Mirna: “É para seção de língua e linguagem. Reparo que esses temas são normalmente abordados por homens nas mídias”. Arguta, sensível. Há, sim, algumas mulheres tratando de linguagem e língua na imprensa, mas os top of mind são aqueles que a gente sabe, os que aparecem na TV e que publicam, mês a mês, semana a semana, alguma “dica de português”, em especial coladas à gramática tradicional, prescritiva.
Achei fundamental a questão que Mirna me apresentava. O fato de ela associar isso a uma percepção de gênero me deixou ainda mais suscetível. E a editora perguntou: “Será que faria sentido para você?”, marcando uma conversa por Skype.
Claro, claro que fazia sentido. Mais de um, inclusive. Minha resposta foi aquiescente, bem-humorada, e ainda escrevi: “Vamos conversar sim. Quero saber mais sobre a ideia e de por que ela é ‘despropositada’”. A gente sabia que não era. O adjetivo da Mirna era retórico, modalização pura. Ou eu adoro mesmo um despropósito que tenha relação com o ato de escrever.
Em 5 de abril de 2017, eu enviava minha primeira coluna à Revista Pessoa, pelo e-mail novo à conta eletrônica oficial do periódico. Chamei de “tentativa de texto”, pedi que Mirna lesse, avaliasse e, de fato, eu queria pegar o tom, o jeito da revista, da editora, do espaço. A Pessoa já existia fazia tempo e eu não podia bobear. Queria achar minha dicção naquela empreitada, e, importantíssimo: sem deixar para trás minha formação em Linguística. Não sou uma gramática, não sou pregadora de regras rígidas, não sou uma prescritivista de carteirinha. Com um pé inteiro na literatura, nem poderia. Minha formação em estudos linguísticos deveria ser o DNA da coluna, primeiramente porque sim; segundamente para que minha liberdade de discutir questões mais conformadas à vida real, à vida de quem escreve ou quer escrever ou se debate com a escrita ou se refestela com ela, emergisse, nos temas e nos textos que eu disponibilizaria. Era isso. Achei por bem enviar à Mirna um texto mais explicativo, do tipo “a que vim?” ou “o que vou fazer aqui?”, antes de abordar algum tema propriamente linguístico. A coluna já tinha nome, não foi escolha minha, e diz respeito a um verso de Fernando Pessoa. Apropriado, não? E terminei meu e-mail inaugural de colunista dizendo o seguinte: “Se não estiver boa, pode dizer. Refaço. Desfaço”. Eis a disposição fundamental de quem escreve e gosta do que faz: ouvir, refazer, desfazer.
Há mais de três anos, portanto, venho ajudando a rechear esta bela revista. Esta parceria – porque é, de fato, uma parceria – já me trouxe outras vivências boas e alegres, profissionais e pessoais, além do fato de me garantir, todo mês, um espaço bem arranjado e relevante onde discutir uma questão que está no cerne de nossa humanidade: a linguagem. Não fiz nenhuma pesquisa retrospectiva completa, mas sei que andei tratando mais das questões macro, da escrita e da leitura, do que propriamente dos aspectos miúdos de nossa vida nos textos. Sim, abordei uma vírgula ou uma concordância, mas isso nunca é pequeno, como a alma não é. Que venham mais dez, mais cem, mais mil anos pessoanos. E que as boas parcerias sejam sempre fáceis de encontrar.
PS: ah, eu amava tanto o anadigital... que acabei cedendo e pagando ao Gmail um plano de espaço. Fazer o quê?