Há cerca de um ano, um grafite estampou-se em alguns lugares da cidade, entre eles a pedra do Sal, no morro da Conceição. A que vinha, de onde vinha: “Fui crime... serei poesia”?*
A leitura, e compreenda-se leitura literária, começa a entrar em cena como um direito de todas as pessoas, em meados da década de 1980. Falo da realidade brasileira, que conheço bem. Atividade para a qual sempre serão precisos dinheiro e ócio, a leitura precisa ser construída como valor junto às classes sociais menos favorecidos para que seja efetivamente praticada. As classes dominantes sempre souberam desse valor e dele se apropriaram, desde que a tecnologia da escrita foi inventada, construindo em torno da leitura, ora mistérios, ora impossibilidades.
A leitora, que entrou na escola pública em 1955, ficou maravilhada com aquela sala muito clara, diferente das demais salas da escola, com estantes baixas, cheias de livros e um mobiliário convidativo a uma ordem diversa do cotidiano. O espaço associava-se ao prazer e a uma iniciação, e logo foi devorado por um sistema em que o conteúdo pedagógico se sobrepunha à literatura, ou, dizendo-o por outras palavras, em que essa experiência era um dado supérfluo, e mesmo perigoso. A biblioteca virou sala de aula.
Mas isso foi há sessenta anos. Entrementes, muita gente trabalhou para que o Estado assumisse sua responsabilidade no direito à literatura, como defendeu Antonio Candido em 1984. Criou-se na população brasileira uma consciência da literatura e de seu valor, estampada no grafite mencionado, a remeter ao episódio da chamada Inconfidência Mineira, transformado em um dos mais belos poemas em língua portuguesa, o Romanceiro da Inconfidência. Talvez não fosse tão longe o grafiteiro, e pensasse no crime de perto, dando corpo a um novo gênero, a elegia póstuma, que tem sido encontrada em muros de cidades como Rio, Niterói, São Gonçalo. Fruto do louvor e da saudade aos que tombam na guerra do tráfico, textos comoventes, desenhos instigantes transformam o crime em poesia. Multiplica-se por todos a dor que era de poucos.
E eis que as bibliotecas públicas do estado do Rio de Janeiro são fechadas. Faltam verbas, e a literatura, a pesquisa, o estudo tornam-se supérfluos, nesse caso. “Uma dor que bate em todos”, me comunica o jovem Igor, cancelando o evento previsto para o dia seguinte, na Biblioteca Pública de Niterói. Penso com ironia e dor, a poesia virou crime.
Clamor nas redes sociais, na imprensa, a leitura está em cena. Está em cena, e os governantes vêm, rápido, abrir a cortina para um novo ato, as prefeituras do Rio de Janeiro e de Niterói assumem as bibliotecas públicas, onde diariamente, silenciosamente, o crime se torna poesia: o jagunço que Leminski criou em “Gente do Conselheiro” diz a Euclides da Cunha que aquilo que acontece em Canudos precisa ser contado, e precisa ser contado direitinho. Por isso, a vida dele será poupada. Euclides cumpre a jura feita ao jagunço sob mira de arma.
Essa consciência. Meireles, Leminski, grafiteiros sabem que fazer do crime poesia é tarefa da literatura, colocando perguntas em lugares certos. Quantos bandidos devem se formar por biblioteca fechada? Quanta corrupção se lavra, nessas condições? Eis perguntas oportunas.
* Ver: o-fio-dos-segredos