Antes das descrições densas dos antropólogos, havia escritores que interrogavam gentes e paisagens para entender as próprias sensações diante dos lugares que percorriam. Dentre os que tratavam da própria terra, quando criticar é ferir e se ferir, poucos tiveram a força que teve Miguel Torga. De obra vasta e consagrada, fez isso com maestria numa brochura de título banal e corriqueiro - há coisa mais óbvia que chamar de "Portugal" as 97 páginas que escreveu sobre o país? Não devem, aliás, corresponder nem a um por cento do que publicou.
Li o livro pela primeira vez entre duas sentadas, das que começam no aeroporto e acabam na poltrona do avião; ficou em mim a lembrança da concisão, rústica e poética. Quis lê-lo outra vez depois de ter visto a terra (em) que Torga viveu. Acertei: anos depois, vou saboreando linha por linha, pesando cada palavra, indo e voltando, às vezes recitando alto, pois é livro sonoro, de ser lido e ouvido. Miguel Torga não escolheu o pseudônimo à toa: torga é uma urze bravia, comum nas penedias trasmontanas em que nasceu. Me ocorre que o livrinho áspero que publicou em 1950 acabou ensombrando os guias turísticos que vieram antes e depois, pobres deles.
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Trás-os-montes
"Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição. Terra Quente e Terra Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os lapedos, rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta aridez.
Homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão. Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde: Entre quem é! (...) Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura, aos vinte anos (se não tiver sido antes), depois da militança, alguns emigram para as Arábias de além-mar. Brasis, Áfricas e Oceânias. (...) Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. E ali ficam nuns cemitérios de lívida desilusão, à espera que a lei da terra os transforme em ciprestes e granito."
Excerto do livro: Portugal
Autor: Miguel Torga (1907-1995)
Editora: Leya - 2015 (10ª Edição)
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