Não me lembro da última vez que um livro de um autor brasileiro gerou tanta mossa em Portugal. Menos me lembrarei da última vez que um só romance venceu o Atlântico, trazendo à Europa uma literatura às costas. Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, ainda não foi publicado no Brasil. Para já, é em Portugal que podemos ter nas mãos um romance feito a ferros.
O livro, vencedor do Prêmio Leya 2018, acabava de aterrar e já o burburinho começara e a crítica dos círculos informais e mais tarde formais se rendera. Trata-se de um romance em que a prosa nunca encontra solavancos, em que o tempo é manipulado com mestria, em que o social é um elemento interno da narrativa, em que as descrições físicas quase saem do papel, em que as personagens são gente, em que a política se escancara mas a milhas de um panfleto. Rememorará, por isso, Jorge Amado, Graciliano Ramos e Raduan Nassar, e isto numa altura em que a prosa vinda do Brasil parece estar metida no pantanal da auto-ficção.
Itamar Vieira Junior, crítico desta estratégia literária, leva o desafio da escrita a um patamar que não se via em literatura brasileira há vários anos, e fá-lo consciente de que a narrativa não se desfia porque sim. Não é que haja um intento político declarado; o que há é uma universalidade nas personagens e nas situações que parecem acantonadas numa realidade que se adivinham a anos-luz de um português. Torto Arado nunca poderia sair das mãos de um autor de Portugal, ou pelo menos não de um que não tivesse décadas de Brasil em cima. A ligação que o autor cria com os leitores portugueses, e no caso com backgrounds sociais tão distintos dos das personagens, dá-se através do vínculo humano chamado empatia. Não a de cada leitor, mas a do autor, que mergulhou a eito no abismo psicológico, emocional, geográfico, socio-económico, e descobriu o que nos toca.
O leitor estrangeiro desta obra pouco terá em comum com Bibiana ou Belonísia, e por isso que este livro agrade foi até uma surpresa para o autor: estaria o júri do Prémio LeYa interessado em encher estantes com aquele canto da Bahia? O ponto principal é que, se há diminuto no universal, também há universalidade no que nos parece tão recôndito.
O que distinguirá a grande literatura da literatura mediana será a capacidade de extrair do único o universal, e isso é coisa que Vieira Junior faz de forma muito segura. Para isso, contarão não apenas o percurso de investigador científico (é doutor em Estudos Étnicos e Africanos), com pesquisa sobre a formação de comunidades quilombolas no interior do nordeste brasileiro, mas também as leituras acumuladas e a experiência de escrita, tal qual treino num ginásio, que lhe permitiu ganhar e aplicar as ferramentas técnicas necessárias à desenvoltura de uma narrativa desta dimensão.
Em Torto Arado, a acção gira, à primeira vista, em torno da vida de uma família. À segunda, gira em torno do contexto social que define, ditando, a vida dessa família: a precariedade, a insegurança, a hierarquia. A história, afinal, é sobre uma família de trabalhadores de uma fazenda no sertão da Bahia, descendentes de escravos. Tudo se passa após a abolição da escravatura, mas, com o desfiar da narrativa, é claro que a abolição não significou uma consolidação de liberdades, uma horizontalidade de direitos, o fim da supremacia dos brancos, dos proprietários – dos proprietários brancos. A crítica ficará sempre aquém, porque não será aqui que Itamar Vieira Junior mostrará ao leitor ou ao potencial leitor como fintou a caricatura, a pena ou o queixume, antes criando personagens imbuídas de um sentido tal de dignidade que qualquer um pode se espelhar nelas. É que viramos as páginas e somos aquela gente, recusamos a vergasta, recusamos o declínio – e fazemo-lo sem sermos heróis, fazemo-lo só por sermos gente.
Itamar Vieira Junior veio para marcar a literatura de língua portuguesa. Escreve não de caneta na mão, mas de tocha, e ergue-a com músculo. Belo, poderoso e comovente, apresenta-nos a grande literatura com uma simplicidade que atormenta. E poderia ser de outra maneira?