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Terrapreta: o outro e o afeto

Rita Carelli. Foto de Victor Vieira



2018-05-07

 

Rita, a viajante entre os mundos, Rita, estrangeira em todas as partes, parece que guarda um segredo. E seu romance, TERRAPRETA é, entre outras coisas, sobre esse segredo, esse algo que ela sabe e viu, essa outra vida.  

Carola Saavedra

 

Rita Carelli me chamou a atenção logo que a conheci, algo no seu olhar, parecia ao mesmo tempo tão perto e tão longe, depois fiquei sabendo da sua história. Filha da antropóloga Virginia Valadão (falecida em 1998) e do cineasta Vincent Carelli (ambos conhecidos pelo profundo engajamento na causa indígena), viveu grande parte da infância e adolescência em contato direto com diversos povos indígenas. Rita, a viajante entre os mundos, Rita, estrangeira em todas as partes, parece que guarda um segredo. E seu romance, TERRAPRETA é, entre outras coisas, sobre esse segredo, esse algo que ela sabe e viu, essa outra vida. Rita conta a história (em parte autobiográfica) de uma adolescente que, após a morte da mãe, deixa sua rotina em São Paulo e vai com o pai arqueólogo passar uma temporada no Alto Xingu, luto e encantamento, experiência que a marca e ressoa em sua vida adulta (segunda fase do romance). Rita escreve sobre o outro, sobre a linguagem da alteridade e do afeto, e sobre a coragem que é ser o outro do outro. Eu olho com atenção para seu texto forte e poético, o enigma permanece, que bom, eu penso, que bom.

TERRAPRETA é o romance de estreia de Rita Carelli. Ainda sem editora.

 

TRECHO

 

Hoje à tarde saí andando a esmo no mato. Não sei o que me deu, um abuso de ser o tempo todo observada. Fugi até mesmo de Maru e Padjá, o que não é nada fácil. Os dois, se por um lado, me guiam, contam e mostram tantas coisas, sei que também me vigiam. Maru, parece um pequeno katsek da floresta, tenho a impressão de que ele tem vários olhos espalhados pelo corpo. Me pergunto até se ele não tem algum dom da invisibilidade, (meu pensamento cartesiano sendo posto a prova todos os dias nessas paragens), surgindo de repente pelos caminhos, vendo sem ser visto.

Todos aqui se conhecem e tem seus lugares, os comportamentos são ordenados (e burlados, é verdade) por regras ocultas que eu tento caoticamente assimilar. Os procedimentos estão gravados em seus corpos, mas não no meu. Sou meio bicho? Tenho pelos, meu corpo não foi fabricado, escarificado, domado, educado, construído, tatuado, ampliado, conectado com forças maiores que as minhas. Não me foram introduzidos sumos de ervas e seus poderes, não tiraram meu sangue fraco me obrigando a fabricar um novo, forte, não passei por reclusões, não me ensinaram a cozinhar nem fabricar coisas com as minhas mãos, a sobreviver por minha conta, não me disseram qual era o dia em que eu deixava de ser menina e passava a ser mulher, o que eu precisava saber a respeito, não me deram um uluri, o poder sobre o meu sexo, não determinaram o período de duração do meu luto, enfim, não me ensinaram nada das coisas práticas da vida, apenas o teorema de Pitágoras e o uso de mesóclises - que aprendi mal. 

Vou andando a esmo no mato, meio perdida em pensamentos destes, quando me dou conta de que já estou A uma boa distância da aldeia. Entrevejo uma cabana de palha. Parece abandonada. O telhado está deteriorado, há grandes vãos negros entre as folhas das palmeiras, mas as cinzas, na frente da porta, parecem menos antigas: a chuva ainda não lavou seu último fogo. Me aproximo devagar, acometida de súbito por uma apreensão. Há qualquer coisa sinistra neste lugar. Enfio a mão no bolso para me certificar de que o canivete está ali. Um reflexo já quase natural. É incrível a quantidade de coisas que se pode fazer com um bom canivete.

Contorno a cabana devagar. Nos fundos, uma pequena clareira. Dou mais dois passos e sinto um movimento na casa. Tem alguém aqui. Pode ser bicho também. Meu coração trabalha depressa. Do contorno esfarrapado de sapé sai um jovem. É Muneri. Ele veste um calção azul e um par de sandálias de dedo. Eu pressinto: foi ali que seu irmão morreu. Devia ser sua cabana de reclusão.

Os homens também passam por reclusões pubertárias, mas, em geral os períodos são mais curtos: passam três meses em reclusão, voltam ao convívio da aldeia, depois se isolam de novo - não é um resguardo contÍnuo como o das meninas. A não ser em um caso como este, do irmão de Muneri, que estava sendo preparado para ser chefe. Aí a reclusão masculina pode ser duríssima. E eles ficam longe de todos, sozinhos ou aos pares, em uma cabana no meio do mato, tem que se virar pra comer, pra fazer tudo. A dieta também é restrita, como a das mulheres. Tomam sumos de ervas poderosas para fortalecer o corpo. E não podem transar. Talvez por isso também os mandem para longe, devem poder a domar os seus impulsos e se virarem sozinhos, concentrando suas energias até aprenderem a lutar.

Me sinto totalmente constrangida, como tivesse entrado em uma zona proibida.  Recuo de um passo, mas ele relaxa e se abaixa, sentando nos calcanhares. Os índios nunca se sentam diretamente no chão, nem as crianças. Usam sempre um banquinho e, na falta dele, um tronco ou uma esteira, até uma folha, ou se acocoram. No começo era impossível pra mim manter uma conversa de mais de dois minutos nessa posição, agora, ela já é sinônimo de repouso. Tenho a vaga impressão que Muneri quer falar algo, então me abaixo, mas ele permanece mudo como uma pedra. Sinto que estamos ali em um lugar ao mesmo tempo sagrado e maldito. É possível isso?

- Meu irmão morreu aqui - diz ele finalmente.

Eu aceno com a cabeça, assentindo.

- Você sabia? Quem te contou?

- Ninguém me contou, mas eu senti quando cheguei - respondo.

Muneri me olha. É a primeira vez que me encara. Finalmente, parece não estar em frente à uma parva total e isso parece lhe dar coragem.

- Eu sou o segundo filho homem. O segundo filho não vira chefe.

Volto a acenar. Não tenho a menor ideia do que dizer, mas chego logo a conclusão de que o melhor é não dizer nada: tudo que eu tenho a oferecer é um par de ouvidos estrangeiros, e isso basta.

- O primeiro filho sim, é preparado para ser chefe desde pequeno, já sabe. O segundo não. Não pode disputar com o irmão, você entende?

Eu entendia. Muneri foi criado a vida toda para não ter a ambição de liderar. E não tem. Só que agora esperam dele que tenha, do dia para a noite. Ele também deve ter medo, afinal, o que se diz é que seu irmão morreu enfeitiçado durante a reclusão. Muneri me conta que os bichos também têm seus chefes: o Hiper Veado, com sua galhada excepcional, ou o Hiper Peixe Cachorra, com seus dentes tão afiados. Ouvindo-o falar tenho a sensação de que os chefes têm uma relação de predador e presa com seus grupos. Se por um lado o chefe captura e domestica seu povo, ao mesmo tempo se coloca à sua mercê: o grupo também captura e domestica seus chefes.

 

ENTREVISTA

 

Carola Saavedra - Como você descreveria o enredo de TERRAPRETA? Como surgiu a ideia para o livro?

Rita Carelli - TERRAPRETA é um romance de iniciação. No enredo uma jovem perde a mãe de maneira inesperada e é obrigada a viajar com seu pai, nessa altura praticamente um desconhecido, para o Alto Xingu, onde ele se dedica a desvendar a ocupação milenar amazônica pelos índios da região. Chegando lá, depara-se com um novo universo, de natureza exuberante, regido por outras lógicas e povoado por espíritos. Encontra outros jovens, que também estão fazendo sua passagem para a vida adulta, mas com desafios diversos dos seus e em uma sociedade onde os ritos são marcados e ordenados pelo coletivo, enquanto Ana deve inventar sozinha sua maneira de crescer.

A ideia para o livro surgiu de um diário que escrevi quando estive no Xingu quinze anos atrás. Reler esse diário fez com que eu me desse conta da preciosidade dos encontro que vivi ali e me despertou o desejo de compartilhar um pouco dessa sorte de ter andado em tantas aldeias indígenas, acompanhando meus pais em viagens e pesquisas desde os três meses de idade. É incrível como o Brasil teima em fechar os olhos diante da riqueza dessas sociedades. Mas o livro também vem debruçar-se sobre um abismo meu, muito pessoal, para o qual há muito eu queria olhar...

 

Carola Saavedra - É sempre tão difícil falar do outro, como você lidou com a alteridade que marca o romance?

Rita Carelli - É uma pergunta curiosa para mim. Algumas pessoas que já leram o texto ressaltam isso: como eu conto sem julgar, (mesmo passeando por temas polêmicos como o tabu da menstruação, diferenças de gênero, infanticídio, feitiçaria), como a personagem aceita histórias e situações nada óbvias para não-indígenas de maneira natural. No romance eu aproveito a pouca idade da personagem, talvez mais permeável à novidades, e também o estado de choque em que ela se encontra: depois da morte da mãe tudo lhe parece possível. Como escritora aproveito minha própria história e devo admitir um ponto de vista privilegiado: depois que você cresce sendo frequentemente acordada por sua mãe de madrugada para ver os espíritos no pátio, o pensamento mágico lhe entra na carne. Não saberia escrever de outra maneira que não fosse essa. Eu também sou “o outro”.

 

Carola Saavedra - Você é filha de dois indigenistas importantes, o que te deu uma série de vivências singulares. Você poderia falar um pouco deles e da sua experiência junto aos diversos grupos indígenas no Brasil.

Rita Carelli - Sim, minha mãe era uma um acontecimento: trabalhou com vários povos, militou pela questão agrária, promoveu auto demarcações junto aos índios, trabalhou com grupos isolados, fez arte, fez filmes. Foi garota de recados da luta armada, foi presa e torturada aos 17 anos. Tem um documentário etnográfico (Yankwã, o Banquete dos Espíritos, com os Enauenê-Nauê) que é um dos primeiros sobre um complexo ritual indígena sem um único antropólogo ou branco dando explicações acadêmicas). Fez grandes amigos e famílias afetivas por onde passou. Era destemida, original, generosa. Tinha acabado de ser convidada para ser diretora do museu do índio em Brasília e já estava inventando com seus parceiros indígenas (e comigo, sua filha de 13 anos) um museu maluco, sem acervo, vivo, quando faleceu, aos 44 anos de idade. Meu pai, mergulhou no universo indígena de cabeça, aos 17 anos de idade, de corpo e alma, com os dois pés, as duas mãos e todos os fios de cabelo. Criou uma escola de cinema para povos indígenas, o Vídeo nas Aldeias, que atua há mais de trinta anos e já produziu mais de 80 filmes notáveis. É autor de Corumbiara e Martírio, dois dos filmes mais contundentes sobre a questão indígena no Brasil.

Sobre meu contato com os índios...  Nossa casa sempre foi um pouso em São Paulo. Nos fundos tinha um quartão, cheio de ganchos de rede, aberto para os amigos indígenas que chegassem. E chegavam, de todos os cantos do país. Além disso dormiam na casa outras pessoas que vinham trabalhar junto: escritores, fotógrafos, mateiros, antropólogos, cineastas e indigenistas do Brasil e de fora. As madrugadas eram regadas de conversas em todas as línguas. Fiquei insone desde a mais tenra infância: não queria perder nada do que se passava ali. Pulava de um colo a outro até o limite de minhas forças e até podia dormir embalada nos braços do grande cacique Raoni.

Fui a primeira vez à uma aldeia indígena aos 3 meses de idade, na Bahia da Traição, Paraíba, onde moram os Potiguara. Parece que peguei uma terrível doença de pele e meus pais decidiram esperar um pouco para me carregar com eles em suas andanças. Voltei à pista aos 3 anos de idade em uma aldeia Krahô, no Tocantins, de onde guardo as minhas primeiras memórias: um boi morto no pátio, parecendo uma montanha, alimento para a festa de iniciação dos meninos onde meu irmão seria emplumado juntos com os outros, “meninos-pássaro”, eu batendo na barriga do boi como à um tambor...

Mas o povo mais formador na minha história foram os Enauenê-Nauê, do Mato Grosso, com quem minha mãe trabalhou durante oito anos e que frequentei entre 5 e 11 anos de idade (é sobre esse período meu novo livro infantil "Minha família Enauenê" que será lançado em breve pela FTD). Mais tarde regressei aos Krahô, estive no Xingu mais de uma vez (onde se passa esse romance), nos Ashaninka do rio Amônia, no Acre, voltei aos Enauenê algumas vezes já adulta... Mas mesmo quando não ia às aldeias os índios vinham até nós - fazer traduções, montar os seus filmes ou comparecer  à outros compromissos - em intenso trafego. Além, claro, das inúmeras imagens produzidas no contexto do Vídeo nas Aldeias, pelos cineastas indígenas, que me acompanham desde que que me entendo por gente e compões um grande panorama sobre os diferentes povos  existentes no país.

Faço teatro, faço filmes, falo, penso e escrevo sobre muitos temas, mas sempre volto a este precioso legado que me faz quem sou. Escrever este livro me faz pensar nas palavras do escritor Ruy Duarte de Carvalho: “Há coisas para dizer que o tempo não perturba”.

 

 

BIOGRAFIA

Rita Carelli é atriz e diretora de teatro e cinema e, de uns anos para cá, começou a escrever e ilustrar profissionalmente - coisas que sempre gostou de fazer. Coordenou a coleção infantil de seis volumes "Um Dia na Aldeia" (para a qual também escreveu e ilustrou três títulos), publicados pela editora Cosac Naify em parceria com a ONG Vídeo nas Aldeias. Seu livro "Akykysia - O Dono da Caça", foi contemplado com o prêmio internacional White Ravens e com selo de "Altamente Recomendável" pela Fundação Nacional do Livro da Infância e da Juventude. Em 2015 a coleção esteve no catálogo da feira de Bolonha, no salão da FENILIJ, ganhou um seminário na Feira do Livro de Lisboa, entre outros eventos literários. A autora foi convidada da Flipinha nesse mesmo ano. Em 2016 ilustrou os livros “Memórias de Índio - uma quase autobiografia” de Daniel Munduruku e “Família de Todo Jeito” de Ana Claudia Bastos. Em 2018 está prevista a republicação da coleção “Um Dia na Aldeia”, pela editora do SESI e o lançamento de seu novo livro infantil “Minha família Enauenê” (FTD). “TERRAPRETA”, ambientado em São Paulo, Paris e no Alto Xingu, ainda não publicado, é seu primeiro romance.

 

 

 

 

 

 



Carola Saavedra

É autora dos romances Toda terça (2007), Flores azuis (2008), Paisagem com dromedário (2010), O inventário das coisas ausentes (2014) e Com armas sonolentas (2018), todos pela Companhia das Letras. Seus livros foram traduzidos para o inglês, francês, espanhol e alemão. Está entre os vinte melhores jovens escritores brasileiros escolhidos pela revista Granta. É doutora em Literatura Comparada pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, professora e pesquisadora de Literatura e Estudos Culturais no Instituto Luso-Brasileiro na Universidade de Colônia. Sua pesquisa atual, sobre arte e literatura indígena no Brasil, é parte do projeto “O pensamento das margens: arte e literatura indígena e afro-brasileira”, financiado pela Fundação Thyssen. Acaba de lançar o livro de ensaios O mundo desdobrável: ensaios para depois do fim (Relicário 2021).




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