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Uma última palavra

Reprodução: Subway, de George Tooker - 1950



2017-11-01

Imaginemos o idioma da catástrofe por vir, da catástrofe que circunda e limita com o poema, que é – atualmente – o seu próprio horizonte de eventos. Que espécie de discurso pode dar conta dela? Que modalidade de enunciação poderia, enfim, torná-la visível em larga escala, e, portanto, socializá-la?

 

Recentemente, o Suplemento Pernambuco deu à estampa breve amostragem do livro Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI, de Pierre Dardot e Christian Laval, em tradução de Mariana Echalar. No trecho divulgado pelo periódico, lê-se de saída:          

O futuro parece bloqueado. Vivemos esse estranho momento, desesperador e preocupante, em que nada parece possível. A causa disso não é mistério e não decorre da eternidade do capitalismo, mas do fato de que este ainda não tem forças contrárias suficientes diante de si. O capitalismo continua a desenvolver sua lógica implacável, mesmo demonstrando dia após dia uma temível incapacidade de dar a mínima solução às crises e aos desastres que ele próprio engendra. Parece até estender seu domínio sobre a sociedade à medida que desfia suas consequências. Burocracia pública, partidos de “democracia representativa” e especialistas estão cada vez mais presos a camisas de força teóricas e dispositivos práticos dos quais não conseguem se libertar. A ruína do que constituiu a alternativa socialista desde meados do século XIX, e permitiu conter ou corrigir alguns dos efeitos mais destruidores do capitalismo, faz crescer o sentimento de que a ação política efetiva é impossível ou impotente. Falência do Estado comunista, guinada neoliberal do que nem mesmo merece mais o nome “social-democracia”, desvio soberanista de boa parte da esquerda ocidental, enfraquecimento do salariado organizado, aumento do ódio xenofóbico e do nacionalismo, todos esses são elementos que nos levam a perguntar se existem ainda forças sociais, modelos alternativos, modos de organização e conceitos que deem esperança de um além do capitalismo.

Mais além, no mesmo texto, encontraremos a seguinte consideração:

Nos anos 1980, o neoliberalismo, com o auxílio de todo o arsenal das políticas públicas, impôs uma via diferente, estendendo a lógica da concorrência a toda a sociedade. [...]. Disso resultou um novo sistema de normas que se apropria das atividades de trabalho, dos comportamentos e das próprias mentes. Esse novo sistema estabelece uma concorrência generalizada, regula a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros segundo a lógica da superação e do desempenho infinito. Essa norma da concorrência não nasce espontaneamente em cada um de nós como produto natural do cérebro: não é biológica, é efeito de uma política deliberada. Com o auxílio diligente do Estado, a acumulação ilimitada do capital comanda de maneira cada vez mais imperativa e veloz a transformação das sociedades, das relações sociais e da subjetividade. Estamos na época do cosmocapitalismo, no qual, muito além da esfera do trabalho, as instituições, as atividades, os tempos de vida são submetidos a uma lógica normativa geral que os remodela e reorienta conforme os ritmos e objetivos da acumulação do capital. 

Consideremos agora excerto de outro texto jornalístico. No início de outubro do presente ano, publica-se na franquia digital do El País uma matéria da escritora e jornalista Aloma Rodriguez significativamente intitulada A nova era dourada das distopias. Na matéria, Aloma se lança a um breve apanhado histórico da ficção distópica:  

As distopias podem ser apocalípticas ou não, aparecerem acompanhadas por um cenário de guerra ou não, mas em todas o que acontece é que a liberdade do indivíduo foi sacrificada para alcançar uma suposta perfeição. Os romances distópicos por excelência [...] são parábolas políticas. Os horrores vistos na Segunda Guerra Mundial dispararam os cenários apocalípticos e as possibilidades das sociedades autoritárias que as distopias exploraram. Depois veio a crítica do consumismo e do conforto que banalizaram tudo [...]. A Guerra Fria foi um terreno fértil para as distopias cheias de super-heróis e ameaças nucleares. Nas distopias de meados do século XX, [a historiadora americana Jill] Lepore vê a rejeição ao Estado liberal. A historiadora explica que, para cada dilema atual, há um romance distópico. [...] Para Lepore, a distopia deixou de ser uma ficção de resistência e se tornou uma ficção de submissão. Seu sucesso responde à incapacidade – em parte resultado da preguiça e da covardia – de imaginar um futuro melhor e revela um desencanto também em relação à política: “De esquerda ou de direita, o pessimismo radical de um distopismo incessante contribuiu para desmantelar o Estado liberal e enfraquecer o compromisso com o pluralismo político”.

Esta última formulação é de especial interesse para nós. Também a árida colocação que abre o primeiro texto citado: “O futuro parece bloqueado”. Em tempos de instabilidade política, endurecimento de práticas de repressão e “nenhumação”, miséria, puritanismos e censura, somos impelidos – naturalmente, penso – a efabular algum futuro. Nossa imaginativa, contudo, não opera num vácuo. O fazer de criar imagens minimamente perduráveis depende de elementos presentes em nossa realidade imediata – qualquer proposta ou antevisão do futuro é devedora não só de certo acúmulo de acontecimentos passados como também da paisagem – tanto moral quanto urbana, tanto material quanto “espiritual” – que caracteriza o nosso tempo presente. Antes de lançar prognósticos, toma-se o pulso à atualidade. É sempre em relação a estes elementos que o porvir se deixa visionar, não a profetas, não a um punhado de eleitos, mas a qualquer um que preste atenção e aceite a tarefa fundamentalmente ingrata de especular até o limite premissas que já regem nossa vivência do agora.

Como se vê, o distópico já não é um bafejo, uma sugestão agourenta circulada por uma meia dúzia de dispépticos, neurastênicos e malcomidos. Neste exato momento, os afetos distópicos se encontram de tal forma em alta em nossa cultura de massa que já permitem inclusive algum pensamento responsável e consequente oposto à sua prática, como no caso da supracitada Jill Lepore, pensamento este que já não reconhece potencial subversivo nas narrativas da catástrofe, e sim anuência e uma aterradora falta de recursos.

A quebra em linguagem que vivenciamos atualmente manifesta-se com clareza singular em certo regime discursivo – decerto imperante neste momento, e ascendente sobre todos os outros – que minimiza, quando não ignora de todo, a crise ambiental que ora deita cerco à nossa imaginação do futuro. Como já demos a entender, há farta e precisa documentação que atesta – não mais sugere ou insinua –, o fato de que caminhamos a passos largos para uma provável extinção em massa – a provável cessação de toda e qualquer atividade humana –, e que esta extinção vindoura está inextricavelmente ligada a uma desastrosa gestão de recursos naturais por parte do homem. Trata-se, como nos diz Danowski e Viveiros de Castro no essencial “Há Mundo Por Vir?”, de uma época em que a própria noção de “epocalidade” encontra-se em questão; tempo em que a finitude do homem e a finitude dos Homens encontram-se de fato em rota de convergência. O gradual sumiço de espécies inteiras, as alterações climáticas acerca das quais temos lido seguidamente ou mesmo de que podemos dar testemunho sensório, tudo isto como que resvala para o campo das preocupações secundárias frente ao terrível imediatismo de ideais de progresso e expansão indefinida que nada mais são que um redimensionamento da pulsão colonial que deu azo ao jugo e massacre de povos inteiros aquando dos “descobrimentos”. Coletividades primaciais, estruturalmente avessas a este tipo de prática, erguidas sobre premissas impenetráveis ao Sujeito Paradigmático que a Europa nos legou, foram exterminadas – varridas de sua terra, varridas da Terra – em nome do afã expansório. O ideal de crescimento indefinido, de construção a perder de vista, vai claramente de encontro com a finitude de nossos recursos planetários. Finitos também os homens, que delegam a gestão do Dilúvio às gerações seguintes. Esta, em última instância, sua gesta, sua mais brilhante façanha: a postergação indefinida deste esgotamento, sempre reposicionado pelo discurso do progresso e o presente imparável no qual ele nos engasta, presente rochoso, pétreo, que nada sabe do passado e não se alia imaginativamente a nenhum futuro.

Neste momento histórico, temos ocasião de ver com clareza privilegiada fraturas entre causa e consequência, significante e significado de há muito entrevistas por artistas e teóricos das mais variadas áreas de atuação. Os dados sobre a mesa, as estatísticas, os incontáveis estudos científicos, a literatura que se vem desfiando a partir de preocupações ambientais desde pelo menos meados dos anos 1950, o próprio fato de que em certas universidades a Extinção já foi alçada ao patamar de disciplina, nada disso parece resultar em ações concertadas, transnacionais e efetivas em prol da manutenção do planeta. Assim como a burguesia brasileira tende a imaginar-se à parte de uma nação, as nações elas próprias parecem não se reconhecer como habitantes. Quando habitam, habitam um ideário, frequentemente de envio divinal, o que equivale a dizer – pelo menos neste caso específico – que habitam uma denegação. É relativamente fácil compreender-se como parte de alguma plenitude vagamente mística, como um de múltiplos traços formadores de um panorama inteiramente abstrato. Menos heroico, menos agradável, menos gratificante para nossa vaidade será compreender-se como de fato somos, queira-se ou não: uma comunalidade de facto, dependente de sistemas e ciclos naturais que ela própria desregrou. O homem, tornado figura sem fundo, modificou os termos do planeta, fê-lo falar um idioma que os próprios atores históricos agora não conseguem “alcançar”.

A ideia de um “idioma” não comparece aqui gratuitamente, nem tampouco a ideia de “natureza”. A urgência de certo tipo de iniciativa em escala global parece chegar às cúpulas incumbidas de decidir os rumos do planeta em idioma desconhecido. As evidências não se traduzem em evidências, as provas não se traduzem em provas, o verídico é de tal maneira manobrado diante de nós que frequentemente temos a impressão de sermos regidos por uma lógica de sonho – o Absurdo deixa mais uma vez a rarefação das representações para engastar-se na vida mundana como dado.

Trata-se, portanto, de aprender o idioma da catástrofe, em oposição ao idioma do “catastrofismo”. Trata-se de minuciar seus atributos. Trata-se de captar estas transmissões (cada vez menos) longínquas, veiculá-las, difundi-las – engajar-se nelas de maneira vital. Alcançar totalmente uma urgência, torná-la inteligível e feitora, nem por isso propositora de programas autoritários ou fechados. Não falar dela, mas falar com o instrumental que ela nos fornece. Penso que não é tanto tarefa da poesia – das artes em geral – a sistematização, o regramento do pensamento catastrófico. Mas temos sim o dever de construir e ciruclar “Arquimagens” que possam vir a detonar uma ordenação do desastre. Com esta voz prestes a extinguir-se, com esta voz que pode ser interrompida a qualquer momento, pode-se cantar qualquer coisa – pode-se inclusive “interrogar nossas colheirinhas de café”, como nos recomenda Georges Perec em Approches de Quoi?. A tarefa não é falar da extinção, não é propriamente tematizá-la, mas – com o auxílio de imagens vivas, vibráteis, rondantes – compor a partir dela, encontrar a astúcia de presentificá-la no texto. É por isso que o momento nos parece mais afinado a recursos expressivos épicos em detrimento de expressão puramente lírica; é por isso que nos voltamos agora a um tipo de discurso mais interessado em fundar mundos do que comover o leitor e levá-lo a uma catarse por identificação. O que se afigura necessário no momento é uma detenção a poucos milímetros da catarse. Uma vivência seguida, sem desenlace ou resolução, do problema – uma iteração (definitiva?) de seus termos – pois a catarse ocasionada pela obra de arte, sua feição preponderante, implica em purificação vicária, e portanto, num desfecho estritamente pessoal, uma ação íntima que se passa por coletiva e resulta num improvável apaziguamento – apaziguamento este a que não temos direito. É preciso confessar a culpa do mundo, sabendo de antemão que não conseguiremos facilmente separar a ideia de poesia “confessional” de uma ideia de “expiação” ou “redenção” – para amputar uma noção de outra, teremos de lidar com certa sujeira, teremos de nos preparar para os resíduos que possam resultar de uma tal operação. É preciso encarar o poema não tanto como “confessional”, mas como “confessor”. Donde a necessidade de precisão e força redobradas em nossas escolhas imagéticas, sonoras e lexicais – porque uma nova pertinência se faz premente, porque é preciso restituir o horror ao horror, o insuportável ao insuportável, trazer as coisas de volta ao que são.

Imaginemos o idioma da catástrofe por vir, da catástrofe que circunda e limita com o poema, que é – atualmente – o seu próprio horizonte de eventos. Que espécie de discurso pode dar conta dela? Que modalidade de enunciação poderia, enfim, torná-la visível em larga escala, e, portanto, socializá-la?

Se transitamos agora por um momento em que a linguagem não faz, nosso desafio, como produtores de texto, seria então buscar instâncias de uma linguagem feitora. Sabemos que, no presente momento, o trabalho com poesia é desprovido de ressonância global. No entanto, trata-se de um campo privilegiado – um entre muitos – para a elaboração dos termos do problema. Como a ideia de catástrofe se objetiva em determinada composição poética? Sendo o texto poético um organismo bastante em si, cabe a nós então pensar “onde” ele é abjeto, onde ele é catastrófico, e “onde” ele é encantador e convidativo. Digamos que também no poema há resíduo por excretar. Pensemos então se esta função é cumprida pelo “som”, pela “imagem” ou pela ideia ou conjunto de ideias que se deseja transmitir. Qualquer coisa precisa estar quebrada, rompida ou ameaçada nos poemas que escrevemos, para que eles estejam em relação com o mundo. Precisamos nos munir de enunciados que levem em consideração a catástrofe, e tratar de nosso próprio contributo autoral com vistas a tornar nossos textos agentes entre seres, entre entes – se não neste, pelo menos no hipotético mundo por vir cuja mitologia devemos, desde já, nos empenhar em rascunhar.

 



Ismar Tirelli Neto

É poeta, ficcionista, tradutor, performer bissexto e roteirista cinematográfico, autor dos livros synchronoscopio, Ramerrão, Os Ilhados, Os Postais Catastróficos (editora 7Letras), A Mais ou Menos Completa Ausência (Ó Editorial) e Duas ou três coisas airadas (LUNAParque), este último em parceria com Horácio Costa. Publicou textos em O Globo, Folha de S. Paulo, Suplemento Pernambuco, Revista Select, Blog do IMS, Neue Rundschau (Alemanha), Relâmpago (Portugal), Jacket2 (EUA), entre outros. Atualmente vive em São Paulo e ministra oficinas de escrita criativa.




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