1
- O “Poema de sete faces” foi publicado pela primeira vez em 1928, sob o
pseudônimo de Carlos Alberto, em 25 de dezembro. O nascimento colocado
em versos, entretanto, não era o do Menino Jesus, mas o de um outro, a
quem: “um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos!
ser gauche na vida.” Nesse Natal, a face do Cristo é a do
calvário: “Meu Deus, por que me abandonaste/ se sabias que eu não era
Deus/ se sabias que eu era fraco.” Por ocasião do lançamento de Alguma poesia,
livro que abre com o “Poema de sete faces”, Carlos Drummond de Andrade
lembrou em discurso durante em jantar oferecido por amigos aquele anjo
“delicadamente torto do lado do coração” (Minas Gerais, 16/17 jun. 1930).
Decorei
que o lado direito era aquele da mão com que se escrevia (não é daquele
tempo a descoberta dos canhotos). O outro lado, o esquerdo, era aquele
onde a gente levava à mão ao peito, para cantar o hino nacional na
escola. Num daqueles pós-recreios, ofegante de correrias e mão no peito,
senti meus batimentos. Foi uma espécie de agonia saber do que se
tratava, parecida com a do medo de altura na roda-gigante, mas eu sabia
que ali eu não devia gritar. Eu sabia fingir, no fundo, da fila, que não
era nada. Calei o susto e aquela altura dentro de mim. Na sala de aula,
desenhei um coração a lápis na carteira, sob o plástico xadrez que
protegia o móvel de nossos riscos. Logo apaguei, porque zombou de mim a
colega, que dizia que o certo era com uma flecha. De um lado, a lança,
do outro, a pena.
2 - John Gledson, em “Poesia e
poética de Carlos Drummond de Andrade” (Duas Cidades, 1981), ao tratar
de “Poema de sete faces”, fala de uma técnica da perspectiva e de uma
fragmentação de todo o Alguma poesia, onde o humano aparece
inevitavelmente dividido. Gledson faz uma conta que parece fácil – “a
palavra ‘coração’ aparece duas vezes no poema” –, que logo revela uma
equação difícil, isto é, uma igualdade que envolve no mínimo uma ou mais
variáveis, o contato com o mundo, o mundo que é qualquer outro. “A
dificuldade do ‘Poema de sete faces’ tem sua origem no fato de que esse
processo é difícil e que, por isso, as tentativas se limitam a explosões
definitivas mas necessariamente curtas”, constata o crítico. Curtas,
jamais rasas.
Um dia antes disseram: “o seu coração é
de atleta”; no dia seguinte, no teste ergométrico, ele foi levado de
ambulância às pressas. “Será submetido a um cateterismo de emergência.”
“Artéria obstruída.” Na sala de espera, um quadradinho bege e sem
janelas, descobri que o corpo é todo o lado esquerdo. Onde quer que
exista toque, lá está o que pulsa. Lá dentro, o que se passa? Alguma
notícia?
3 - Drummond nunca mais repetiu a estrutura
do “Poema de sete faces”. Outras formas foram dando conta de modo mais
organizado para o que permanece como tensão entre polos que não se
harmonizam na sexta face, face anterior a cada um de nós, a do “mundo
mundo vasto mundo”, para a qual não há solução, rimada ou livre.
Nós
morávamos nos fundos da casa dos meus avós paternos. Num domingo de
manhã, dia do aniversário de minha mãe, ouvi uns gritos vindos de lá.
Quando cheguei no quarto, o coração de meu avô Justino já tinha parado.
Ao tocar no peito imóvel e ainda quente, constatei que era a primeira
vez que o fazia. Foi a única vez que chorei por ele, justo por ele, que
contava sempre a mesma piada suja sobre um vestido roxo, sempre me
fazendo rir.
4 - As dificuldades e contradições
encontradas por Drummond para dar forma ao seu lirismo meditativo
(mescla de drama e pensamento) são percorridas por Davi Arrigucci Jr. em
Coração partido (Cosac Naify, 2002) em análises imanentes dos
poemas “Sentimental”, “No meio do caminho”, “Áporo”, “Mineração do
outro”, mas não antes da do “Poema de sete faces”. Davi busca (e mostra
os caminhos de sua busca) uma unidade no caminho difícil e tortuoso de
Drummond, que pode ser sintetizada nesse intertítulo de seu ensaio:
“Sete faces e um coração”. Para o crítico, é uma invenção da crítica se
considerar uma oposição entre um “pretenso formalismo e a participação
social” do mineiro, por exemplo, sob o contexto ideológico da ditadura
Vargas e a atmosfera da Segunda Guerra Mundial. A complexidade da obra
de Drummond estaria na articulação, desde o início, de “contradições que
não se resolvem num falso contraste”.
Senti o exato
momento que o coração de minha cachorra parou. Antes, seu pescoço tombou
torto. Senti o exato momento que o coração do pássaro caído na calçada
parou. Antes, ele gritou. Eu achava aquela cachorra o mais altivo dos
vira-latas. Para mim, os pássaros apenas cantavam.
5 -
“A cidade grande decerto muda muito a perspectiva da província, que com
ela contrasta; a experiência na metrópole se expande com a força do
inesperado, mas o que nela ficou subjacente da vida do interior pode,
por sua vez, mudar sua mudança. É que mesmo a novidade deve ainda muito à
memória do passado: às vezes, ele dói para sempre, como o retrato de
Itabira na parede”, escreve Davi Arrigucci Jr. sobre Drummond.
Eu
não sei qual foi a primeira vez que vi um coração, destes desenhados,
mas recordo o dia em que vi um imenso coração sobre uma mesa. Eu não
sabia o que era aquilo que escorria vermelho. Meu avô materno resmungou
uma explicação. Era tempo de Natal, e ele preparava o animal abatido
para os patrões. Com a barrigada, minha avó fazia sabão. O modo como ela
revolvia o conteúdo do taxo de ferro é a rima mais antiga que guardo,
bem, vocês sabem onde. Minha avó morreu sem conhecer o mar. Meu avô, já
velho, provou e exclamou: “Num é que é salgado mesmo!”.
6
– Davi explica que a vocação drummondiana para o chiste tem uma origem
romântica, mesmo o mineiro sendo moderno, e dando tratamento moderno ao
chiste, porque o estilo do pensamento dos primeiros românticos é o do
trabalho reflexivo sobre si mesmo, da procura no “ilimitado coração”. De
modo que “a reflexão surge como a condição para que o poeta alcance o
que busca e, contraditoriamente, se torna o empecilho para isso”. “O que
se sente dá o que pensar.” Não é piada, é chiste, “relâmpago exterior
da fantasia”, Davi cita Friedrich Schegel, em O dialeto dos fragmentos, “Ideias”, fragmento [26], na tradução de Márcio Suzuki.
“Só
os cardiologistas devem entender”. Mas eu quero ver, oras. Coloco o DVD
no computador. Na tela, o coração não tem a forma dos desenhos, não tem
a deformidade da carne sobre a mesa na fazenda. Em preto e branco, vejo
o objeto que invade e rompe uma barreira. O coração é irrigação. Rios e
seus afluentes. Em todo caso, mantive o som desligado. Sempre tive um
receio da percussão cardíaca, por isso sempre evitei deitar minha cabeça
sobre o seu peito, amor. Quando menina, batuquei no violão assim...
tum, tum, tum. Depois descobri a distância íntima das cordas.
7
- Dizer o que vai no coração, eis o caminho da dificuldade de Drummond,
no “Poema de sete faces”, mas não apenas nele. A análise de Davi se
embrenha nesse percurso obstinado do poeta de, via reflexão, tentar
encontrar as palavras precisas que digam “até os movimentos
imperceptíveis do coração”, dar um nome ao inominável. Davi, filho de um
médico, de quem herdou não só o nome, é ele próprio poético em seu
diagnóstico do coração como “lugar da falta”: “O infinito do sentimento é
um acidente do coração, existe em potência como um querer que não se
preenche de todo, mas busca a vastidão, como um movimento contrário de
sua própria privação, oco do querer sem jeito onde reside o seu
não-poder”.
Circulo com caneta vermelha para revisitar
com chave na mão o que queria saber de cor. Tudo o que sei de cor tem um
pouco de azul, “porque é a cor mais funda”, me conta uma amiga, me
ajudando a dar um nome para o que só sei chamar de meu, mas em alemão,
para disfarçar qualquer noção de posse sobre o que só me escapa. Eu não
sei nada de alemão. Só algumas palavras soltas, como Hilflosigkeit.
Azul é a cor que escolhi para pintar uma pequena janela daquele quarto,
que, antes de eu morar ali, vivia fechada. Com a tinta que sobrou,
pintei os contornos da cristaleira que separa a copa da cozinha.
Misturado com branco, um azul claro, cobriu as mensagens que sua mãe
escreveu atrás dos postais que te enviou e enquadrou em molduras sem
fim, da quais nos desfizemos naquela reforma, como se fosse fácil manter
o sangue que corre bem fino, sem gorduras, coágulos e pedras no meio do
caminho.