O que está num livro está guardado? Um livro carrega tempos e sujeitos diversos e não só o que é de cada um. Amplia a expressão “o que é teu está guardado”. Ainda que soe arquivamento, em sentido do que fica inalterado e cerrado à chave, o depositado em páginas se levanta diante dos olhos de quem lê, sempre, este outro que não só o agora. Uma biblioteca, uma prateleira no canto de um cômodo, uma pasta no computador, um Kindle, o que reservam de futuro? Pergunto-me, cigana, diante da palma prestes a se abrir. A amiga e psicanalista Lívia Santiago costuma dizer entre risos que gosta de saber que os livros que ainda não leu, mas já se avolumam em sua estante, estão ali ao seu alcance. No auge do bom humor, fala de uma transferência quase física do folhear o que cheira a novo ou o velho de sebo recém-adquirido, que anuncia aprendizagem por vir.
O livro é um poema, com organização de Sofia Mariutti, editado para marcar os 30 anos da Companhia das Letras, livro de poemas sobre livros, traz ali entre os reunidos “M, de memória”, de Paulo Leminski, que faz graça com essa questão do guardado que contém o que está nos livros: “Os livros sabem de cor/ milhares de poemas./ Que memória! Lembrar, assim, vale a pena./ Vale a pena o desperdício, [...] Os livros sabem de tudo./ Já sabem deste dilema./ Só não sabem que, no fundo,/ ler não passa de uma lenda.” Por sua vez, “O poema e a trégua”, de Ana Cristina César, que também integra a antologia comemorativa (seu subtítulo) evoca as “vozes lentas do poema”, que “Falam do completo/ esquecimento a palavra/ esquecida de si mesma// O livro escapando para/ as águas o vento inócuo/ transparência”.
Reconheço no desejo de leitura um desejo de contato com o que é memória. Desejo que esbarra no esquecido, porque ler devolve como presente o passado. Porque o livro a gente rasura e acrescenta às margens impressões na velocidade que os olhos e as pontas dos nossos dedos imprimem, juntando letras. E esses dois “porquês” que afirmam também poderiam ser colocados como perguntas “por quê?”.
A memória que um livro guarda clama um corpo que se apresente e a coloque em movimento, e só assim se inscreve o escrito. Seja no papel ou via ferramentas disponíveis em pdfs e e-books, a materialidade de que somos feitos inclina-se sobre palavras e imagens em seu tempo particular, gesto que não exclui aqueles que leem e observam uma página silenciosamente, sem grifos ou fichamentos. Não é uma questão de suporte, mas da disposição de conteúdos nesse determinado espaço que chamamos de página; que pode ser virada/corrida/rolada quando bem se queira; a que se pode sempre retornar... Página vincada por um tipo de marcador que não diz apenas de onde se parou a leitura, mas para onde avançou o lido (o lido que além de particípio de ler é o nome dado a um tipo de lugar, uma paisagem de costa plana, de praias com lagunas isoladas por língua(s) de areia, me conta o Houaiss).
A partir dessas considerações, conto um pouco do meu desejo recorrente de ler o que não foi feito para ser lido. Filmes, por exemplo. Invertendo a constatação mais corriqueira “este livro daria um filme”, e de fato muito realizada, pois são inúmeras as adaptações de livros para o cinema, costumo pensar em como certos filmes dariam livros excelentes. Desejo um tanto descabido de que caiba num livro a ser consultado o que não serei capaz de guardar, como se guarda o que está num livro, daquilo a que assisto. Memória falha, e as falhas fazem parte e fazem também o todo (outra lenda o tal de todo). Assim, dado o teor neurótico dessa vontade, que admito, talvez eu devesse dela me livrar, como quem se livra de uma mania de citação precisa e completa quando na verdade estou o tempo todo, inclusive quando leio, diante de restos e vazios, daqueles que guardo e que me guardam, feito o anjo da oração da infância, o zeloso guardador invisível.
(“Livrar”, verbo que, a propósito, conjuga liberdade e me soa sempre tornar livro. Obsessão? Livrai-me.)
Feita essa ressalva, insisto no sentido do meu possível despropósito de querer que certos filmes inspirassem a edição de livros, e que não se refere apenas ao acesso ao que está guardado para consulta. Afinal, baixar um arquivo ou adquirir um DVD solucionaria essa ânsia mais restrita. O que tento contar é de algo que a página imprime como lugar que se adentra com passos da largura que queremos dar, algo que, da ordem do aparentemente estático, move-se em nós enquanto lemos ou observamos, experiência diferente das imagens em movimento em sincronia com sons, vozes, silêncios.
O cineasta francês Éric Rohmer (1920-2010), que foi professor de literatura e escreveu com Claude Chabrol um livro sobre Hitchcock, coloca-se no prefácio de seu Six contes moraux à dupla questão: “por que escrever quando se pode filmar? Por que filmar quando se pode escrever?”. Rohmer diz que a ideia dos contos que deram origem aos seus filmes que compõem o ciclo realizado entre as décadas de 1960 e 1970 surgiu quando ele não sabia que seria um cineasta, ao mesmo tempo que conclui: “se eu fiz os filmes é porque eu não fui capaz de escrevê-los. E se é verdade que eu os escrevi, os escrevi unicamente para filmá-los”. Nesse mesmo prefácio, o francês fala da ambição do cineasta moderno por uma autoria total de seu filme e defende que é necessário não tornar o próprio texto um tabu, já que o cinema é um trabalho coletivo, no qual várias autorias se encontram, diferentemente do livro.
Marguerite Duras (1914-1996) que, ao contrário de Rohmer, escreveu Hiroshima mon amour (1959) para Alain Resnais (1922-2014) filmá-lo, portanto ciente de seu fim cinematográfico, quando o publicou em livro, advertiu seus leitores de que não deveriam se surpreender com a ausência no texto da contribuição pictórica de Resnais, sendo possível apreender todo um mundo construído a partir e para além do roteiro.
Ocorre-me, portanto, essa vontade de contato com esse texto esburacado de cenário e que possa ser reconstruído pós sala de cinema, num momento qualquer, ainda que sob seu impacto temporal e imagético. Leitura e apreciação que não seja o esforço sofrido de decupagem por meio dos comandos de recuo, avanço e pausa, quando se tem acesso ao filme em ambiente e aparelho de reprodução domésticos. Simultaneamente, o filme guardado em livro que imagino não se trata da mera publicação do roteiro, diferenciação que os livros de Rohmer e Duras citados acima fazem questão de destacar. Alguns deles seriam inclusive repletos de imagens fundamentais. Não seria mero privilégio da palavra.
Como comentei, são filmes muito específicos os que me provocam esse desejo de leitura/apreciação em páginas, desejo que em nada corresponde a uma preferência por entre os filmes. Há produções maravilhosas que não me suscitam essa gana livresca. Também não se trata de preferência por livros em detrimentos dos filmes, tampouco de desconsiderar o mérito cinematográfico dos filmes que elejo como candidatos ao encadernamento.
Exemplos bem recentes de filmes que eu adoraria ler depois de tê-los visto são Nostalgia da luz e Botão de pérola, de Patrício Guzmán, e Coração de cachorro, de Laurie Anderson. Detenho-me aqui apenas em uma razão comum, entre tantas outras, que, na produção de ambos os cineastas, me fazem desejar lê-los: a presença imperiosa dos narradores que os próprios cineastas são em cada um desses filmes, de modo que suas próprias imagens soam como dispostas por eles diante de nós, como se estivéssemos sentados lado a lado com eles que, enquanto nos contam o que contam, tiram de uma caixa seus guardados ao longo de um tempo que é o deles e é também o nosso e nos diz respeito.
No caso do chileno, é evidente que muitas outras vozes falam mais alto que a dele nos dois filmes, dado o protagonismo daqueles que buscam no céu, no deserto e no mar os corpos (celestes) e sua origem, os corpos (humanos) de protagonismos amputados pela ditatura e seus destinos (seus ossos e a história que contam) ou muito anteriormente, desde o período da colonização (estrelas que os indígenas desenhavam na própria pele, descobertas, coberta sua nudez, coberta de feridas, exterminada sua luz). Vozes que falam mais alto que a dele, claro, porque Guzmán e sua obra lutam contra o silenciamento, e o modo como o faz é próprio da poesia possível diante do assombro e do que resta calado. “Os que têm memória são capazes de viver no frágil momento presente. Os que não a têm não vivem em lugar algum”, anoto a legenda em português de Nostalgia da luz, e ouço o castelhano pausado de Guzmán nesta anotação, a única que fiz e sei de cor.
Em Coração de cachorro, o latido da mascote de Laurie, além de músicas tocadas e telas pintadas pelas patas da pequena quando cega, alguns dos inúmeros registros dessa companheira canina que partiu, são menos estridentes a meu ver do que a lembrança que ela reconstrói de maneira bem textual de suas vivências frente à morte (a da sua mãe e, sobretudo, aquela que a rondava num quarto de hospital quando sofreu um traumatismo de coluna na infância, impossibilitando-a de andar). As imagens e associações com um presente aterrorizado pelo ataque às torres gêmeas nos EUA e suas consequências acumulam-se num terreno arqueológico e nesse campo seus achados são primorosos, como os que ela faz sobre as nuvens que tentava captar quando menina, e tudo que nos escapa, e a nuvem que concentra a pretensão imperialista de informação total sobre cada cidadão. Informações que sempre são utilizadas, quando e se utilizadas, de trás para frente, do passado na direção do presente, para tentar justificar o que não se justifica nos crimes e na morte como enigma e certeza de todos. Bem como acontece nas histórias que costumamos contar, contar como nos contam os livros, e histórias que contamos sobre eles, e que poderiam dar um filme, que não se deixaria guardar, feito nuvem.