A
demolição do que empareda um horizonte pode começar na descoberta de
que até o prego que sustenta o tal quadro enferrujou enquanto se
contemplava o que parecia preso ao imóvel. O reboco esfarelado na troca
por uma nova peça, para sustentar a moldura, anuncia em rombo
progressivo outro lado através do concreto. Escrevi isso e primeiro me
ocorreu que há nessa abertura um acúmulo de imagens fixadas, quando
delas talvez fosse preciso se libertar para pensar o movimento
incessante da leitura, contrário à oxidação, mesmo quando se trata de
autores canonizados. Em seguida, me dei conta de que, se ler convoca
tantas vezes ao deixar ruir, talvez esteja aí, paradoxalmente, o arrimo
de uma construção possível e a necessidade da releitura, isto é, do que
não se dá em terreno baldio. Insisti em manter a parede, ainda que no
lugar do estático se abra uma janela, para reconhecer que lemos, muitas
vezes, a partir de edifícios inteiros ou mesmo sob um teto qualquer,
mesmo que ameace cair. Por vezes, essa operação de desedificação é
convocada pela própria forma de um texto, noutras, ao longo de toda uma
obra e seus intérpretes. Essa possibilidade existe mesmo em trabalhos
tidos como homogêneos. Que dizer, então, dos heterogêneos por essência?
Se os heterônomos de Pessoa, por exemplo, organizam até certo ponto
diferenças, como lidar com a descontinuidade e a dimensão entrecortada
assinada por um único Drummond (único?)? As interrogações se acumulam.
Volto
sempre a Carlos Drummond de Andrade e a ele retornarei em outros textos
de leituras sobre o poeta mineiro, iniciando aqui esta série de
recortes e fichamentos que não podem perder de vista um contexto que
ainda nos diz respeito, de transformação da paisagem urbana, ascensão do
fascismo (incluindo o tupiniquim), acirramento entre capitalismo e
socialismo e a guerra. Tempo de captação extrema dos problemas
históricos e da consciência do papel da poesia como instrumento de
intervenção (mas também, nesse sentido, de seus limites).
Neste
hoje, que nos compele a agir, a tomar alguma providência, este hoje sob
o imperativo da tomada de posições urgentes e que não titubeiem e não
traiam lugares de fala, volto a Drummond à luz de um questionamento
suscitado durante uma aula em que eu cumpria um estágio docente (mais
aluna do que nunca): afinal, herdeiro de latifúndio oligárquico que se
desloca da província para o centro urbano e industrializado e integrante
do governo do Estado varguista, onde localizar sua voz entre o
político, o poder e os privilégios de sua classe? No meio do caminho?
Seria possível localizar de que lado está quem logo ao nascer atende ao
chamado de um anjo torto, a ambiguidade irônica, o gesto crítico e ácido
a partir do gabinete de um funcionário exemplar, perspectiva do
observador no escritório que é cortejado pelo Partido Comunista? Não é
simples e qualquer identificação com esta ou aquela polaridade soa
simplificadora diante de sua obra. Uma possível resposta: sete faces são
poucas para dar conta da complexidade que envolve as tensões entre o
social e o literário, entre o sujeito histórico e o sujeito lírico.
Resposta que só intensifica perguntas.
Inicio neste mês
do nascimento de Drummond, ele é de 31 de outubro, esta série sobre
diferentes e divergentes leituras da obra do poeta de Itabira (e do
mundo) com o último trabalho lido por mim sobre ele e que aqui
compartilho: o cotejo entre política e escrita que Roberto Said,
professor de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), faz em Angústia da ação (UFMG, 2005),
privilegiando o período entre o Golpe de 30 e o fim do Estado Novo, e
seu projeto moderno de identidade nacional, que coincide com a atmosfera
ideológica da Segunda Guerra Mundial e com o intervalo de publicação
entre Alguma poesia (1930) e A rosa do povo (1945). Período que, como afirmou Mário Faustino em texto publicado no Jornal do Brasil,
em abril de 1957, aquele que quiser sobre ele conhecer terá que
“recorrer muito mais a Drummond que a certos historiadores, sociólogos,
antropólogos, ‘filósofos’”. No livro, o autor procura diluir as
fronteiras entre fatos, teoria e ficção, a partir de materiais, muitos
deles inéditos, do acervo pessoal de Drummond na Fundação Casa de Rui
Barbosa: bilhetes, recortes de jornais, manuscritos, cartas, anotações,
ensaios, crônicas e entrevistas.
Haveria uma estratégia
discursiva que poderia ser fruto do desejo do escritor por uma
representação no plano da arte sem implicações políticas? Said
identifica na obra desvios próprios dos “constrangedores lugares da
ação”, expressão de Jacques Rancière em Políticas da escrita, e que inspira o título Angústia da ação,
mais que título, trata-se da formulação por Said engendrada para nomear
uma condição de escrita que se realiza entre o “desejo de mudança” e o
“recolhimento constrangido”, uma espécie de inibição trágica, disposição
típica da melancolia, na qual algo foi perdido, mas permanece
investido. “Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?”, com este
verso Drummond encerra “Explicação”, de Alguma poesia. Encerra?
Sem
qualquer identificação com causas bélicas, Drummond integrou o
Estado-Maior das Forças Armadas Revolucionárias Mineiras em Barbacena,
onde era o responsável pelos telegramas, experiência que formalizou em
“Outubro 1930”. “Oscilando entre o ‘eu’, o ‘nós’ e o ‘ele’, o poeta
abstém-se de maiores adesões, colocando-se ao mesmo tempo dentro e fora
do poema, dentro e fora do embate político, mostrando-se, enfim, tão
indeciso quanto o próprio país”, nas palavras do crítico, que remetem
aos versos do poeta: “Um novo, claro Brasil/ Surge, indeciso, da
pólvora./ Meu Deus, tomai conta de nós”.
No Governo
Vargas, Drummond foi homem de confiança de Gustavo Capanema no então
Ministério da Educação e Saúde entre 1934 e 1945. Demitiu-se do cargo ao
final da Segunda Guerra, mas sem romper com o amigo, de quem,
anteriormente, também tinha sido oficial de gabinete na Secretaria do
Interior de Minas Gerais, entre 1930 e 1933. Depois daquele pedido de
demissão, teve breve passagem pelo jornal comunista A Tribuna, e
logo assumiu a diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
onde se aposentou no início da década de 1960. Ao todo, foram mais de
trinta anos de trabalho no funcionalismo público, atividades exercidas
concomitantemente com suas práticas literárias e jornalísticas.
Em
carta datada de outubro de 1930, citada por Said em seu livro, Capanema
escreve ao amigo: “Mando-te o meu mais afetuoso abraço, não só pelo seu
aniversário, mas sobretudo pela vitória da nossa revolução, que tem em
você um soldado intrépido e iluminado”. Drummond, por sua vez,
recusava-se a se identificar como este “soldado”: “tive ouro, tive gado,
tive fazendas/ Hoje sou funcionário público”. Confidencia nesses versos
mais que um percurso na direção do poder, um declínio que soa lamentar e
parece atribuir ao aspecto político inerente ao cargo mera contingência
social.
Aliás, é bom lembrar que entre os escritores
modernistas, contemporâneos do momento histórico em questão, estão
vários que também ocuparam cargos públicos importantes, como Mário de
Andrade, Cyro dos Anjos, Cornélio Pena, José Lins do Rego, João Cabral,
Vinícius, Graciliano Ramos etc. Essa proximidade com o Estado é
analisada pelo sociólogo Sérgio Miceli em seu hoje já clássico Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945),
tese que defendeu no final do decêndio de 1970, que, na visão de Said,
rompe com uma certa tradição protecionista – no sentido de que se
procurava resguardar um caráter transgressor conferido aos escritores
envolvidos – ao demonstrar como o recrutamento intelectual garantia uma
certa continuidade no poder de atuação e decisão política da classe
dirigente, arregimentando os filhos das famílias aristocráticas em
declínio para cumprir no governo o trabalho simbólico (conjugação de
decadência econômica e dependência patrimonialista). Quem estava à
margem, seguiria à margem...
Quando publicada em livro, essa tese de Miceli (que também pode ser encontrada como parte do livro Intelectuais à brasileira,
a edição que tenho) foi prefaciada por Antonio Candido, em argumentação
bastante contrária ao ali defendido: “estão envolvidos homens, com sua
carne e a sua alma, de modo que conviria acentuar que um Carlos Drummond
de Andrade ‘serviu’ ao Estado Novo como funcionário que já era antes,
mas não alienou por isso a menor parcela de sua dignidade ou autonomia
mental, tanto assim que as suas ideias contrárias eram patentes e foi
como membro do Gabinete de Capanema que publicou os versos políticos
revolucionários de Sentimento do mundo e compôs os de Rosa do povo”.
O próprio Drummond também deu seu parecer em entrevista ao Estado de S.Paulo
por ocasião de seus 50 anos, em que repudia qualquer associação à ideia
de cooptação. “Saiu um livro lá em São Paulo que contém uma série de
inverdades. Acho primário se confundir o fato de ter trabalhado numa
ditadura com ter trabalhado a serviço da ditadura. Trabalhar como
trabalhei no Ministério da Educação não significa de maneira alguma
subordinação ao poder. Conheci Gustavo Capanema em 1916, no colégio.
Éramos amigos desde então. E foi o amigo que me chamou para o
ministério”.
Roberto Said renuncia a imagens
drummondianas amplas e conciliadoras. Avalia que, se com Miceli perde-se
de vista o caráter simbólico do ativismo dos escritores modernistas,
não se pode concordar que a inserção deles no Estado seja avaliada
apenas por critérios ideológicos: “porque mesmo aqueles que construíram
uma obra literária progressista, de esquerda (gauche), poderiam
participar ativamente da definição política e simbólica do regime
varguista [e seus claros anseios de modernização do país]. Também não
deve ser tratada somente em termos de cooptação, pois tal conceito, ao
lidar apenas com os componentes classistas do processo histórico, reduz
todo o movimento a um jogo de interesses”. A propósito, não é difícil
para um leitor de Drummond identificar exemplos em que a obra do poeta
coloca em xeque pilares desse programa, caso da noção de identidade
nacional. “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?”
Nesse
tempo, “tempo partido, tempo de homens partidos”, no qual Drummond
representa-se a ele próprio cindido entre o literário e o social, entre o
estético e o político, “a experiência do poeta, devido à
representatividade de sua obra na cultura brasileira e à sua proximidade
com o poder estatal elabora-se como experiência-limite na qual se
encerram as contradições existentes entre a enunciação literária e a
subjetividade política, isto é, os encontros e desencontros entre as
vanguardas artísticas e as ditas vanguardas políticas de 1930”, escreve
Said. Para o crítico, foi justamente a partir de tais “fricções” que “a
prática poética drummondiana pôde traçar seu caminho desviante, seu
percurso gauche”.
Assim, Roberto Said bate de
frente com estudos que procuram identificar um princípio articulador que
equacione essas contradições e que veem na obra do mineiro um sistema
harmônico reduzido a princípios evolutivos e de maturação. Chama atenção
para o fato de que na Antologia poética, publicada em 1962, o
critério de seleção dos textos do poeta não é cronológico, sugerindo um
recorte marcado por uma descontinuidade temporal, mais voltado à
espacialidade de lugares trilhados e à sobreposição imagética.
Identificar em Alguma poesia uma mão “suja de muitos anos”, que se deseja cortar, e, em Sentimento do mundo (composto
entre 1935 e 1940), a cumplicidade de quem estende esta mesma mão e se
volta para o outro e para o presente a convocar “Não nos afastemos
muito, vamos todos de mãos dadas” não é suficiente para se traçar uma
linha progressiva drumondiana sem impasses e hesitações, nem mesmo no
período considerado o mais social da obra. “Seu salto participante é
apenas aparente, ou melhor, revestido por uma indisfarçável angústia.
Pois à vontade de agir se justapõe uma sensação de impotência, uma certa
desilusão”. Não que não se identifique na poesia desse grande mestre o
desejo de transformação sociocultural. Acontece que esse desejo
confronta-se com uma lucidez cortante de que o caminho prático para essa
conquista, naquele horizonte, levava aos “incômodos braços do Estado
autoritário – apresentado pelos setores dominantes como o único e
legítimo agente transformador”.
Em “A um jovem”, reunido em A bolsa & a vida,
livro em “estado de crônica”, publicado no mesmo ano da antologia, em
62, lê-se ao prezado Alipio: “Pouco há a fazer, quando não nascemos para
a política nem para o mister guerreiro. Nosso negócio é a contemplação
da nuvem”. (O tal “estado de crônica” refere-se à disposição de “não
atormentar o leitor – apenas aqui e ali – recordando-lhe a condição
humana”.) “Procuras e achados se equilibram e se alternam, no vaivém das
crônicas, mas a tudo o poeta prefere o recolhimento”, escreve Marcelo
Coelho sobre A bolsa... no posfácio da edição de 2012 publicada
pela Companhia das Letras. Está nesse tipo de ambivalência identificada
no jovem ou no velho poeta a força motriz de sua escrita, conforme a
leitura de Roberto Said.
O capítulo que fecha o livro
de Said intitula-se “Posso, sem armas, revoltar-me?”. Ficaria por aqui
também, com esta pergunta que tanto tem me perturbado e a amigos meus.
Nesse clima interrogativo, passo os olhos na timeline do Facebook e
salta uma postagem do professor Alcides Villaça, um dos leitores de
Drummond que mais aprecio e que não deixarei de incluir nesta série... A
postagem não é sobre o mineiro, mas poderia ser, ou não?
“A
revolta dissemina-se, furiosa. Razões não faltam – e algum dia
faltaram? Resta compreendê-la. Poetas revoltados da modernidade (não o
serão, todos os grandes?) interessaram a Camus, investigador dos motivos
existenciais, que os identificou, numa passagem de O homem revoltado,
como aqueles que afirmam a ‘desesperada nostalgia de alguma ordem’. Tal
percepção ajuda a compreender o fundo humano e altamente afirmativo que
se dissimula e parece ausente nos autores mais céticos e mais
desistidos. Torcem o nariz para este mundo porque ele desmente seus
anseios de idealidade, mais fortes que os dos comuns esperançosos.”
A pensar...