Assim, eu
estive no Rio, mas também em Paris. Saí do Brasil em direção à Síria, à
Alemanha, ao Japão. Retornei, em obras e estrangeira, expatriada,
convocada a me aproximar desse canteiro
Estive
no Rio (de Janeiro). Esqueça o cartão-postal (mais destinatária que
remetente de lugar visitado enquanto paisagem, escrevo, ou melhor, tento
atravessar o que sobrou daqueles dias). Imagina uma ponte. Dela, não se
avista o oceano (Atlântico), nem a baÃa (de Guanabara), nem a lagoa
(Rodrigo de Freitas). Só o Rio. Desculpe, não fiz fotos. Imagina. O “XV
encontro ABRALIC: experiências literárias, textualidades
contemporâneas”, realizado na UERJ, me levou dia a dia para os lados do
Maracanã. Arrasto o indicador sobre o mapa. O traço imaginário em forma
de arco cruza zonas da cidade, aquela onde estive de fato, outras, por
afeto. O dedo que toca a superfÃcie da carta geográfica deixa uma
impressão única. Sou a principal suspeita à procura de digitais em notas
tomadas para uma investigação futura: sobre pontes.
Estive
uns dias no Rio. Sobre pontes, escrevo, porque é difÃcil escrever sobre
poesia; “e por que é assim tão difÃcil falar/ de poesia?”. Quem
interroga é a poeta MarÃlia Garcia (1979), ao citar a também poeta
Wislawa Szymborska (1923-2012). A polonesa, nas palavras da carioca, em
seu Um teste de resistores (“Blind light”, 2), “começa um
discurso sobre poesia/ dizendo que o mais difÃcil de um discurso/ é a
primeira frase/ mas que mesmo depois de ter começado/ continuar o discurso será tão difÃcil quanto começar/ pois ela vai falar de poesia”.
MarÃlia
Garcia diz que “queria começar” sua fala na ABRALIC, na mesa “Poesia e
os meios”, ao lado de Carlito Azevedo e Nathalie Quintane, contando do
dia em que recebeu o convite de João Cezar (de Castro Rocha) para
participar do encontro. A poeta estudou na UERJ, que atravessa uma grave
crise: “tudo o que eu queria era poder estar neste lugar neste
momento”. O lugar e o momento compartilhados se estendem no espaço e no
tempo (do) público. Nenhuma dessas referências é protocolar. Ali
sentados nas cadeiras do Teatro Odylo Costa Filho, adentramos o poema,
ainda inédito, que a partir do presente cava algo antigo via imagens
recortadas pela voz e pelo olhar de MarÃlia. Atravessamos com ela a
passarela que liga a Chácara do Céu (museu em Santa Teresa, no alto do
morro) ao Parque das RuÃnas, à procura de um café pós visita à exposição
de Debret. O pretérito imperfeito (“queria começar”) se dá. Começa...
como no inÃcio de “Blind light” em Um teste de resistores, onde “poderia começar de muitas formas”. Eu nunca tinha estado em Santa Teresa.
Já
em casa, busco as imagens do Brasil por Debret. Esboço num papel e com o
auxÃlio de uma régua formas de “passar do céu para as ruÃnas e depois
voltar ao céu”, como formula MarÃlia. Jean-Baptiste Debret (1768-1848)
esteve muitos dias no Rio. Eu de lá ainda não voltei.
A
poesia se dá a partir de muitas formas e materiais na obra de MarÃlia. O
“diário sentimental da pont marie” (a poeta opta pelo uso de
minúsculas), aberto na ABRALIC, no qual durante sete meses, todos os
dias, no mesmo horário, ela fotografou o mesmo lugar, do mesmo ângulo,
em Paris, durante uma residência artÃstica em 2015, inventaria reflexões
a partir de questões em torno do ver/olhar o lugar. “Ter lugar”, uma
recorrência.
Os Diários de David Perlov são
referência cinematográfica decisiva para o fazer ver operado neste
diário da pont sobre mim, sempre sensÃvel à s pontes entre diferentes
temporalidades e o que às ergue. Quando veio ao Brasil no final da
década de 1970, época do nascimento de MarÃlia, Perlov (1930-2003)
filmou o Rio. Na única cena em Santa Teresa, MarÃlia reconhece a casa de
sua infância, “de algum modo o meu extraordinário”. Anotei com letra
apressada este “extraordinário”, seguido de um traço até “infância”.
Passado a limpo, o dispus ao lado de apontamento de A dor. Logo
no inÃcio desse seu diário, Marguerite Duras alerta: “O extraordinário é
imprevisÃvel”; “de algum modo o meu extraordinário”.
É
certo que o que tive a oportunidade de experimentar na ABRALIC é um
texto em processo de MarÃlia Garcia, que ainda teremos a oportunidade de
confrontar “acabado” nas páginas de um livro, ou em outras
apresentações. Entretanto, me parece certo que nenhum acabamento
arrancará dele as ruÃnas que o alicerçam, nem seu foco nos meios de
observação e do fazer poesia hoje (e seus meios). Enquanto lê, MarÃlia
projeta a série de imagens que ela própria produziu e imagens
colecionadas do tanto que viu. Imagens que se reproduzem e reconhecemos
como nossas memórias de cinéfilos, de fotógrafos (todos nós que temos um
celular), de internautas, de gente que atravessa pontes em diferentes
lugares do mundo.
Os filmes Cortina de fumaça, de Paul Auster, Blow up, de Antonioni e o documentário Imagens do mundo e inscrições da guerra,
de Harun Farocki, nesse sentido, são parte fundamental de um arquivo de
apreensão da imagem fotográfica que vem à tona nessas memórias pessoais
de MarÃlia e de todos nós que com ela compartilhamos uma época e suas
formas de ver e dar-se a ver diante do invisÃvel, do que não apreendemos
com lentes de vidro. A aparição e o que desaparece enquanto estamos de
olhos bem abertos dizem destas notas sobre “diário sentimental da pont
marie”. E paro por aqui a fim de não ser acusada de spoiler, numa
tentativa de reservar para os futuros leitores/expectadores algum final
(sem deixar de tomar o cuidado de alertar de que se trata de aparente
final, aparente prazer por um fim o que soa acabar, abacado, como ficará
mais claro adiante).
Um eu aparentemente diluÃdo em
conexões diversas, encontros, leituras, passagens por aeroportos de
cidades distantes entre si se reúnem em um caderno que tomo emprestado
em Um teste de resistores e logo adentro noutro livro de MarÃlia, um que ainda não li: “ao escrever o engano geográfico/
tomo o poema de emmanuel hocquard/ uma narrativa de viagem/ como modelo
para narrar a viagem que fiz até ele/ faço minha viagem com um
caderno/pensando no poema dele/ escrevo a viagem/ e ela acontece/ a
viagem de emmanuel hocquard/ é uma viagem na direção do passado/ já que
ele se desloca em busca da memória”.
Na noite anterior Ã
apresentação de MarÃlia Garcia na ABRALIC, assisti no Centro Cultural
Midrash (Leblon) à parte do ciclo “Em obras”, com concepção e curadoria
da escritora Paloma Vidal, do qual MarÃlia também havia participado com a
apresentação de “A hélice” na semana anterior, quando também se
apresentou a crÃtica de cinema Ilana Feldman. Na noite em que ali
estive, apresentaram-se a própria Paloma (“Não escrever”), Cynthia Edul
(“Expatriada”) e Diana Klinger (“A caixa preta”). Elisa Pessoa e
Verônica Stigger seriam as próximas. Cada uma delas foi convidada a
performar o gênero palestra ao expor pesquisas pessoais em andamento.
Entre
os materiais utilizados nas apresentações de “Em obras”, mapas, imagens
de televisão, fotografias, documentos, postais, trechos de filme. Obras
marcadas pelos deslocamentos das próprias autoras citadas pelo mundo
(ao exterior, por vezes; ao território interior, sempre) e daqueles que
atravessaram suas biografias (sempre aos pedaços), histórias de amor e
de guerra, por vezes da guerra que só comporta o amor, até mesmo antes
do nascimento de cada uma delas, autoras, e de nascer na gente
(expectadores, leitores) questões que também são nossas. Assim, eu
estive no Rio, mas também em Paris. Saà do Brasil em direção à SÃria, Ã
Alemanha, ao Japão. Retornei, em obras e estrangeira, expatriada,
convocada a me aproximar desse canteiro.
Talvez esse
seja um efeito desse formato experimentado: a sensação de proximidade
com algo que nos diz respeito, que podemos acessar com um clique, mas a
partir de pontos diferentes para se dar esse contato que é pura
alteridade. Efeito, que fique claro, visto que cada obra em construção
demanda materiais e formas muito singulares, muito mais da ordem do
digital que está na ponta dos dedos e é inconfundÃvel traçado na carne,
do que da marca de uma geração que lida sem preconceitos com a
diversidade de suportes e com todo meio possÃvel para expressão do gesto
poético. Apesar de uma certa supremacia da visão, todos os sentidos
comparecem e, sobretudo, a falta de sentido em chave de abertura
fundamental para o que não pode ser contido em explicação fácil.
Quando fui à PUC-Rio (Gávea), em busca de uma dissertação dos finais da década de 1970, sobre Infância,
de Graciliano Ramos, para minha pesquisa em andamento, não consegui
chegar a tempo na UERJ para assistir à comunicação de Elizabeth Santos
Ramos, neta do escritor, sobre a presença feminina em Memórias do cárcere.
Ficou daquele dia esta ausência e uma pergunta sobre a falta: como
dizer o lugar onde não estive e me habita? Está muito em voga dizer do
“lugar de fala”. Silencio. Penso naquela gravura de Hiroshige Utagawa no
poema “Gente na ponte”, de Wislawa, onde “o tempo foi suspenso”,
“tropeçou e caiu” e logo estou de volta ao quarto adolescente, onde
atrás da porta ainda pende um calendário com pinturas de Van Gogh. Datas
circuladas sob a ponte Langlois, em Arles. Ressurge o fantasma da pont
marie, de MarÃlia, e tudo aquilo que não conseguimos ver quando
estático: como imobilizar em imagem o Rio que corre? Lugar-comum, eu
sei, porque lugar comum o tempo que escapa. Aporias dos meus dias no
Rio.
Em Botafogo, assisto ao filme Aquarius,
de Kleber Mendonça Filho. Em Recife só estive no aeroporto. Reconheço
nas imagens antigas localidades de uma cidade nunca visitada. Recife tem
58 pontes, entre elas a MaurÃcio de Nassau, a primeira ponte do Brasil.
Recife tem o Ocupe Estelita. No breve percurso entre o cinema e o
apartamento onde estou hospedada no Flamengo, o taxista erra a rua,
esbraveja que nada sei sobre o endereço onde estou. Bate no peito seus
sessenta anos rodando pelas ruas cariocas. Rua e número constam em todas
as correspondências que chegam àquele prédio, como o porteiro assegura.
Guardo um certo orgulho de poder errar, andar sem rumo.
De
volta às rampas da UERJ, no último dia da ABRALIC, na mesa “Literatura e
linguagens de resistência”, o professor da Università degli Studi Roma
Tre Giorgio de Marchis chamou a atenção para formas de resistir frente Ã
necessidade humana de ficções (não apenas presente em obras ficcionais,
que fique claro) que buscam delimitar, via forma e sintaxe
autoritária, o que não tem limites, com seu “imprescindÃvel fim”, com
sua “conclusão esclarecedora”.
Contra tais “mapas
narrativos para um mundo indecifrável”, o investigador italiano lembrou a
resistência contras forças ordenadoras surgidas já no próprio século
XIX, justamente quando um certo tipo de romance tinha se prestado ao
papel de decifrador do vazio. É o caso de A educação sentimental,
de Flaubert, romance que, sem progressão, rejeita a lógica limitante do
enredo. “Começa basicamente aqui, com Flaubert, a ideia de romance como
anti-romance, como resistência, como recusa a satisfazer a construção
de um plot”.
Com a supremacia das imagens,
que impuseram, nos termos de Marc Augé citados por de Marchis, a
“ditadura do eterno presente”, “qualquer escrita que ecoe as imagens se
reduz a uma escrita-plágio, uma escrita-legenda, uma escrita-pleonasmo”.
E nesse ponto da fala do professor, reforço mais uma vez às apreensões
das imagens e das cidades nas palestras performáticas de MarÃlia, de
Paloma... na ABRALIC, no “Em obras” e sobre seu caráter inacabado, que,
ao trabalhar com imagens, a elas não se submetem, mas a problematizam.
Para Giorgio de Marchis, que dialoga com outros
estudiosos (não vou citá-los todos aqui) para construir seu pensamento,
“narrar a cidade, olhando para a borda extrema do visÃvel, significa
encarar o literário (e talvez admitir o esgotamento da literatura no seu
sentido mais tradicional), encarar o literário não através da descrição
daquilo que é extremamente visÃvel (e já visto), mas incorporando na
própria escrita o desafio da sua ilegibilidade, a impossibilidade de ler
na sua totalidade um ato de escrita ilegÃvel”.
Como
exemplos dessa impossibilidade de se compor uma paisagem totalizante
arquitetada em uma narrativa tradicional, o italiano toma os casos das
cidades de São Paulo (megalópole com seus 17 milhões de habitantes) e
Roma (com seus 2769 anos de história) e duas de suas representações
contemporâneas na literatura e nas artes: Eles eram muitos cavalos,
“uma instalação literária”, segundo seu próprio autor, o mineiro Luiz
Ruffato, 69 narrativas, compostas de materiais e fontes diversas,
independentes entre si, que se dão no mesmo lugar, no mesmo dia (9 de
maio de 2000); e os 54 frisos do artista sul-africano William Kentridge,
realizados com a técnica stencil ao longo de 550 metros nas
muralhas de 12 metros que delimitam o rio Tiber, inaugurados no dia 26
de abril de 2016 (aniversário da cidade), que, como num terreno
arqueológico que aproxima resquÃcios de tempos diversos em suas camadas,
faz uso de imagens consagradas da história de Roma, da arte, do
jornalismo, do cinema, criando “uma historiografia estratificada que
estabelece pontes excêntricas e inesperadas entre as imagens”. Destaco
mais uma vez as palavras eleitas por Giorgio de Marchis: “pontes
excêntricas e inesperadas”, que se recusam ao cronológico, ao ordenado,
obrigando-nos a uma outra experiência do tempo e do espaço. Exemplo: o
artista funde no mesmo friso a morte de Aldo Moro, a violência imperial
da Roma Antiga e o êxtase de Santa Teresa.
Gostaria de
encerrar esta crônica de meus dias no Rio com a imagem da página preta
projetada por de Marchis no telão do auditória da UERJ (causando
estranhamento na plateia, risos), a página preta que fecha sem encerrar Eles eram muitos cavalos,
de Ruffato. Ou ainda com o friso número 37, desta série de Kentridge,
todo preto, com o seguinte escrito no canto inferior direito, entre
parêntesis: (Quello che non ricordo) [Aquilo de que não me lembro].
Imagens
seguidas da seguinte reflexão tecida pelo italiano, que nos disse ali
em português claro, nessa outra ponte que é a tradução: “se a literatura
hoje poderá ter alguma possibilidade de resistir, essa resistência se
realizará heroicamente numa afasia que não deixa de ser um silêncio que
fala. Dito com outras palavras, a linguagem da resistência se poderá
realizar através do indizÃvel preto de tudo o que eu não me lembro”.
Mas
eis que... no retorno via ponte aérea Rio-São Paulo, aguardando a
autorização para pouso, o avião em que sou passageira ultrapassa a rota
rumo ao Congonhas e sobrevoa justamente o bairro de minha infância.
Imagem do alto de um onde sempre me senti pequena, lugar que me deu a
perspectiva do chão. “O extraodinário é imprevisÃvel” como o Rio.