Este encontro com Tércia Montenegro, autora do romance Turismo para cegos, é parte do projeto Literatura Brasileira Hoje, idealizado por João Cezar de Castro Rocha. Desta vez, somos convidados à Casa de Leitura Dirce Cortes Riedel, ou Casa Dirce, como carinhosamente é chamada.
Chego a esta casa vindo de outra, em outro tempo, ali há uma rede para se balançar nas tardes entre os livros. Nas pontas dos pés, é como se fosse água, mas são folhas, páginas que invadem a sala além da estante. A casa onde Tércia cresceu, e que visito em seu blog.
Entrando ali somos apresentados à sua “paisagem dos livros; a rede me impulsionava até que meus pés tocassem a lombada de alguns exemplares – como alguém que mergulha os dedos num rio, experimentando a temperatura da água”.
Neste balanço, há um ritmo, e nesse impulso, a proximidade do abismo se anuncia: “em cada palavra vejo um laço. E nunca me protejo”.
AÃ, poderia arriscar uma chave de entrada para o romance.
Em cada capÃtulo somos apresentados a uma cena que contém um ritmo em si, e evoca uma diferente atmosfera, com um olhar sobre como nascem os instantes, nesse desafio de se debruçar sobre o cotidiano, observar as relações entre as pessoas e suas percepções diante do mundo.
Chamo a atenção para o tÃtulo de um dos capÃtulos do livro: “Como nascem as cachoeiras”. Não contém essa imagem variados tempos? E sons. De nascente, burburinho sob a pedra, à corredeira de ritmos decididos pelo tamanho das pedras no caminho. Em seu futuro de abismo, a cachoeira rende-se ao polvilhar de uma queda onde tudo é tão fino e onde ela não mais se vê.
No encontro, conversamos sobre como o romance não se trata exatamente de um “Turismo para Cegos”, na verdade ali se fala de humanidade, relações em que há pouco espaço para o amor, cada personagem voltada para suas histórias e traumas, mas de algum modo fisgada pela história do outro, e que se deixa enredar pela trama que é a vida do outro.
Fotografam-se instantes onde as personagens se ocultam e se revelam, num impulso que as leva em direção a outro aspecto de si mesmas.
Na cena em que Laila está feliz, ninguém percebe que ela é cega, porque anda, corre, e até atropela as crianças sem revelar sua condição numa postura ou gesto, sem desenhar no corpo a pista “não enxergo”. Ao contrário, atira-se contra os obstáculos e se lança pelo caminho – “pessoas são como cipós”– e percorre os vazios súbitos – das paredes que terminam – das antigas casas, na sua viagem a Minas.
E os sinos começam a tocar “de uma forma tão intensa” que Laila surpreende com sua constatação:
“Para mim, é o som de uma cachoeira nascendo”.
Neste capÃtulo solar, e ainda assim envolto em mistério, revela-se um dos raros instantes em que Laila se permite ver com outros sentidos.
Ao longo das páginas se enumeram as vozes que Laila escuta na gradativa escuridão. Nos muitos desdobramentos de seu “dar-se à escuridão”, não se naturaliza a cegueira, cada transformação aparece como uma passagem que ainda não se tornou uma convenção. Na relação do corpo em sua transformação, nada é o que parece, ou o que se coloca à primeira vista pelo senso comum. “Dar à luz” também pode ser um “dar-se à escuridão”. As relações, transitórias, perdem uma promessa do para sempre.
Olhar que se abre para novas perspectivas. A criança Laila já era capaz de descobrir diferentes formas de ver o mundo. Na areia, nas dunas da praia em Fortaleza, não eram castelos que ela queria construir na areia, mas túneis e esconderijos.
Olhar as coisas pelo avesso: e inaugurar direções.
Por outro lado, em nossa conversa em torno do percurso de Laila, nomeamos situações que provocam estranhamento. Um detalhe, uma pausa diante de duas presenças dÃspares.
Laila não faz esforço algum para que o leitor sinta por ela piedade. Aquela que poderia ser a vÃtima cresce em independência e liberdade, inclusive aos olhos da narradora-personagem, que se coloca na posição de quem observa e escuta. No entanto, como pontuamos ao longo do encontro, no livro “nada é o que aparenta ser”. No quadro, qualquer instante de harmonia pode ser invadido por um golpe de tinta. Um lance imprevisto, inédito, impensável – pelo menos em voz alta.
Ao “viver a vida alheia” a narradora, em seu exercÃcio de escuta da história do outro, transita por um glossário de espera, raiva, alegria, vida, inércia, medo, viagem.
Laila encontrará meios para ficar a salvo do abismo – pela viagem – ou pela fúria.
E se com Laila a paz é transitória, também sua fúria pode não ser definitiva - ou sua ausência, mesmo que se ponha em fuga.
Fica a pergunta para o leitor, será que também no cão-guia se pode confiar? Alguma pista nos é dada na forma como o cão tem desenhado o seu trajeto.
Nem o namorado de Laila, servil, lhe serve o tempo todo. Também ele escapa, a seu jeito, e oculta alguns disfarces.
Laila, reticente a toda a ajuda, está longe de ser uma figura amável. A mancha imperceptÃvel numa página pode ser um desastre nalgum capÃtulo próximo.
Na conversa com o público presente, João Cezar comentou: será que isso não fala um pouco das pequenas chantagens que podemos infligir aos outros em nossas privações cotidianas? O espaço da literatura se oferece para o que de outra forma não se poderia dizer. Mas é interessante também para compreendermos como nós somos capazes de pequenas provocações em situações adversas.
No romance de Tércia, de tal modo acontece a narrativa que o leitor se verá diante de algumas perguntas que o lançarão página após página adiante. Cada coisa é revelada a seu tempo. E uma revelação pode não durar muito em sua veracidade. Outro golpe de tinta pode indicar outro caminho para o que estava em repouso. Quando se anuncia o perigo de algo novo, em frases como “não foi bem isso que aconteceu”. Portanto não pense o leitor que a narradora o tomará pelas mãos e o guiará com boas intenções.
Laila começa a perceber mesmo o mais banal, que inunda o cotidiano de forma menos delicada. O território do ilÃcito – do que não dever ser visto. Mas aà também começa sua fragilidade, e uma abertura para novas direções.
A visão em certa passagem do romance é colocada como janela, caixa, moldura. Sem ela tudo se fragmenta, olho, nariz, orelha, pedaços soltos... como lemos no livro: se um cego voltasse a ver, entenderia o rosto?
A visão aà é também distância, a paz de não ser invadida pelas coisas.
Sem ela, perde-se a distância a imprimir sentido, e antes ainda, a chance de contemplação – não apenas de uma paisagem, mas do objeto-memória-registro. O espaço morreu, viva o espaço. Percorrer o espaço para que ele continue aÃ. “Viajar é a única forma de eu saber que o mundo existe”.
Ela precisa se colocar a caminho o tempo inteiro, pois não tem como ver os objetos da memória. Se não há como fotografar e dialogar com as lembranças. Guarda sim um objeto ou outro, mas para logo deixá-lo de lado.
Na primeira parte do livro, é assim que Laila se põe no movimento da viagem: percorrer o espaço, para que ele exista.
Na sua recusa de se ver “dentro da cegueira”, ela se coloca “fora do mundo”. Perde o sentido de estar dentro do mundo. Como é conseguir entrar no mundo outra vez? Ainda há uma Laila capaz de surpreender e aprender que ela também é mundo, “você também é mundo” – dirá o instrutor e colega na arte da performance que ela irá conhecer, conforme lembrou Tércia em nossa conversa com o público. E nisso lembrei-me também das sonoridades, o jogo que nessa terceira parte do livro se apresenta como horizonte possÃvel num espaço que deixou de existir e levou com ele as linhas.
Pelos sons das palavras, Tércia traz para o livro não apenas uma Laila que volta ao mundo, mas também lhe oferece... a chance de um corpo. A autora comentou como construiu este instante: se não há como piscar, baixar os olhos, espiar, olhar de lado... para insinuar-se em direção ao outro, ou deixar que o outro se aproxime. Como é perder isso também... o jogo do olhar? E a resposta foi o seu “jogo das vozes”. Nesse capÃtulo Laila descobre o corpo na dança e também na palavra: o timbre, a modulação, o ritmo. Até chegar aos significados, e seus duplos sentidos.
É pelo corpo - e pelas palavras - que descobre um novo caminho. Se antes só se interessava pela pintura, começa a jogar com outras tintas.
Agora é Laila que fará da palavra um objeto sonoro. “As dunas eram vivas, móveis, e justamente por isso, únicas.” Na “cegueira fulgurante sob o sol”, das “praias da infância” algo se resgata, em diferentes possibilidades.
E com um exercÃcio das sonoridades, a própria autora traz para o livro, na textura das palavras, a chance de um flerte.
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O link para o blog de Tércia.
Entrevista com Tércia:
1 - No livro, as personagens nem sempre são o que aparentam ser. De que modo as relações se constroem num universo onde – para lembrar palavras que nomeiam capÃtulos do seu romance – qualquer paz é transitória, os deuses viraram pedra, e a viagem, por sua vez, traz com ela uma ressaca?
Creio que todas as personagens do livro vivem numa constante negociação de descoberta e perda da própria identidade. Às vezes elas falseiam sua aparência de propósito, mas às vezes elas estão tão perdidas em relação a si quanto qualquer um que estivesse do lado de fora. Nesse sentido, o turismo - esse passeio provisório e cheio de estranhamentos - acontece universalmente, diante das cegueiras que temos em relação a nós mesmos , com os intermináveis mistérios que nos põem diante do mundo e das demais pessoas.
2 - Na epÃgrafe a uma parte do romance, você diz com Cortázar: “o tempo começa nos olhos”. Não estaria Turismo para Cegos muito próximo de falar de nossas estratégias de habitar um mundo que hoje nos escapa e onde as relações são provisórias?
A grande questão desse romance é o tempo. Foi um trabalho que, para mim, deu seguimento à reflexão literária que eu havia iniciado com o livro anterior, O tempo em estado sólido. Por isso a epÃgrafe do Cortázar, além de uma epÃgrafe do Proust, que aparece em outra parte do romance: esses dois autores me despertaram para as sutilezas da apreensão - ou da impossibilidade de apreensão total - das experiências que vivemos. E essa ideia de que o tempo nasce nos olhos traz justamente isso: uma visada, uma varredura de olhar, é tudo o que temos diante do mundo. Não levamos nada, não conseguimos ir para além do provisório, desse instante condenado a ser perdido.
3- “E, no final das contas, esta veladura de fumaça pode dissipar-se um pouco e entreabrir-se sobre a vida ou a morte – que importa?” Você traz ainda Greimas. Em seu romance, como acontece a percepção provisória, incompleta, e o corpo como experiência do mundo? Dobrar-se a esse instante que se revela antes de perder-se. Laila diz algo como não se fica cega” de uma vez só, “você cai várias vezes”.
A experiência, a visão sobre algo, é apenas um entreabrir-se. A terceira epÃgrafe, do Greimas, trata justamente disso. Este foi um autor com quem eu aprendi muito (e ainda aprendo) a respeito da construção do sentido, assim como aprendi sobre a percepção com o Merleau-Ponty. Mas o interessante é que todos esses olhares, teóricos, filosóficos ou semióticos, sobre o corpo, podem ser ingredientes da ficção, podem ser reflexões situadas no aquém da literatura - ou seja, se eu não tivesse lido esses autores, dificilmente teria pensado em imaginar uma história com tais componentes sensitivos; eles foram, portanto, um pré-requisito para a minha elaboração criativa. O leitor, na fruição do livro, talvez não perceba tais influências, porque afinal elas estão diluÃdas numa linguagem artÃstica - e nem precisa que o leitor atente para isso, na verdade. Mas as epÃgrafes são uma forma de eu reconhecer essas influências, de homenageá-las nesse processo. Porque tudo é um processo - a cegueira da Laila, o aprendizado estético... nada acontece de repente, tudo se constrói durante várias vezes. Essa é outra mensagem do livro, importante principalmente se a gente pensa num mundo em as coisas são exigidas de forma tão instantânea, como se a existência funcionasse na base dos Ãmpetos... Mas na verdade não é bem assim.
Curadoria de João Cezar de Castro Rocha.