Eu
cobria as férias de alguém em uma hoje extinta revista de livros quando
costumava frequentar o sebo que o escritor Evandro Affonso Ferreira
tinha ali perto da redação, na av. Pedroso de Morais, em Pinheiros.
Vendedor peculiar (talvez por isso não bem-sucedido comercialmente), ele
costumava dar de brinde livros de Borges, entre outros mestres, para
quem levasse um livro de autoria dele. Categórico como sempre foi, um
dia Evandro determinou: “O livro que você precisa ler é Certeza do agora,
do Juliano Garcia Pessanha”. Era 2006, sua trilogia já circulava há
algum tempo, mas foi por este terceiro que adentrei sua escrita. Reli
algumas vezes, em especial, a heterotanatografia “Esse-menino-aí”, que,
como você bem sabe, recolocou para mim a questão do testemunho como
perspectiva de classe. Aquele seu Morumbi era desolador, afinal, até
para uma moça da periferia. Melhor seria dizer: desalojador.
Você
sempre me disse ficar comovido em imaginar que seu livro tinha sido
lido num quartinho em Taboão da Serra. Quando nos conhecemos eu morava
sozinha no centro de São Paulo, mas lembro bem do dia em que conheceu a
casa dos meus pais, entrou no tal quartinho e perguntou: “Então foi
aqui?”. Você tantas vezes me pediu para escrever sobre este meu encontro
com seus livros, sobre as tantas releituras, sobre tantos comentários
que compartilhamos... Eu relutava, dizia que veriam como propaganda, que
a ninguém poderia interessar a leitura de uma leitura tão pouco
distanciada. Uma leitura tão atravessada por um corpo, no que de
pensamento há daquilo que experimentamos na pele. Mas a verdade é que
nenhuma leitura é distanciada. Não importa nunca ter cruzado com aquele
ou aquela, não importa sequer falar ou não suas línguas. É claro que eu
sabia disso, apesar de afirmar o contrário. Nenhuma leitura é sem corpo
que atravessa. Posso testemunhar. Ao menos, não as desse tipo, as que
marcam e ficam, cicatriz de corte fundo. Corte entre antes e depois do
lido tudo o que lemos. Talvez pela consciência dessa proximidade máxima,
eu me preservasse de me expor tamanha corporeidade, e tudo o mais
inconsciente. Os seus livros são livros com inconsciente a céu aberto,
Juliano. O céu que só vemos quando o grito escancara o que está dentro
da boca. E dela sai palavra.
Quando comecei a escrever
estas crônicas de leitura, apesar da relutância em compartilhar as
minhas sobre seus livros, assumi justamente o método baseado em um
pressuposto pigliano: “Uno escribe su vida quando cree escribir sus
leituras [...]. El crítico es aquel que encuentra su vida en el interior
de los textos que lee”. Afinal, quem não quer se expor não escreve,
você bem sabe. Não há um meio termo. Sendo assim, se escrevo minha vida
quando escrevo minhas leituras e se encontro minha vida no interior dos
textos que leio, você não poderia faltar. Me rendi porque já rendida.
Então eis-me aqui, nesta carta a você, carta aberta porque encerrada em
seus textos, nos quais o eu mais íntimo é um eu que reconhecemos em nós
se não por similaridade, por estranheza necessária a tudo o que é
normalizado no dia a dia e nas horas que acreditamos calculadas nos
ponteiros do relógio e seu giro em torno do mesmo.
Na edição de Testemunho transiente (Cosac Naify, 2015), que reuniu em um único volume Sabedoria do nunca (1999), Ignorância do sempre (2000), Certeza do agora (2002) e Instabilidade perpétua
(2009), você escreveu: “Para Luciana Araujo, que inscreveu em minha
carne o livro que ainda não está aqui”. Meu nome aí é mero corpo
invadindo o que já estava escrito muito antes do nosso encontro, porque a
leitura assim se dá, sempre no presente. O mais importante, e para o
qual chamo atenção, não está na autorreferência, mas nessa dedicatória
como promessa do livro por vir que você vem caminhando não sem
sofrimento, não sem um violento questionamento de tudo o que nós, seus
leitores, só experimentamos porque você visitou lugares onde nunca
poderíamos estar, porque numa fronteira muito rara entre uma lucidez
cortante de claridade de sol a pino e a profundeza escura onde a maioria
se afoga (não apenas a filha de Joyce).
A fronteira
entre os gêneros, a propósito, é apenas um indício formal desse espaço
que você ocupa – performance, poesia, ensaio, escrita de si, aforismo,
“pensamentos estremecidos”... (Ainda houve quem sugerisse que devesse se
concentrar em apenas um deles, como se o lugar de uma fala a gente
alugasse como se alugam cômodos só para rapazes em uma pensão.) Como bem
notou Benedito Nunes, já no primeiro de seus livros, apaga-se nessa sua
formalização do vivido e do pensado “a diferença entre filosofia e
literatura, em cujos frágeis limites se colocam” seus escritos. “Mas
para que isso ocorresse, para que a ficção especule, o poema pense
cantando e o ensaio realize uma experiência sobre o que investiga, foi
preciso sintonizá-los entre si, como quem afina distintos instrumentos
pelas claves de temas comuns, os quais passam de um para outro escrito,
os três em mútua correspondência.”
Sua atual
inquietação, desconforto e desconfiança com o altar dedicado ao Fora do
Mundo, construído como monumento sobre os corpos devastados de poetas
como a russa Marina Tsvetáieva, corpos em consonância com aquele que foi
vestido como seu – mas com numeração errada, estourando botões, curto
para tanto braço e tanta perna –, só se aplaca no mar, porque imenso e
movediço chão. Se em “A exclusão transfigurada”, que integra Instabilidade perpétua, esse você se converte no Eu-Kafka, e no livro Diálogos e incorporações (Malha
Fina Cartonera/Mariposa Cartonera, 2016), como o próprio título sugere,
a possessão se dá com Nietzsche, Cioran, Rimbaud e a própria
Tsvetáieva, já citada, isso só é possível por meio do que batiza de
“empréstimo de ferida”. Você fala como e com cada um deles no que neles
identifica-se, mas não de modo narcisista, não por pretensão de
associar-se a gênios do desencontro com o mundo. O que dói e ressoa em
você desses outros é a sua leitura atravessada por esses corpos. Em
outras palavras, é o seu próprio corpo que lateja e padece o que respira
e infecta, o que come e não digere no cotidiano impossível que é o
possível de todo santo/maldito dia.
Sua inquietação é
um desejo de cura para o que é incurável em todo poeta, lamento
informá-lo. Lamento e não lamento, porque celebro seu dom. Talvez a
filosofia apenas agrave o quadro, que tanto te espanta, mas que é de uma
beleza, daquelas de tipo impressionista, que é preciso se afastar um
tanto para ter dimensão do que revela. Seu ângulo, neste caso, é
desprivilegiado.
Paradoxalmente a esse excesso de
corpo e de incorporações que se acumulam nas linhas acima, numa
repetição proposital, porque inevitável, Juliano Garcia Pessanha, o que
posso testemunhar de tudo o que li e leio no que vive e escreve, pois
nada escreve se não vive, é a história de alguém em busca do próprio
corpo, de um corpo próprio, de um corpo liberto da dominação de outros
corpos, até mesmo os do amor, com suas mãos e dentes, gaiolas com ninho
dentro, imagem que só Bispo do Rosário poderia ter materializado como
materializou. Por isso sua obsessão com o útero, com o uno mãe-bebê
winnicottiano, o encantamento com o menino e a bola de sabão no quadro
inglês descrito por Peter Sloterdijk em Esferas I. Fazer nascer
o próprio corpo, sem o pai e a mãe que teve, é impossível. E a suspeita
de que é tarde demais para nascer que te faz pensar na morte é vã,
porque só morre o corpo que viveu.
A desconfiança
imensa do incorpóreo de certos versos e certas filosofias, todas pouco
errantes e facilmente localizadas em currículos Lattes, erradas para
você, dizem dessa sua busca por um corpo próprio. O incorpóreo, que um
religioso, que você nunca foi, poderia reverenciar como morada de um
espírito etéreo, jamais abarcaria essa ferida que nada mais é do que um
rombo na carne. Se há carne há o corpo que você acredita roubado, quando
na verdade permanecesse seu e aí dentro. Está no seu estômago a chave
engolida. Está no que você respira e no que se alimenta o livro que
ainda não está aqui, por enquanto, e que já aguardamos, sedentos de
comunhão.