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De quem juntou a fome com a vontade de escrever



2016-05-12

Dia a dia o que temos em Quarto de despejo  um relatrio de sobrevivncia na escassez. A fome quem alimentava outro e outro relato. A fome como palavra e como imagem ou referncia povoa todo o Quarto, basta sair grifando para se constatar o bvio. Sobre a vida e obra de Maria Carolina de Jesus.

“Carolina é um milagre em nossas letras”, ouvi certa vez alguém dizer, o que para mim soou metafísico demais diante da concretude da obra em questão, quase blasfêmia contra o real historicamente calcado e sua capacidade de produzir absurdos. Ainda que, é preciso ser dito, a leitura meramente sociológica de Carolina Maria de Jesus (1914-1977) também a mistifique em outro sentido. Elvia Bezerra, coordenadora de Literatura do Instituto Moreira Salles, em “Quarto de despejo: ‘flor incrível e pura’”, texto  publicado no blog do instituto por ocasião do centenário da escritora, cita o artigo “Romance e sociologia”, publicado no Correio da Manhã, em 18 de julho de 1964, por Otto Maria Carpeaux. Nele o crítico  ressalta que “Como meros documentos apreciamos obras não literárias como Quarto de despejo”. Ao final do artigo, Carpeaux conclui que a importância sociológica de um romance, como documento, depende do seu valor literário. Também esta é minha profissão de fé, e nem preciso chamar os diários de Carolina de “romance” para tal.

Entre o material explosivo à disposição da sensibilidade de uma mulher como Carolina, via experiência, e o que a levou efetivamente a escrever e desejar ser escritora, sempre residiu parar mim um vão de mistério que procurava preencher com dados sociais e históricos. É tarefa vã tentar identificar pontualmente a gênese de um escritor. De qualquer forma, não me satisfazia a ordem do inexplicável para dizer de Carolina, tampouco a menção ao puro materialismo extratextual. Me interessava a formalização literária, o texto como fonte para se ler a tal realidade retratada a partir da mediação poderosa de seu testemunho, e não o contrário. E assim se passaram anos até que eu fizesse uma releitura de Quarto de despejo: diário de uma favelada (1960).

É evidente que os escritos de Carolina, como obra de exceção, têm muito mais que ver com ser fruto de uma realidade brutal como a brasileira do que com qualquer resquício de operação mágica, coincidência ou acaso. A propósito, em 1933, quatro anos antes de migrar para a capital paulista, a mineira de Sacramento foi presa em sua cidade natal por saber ler. Àquela altura, suspeitaram que uma moça como ela só poderia fazer uso da leitura para praticar feitiçaria. E para por aí qualquer uso aceitável do léxico sobrenatural para se contar a história da autora.  Isto é, foi acusada de uma feitiçaria que ela não praticou. A sua seria a literatura, afinal, outra ordem de ação sobre os seres.

“Em algum momento vocês duvidaram da veracidade do que liam?”, perguntou Gheu Sousa Teixeira, que falou lindamente sobre verossimilhança para os alunos das três turmas de graduação em Letras e Estudos Literários da Unicamp, para as quais falamos, junto com Franklin Morais, sobre os diários de Carolina, como parte de nosso estágio docente como doutorandos sob orientação de Alfredo César Barbosa de Melo, responsável por incluir a escritora na ementa da disciplina de Cultura Brasileira, em meio a nomes como os de Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Glauber Rocha, Gilberto Freyre... Questões surgiram, como o fato de ela parecer escrever um diário para que um outro lesse, um outro que não era alguém da favela, mas não foram levantadas quaisquer suspeitas sobre a veracidade dos fatos narrados.

O improvável nunca foi marca temática de Carolina, ainda que ela própria fosse considerada uma escritora improvável. Negra, moradora de favela, mãe solteira de três filhos de pais diferentes que abandonaram os rebentos, apenas dois anos de escolaridade, faminta a maior parte do tempo, paradoxalmente, somente alguém como ela poderia ser responsável pelos relatos brutais do cotidiano de ida e volta para a favela do Canindé, às margens do rio Tietê, onde morava desde 1948, até dez anos depois ser descoberta pelo jornalista Audálio Dantas, então repórter da Folha da Noite.

A reportagem de Audálio intitulada “O drama da favela escrito por uma favelada” (1958) trazia trechos do diário. O jornalista, que foi o responsável pela compilação dos textos que integram “Quarto de despejo”, ainda escreveria sobre ela para a revista O Cruzeiro, em 1959, e a indicaria para a Livraria Francisco Alves, responsável pela primeira edição do livro, que vendeu 10 mil exemplares em uma semana, 600 só na noite de autógrafos, chegando a uma marca entre 80 a 100 mil no total (há essa variação entre fontes checadas), com sete reimpressões só em 1960, além de traduções para 15 línguas. Um fenômeno editorial.

O crítico Wilson Martins escreveu pelo menos duas vezes no Jornal do Brasil sobre Carolina, uma na época do lançamento e outra na década de 1990, quando a editora Ática lançou nova edição dos diários. Ambos negativos e céticos. No primeiro texto, ele suspeitava da autoria, no segundo dizia que Carolina tinha virado um mito. Desconfiava do uso de palavras e expressões consideradas sofisticadas demais para fazer parte do vocabulário de uma favelada. Exemplos: “deixa o leito”; “gestante”; “abluir-se”; “sinfonia matinal”; “turba”; “palavra de baixo calão”. Ora, me parece que é justamente alguém que quer enfeitar sua fala sem a consciência modernista voltada mais para o coloquial aquele que lançaria mão dessas palavras e expressões. Lamento Wilson Martins, você pode não acreditar em Carolinas, mas que elas existem, existem.

De qualquer forma eu seguia intrigada com o tal vão entre essa autenticidade incontestável e o supostamente contestável, isto é, o fato de Carolina, sendo quem é, não só ter desejado ser escritora, como de fato ter escrito. Como no metrô, eu continuava na segurança do detrás da linha amarela, seguindo a recomendação do artista Paulo Bruscky: “Cuidado com o vão entre o trem e a palavra”. E buscava o tempo todo nessa releitura de dias atrás poder encontrar espaço no que a palavra é capaz de preencher daquele vão, vazio. "A cor da fome é amarela", Carolina me dava a pista com cor e tudo. Era isso: Carolina juntou a fome com a vontade de escrever e é de fome que suas linhas são preenchidas. Dia a dia o que temos em Quarto de despejo é um relatório de sobrevivência na escassez. A fome é quem alimentava outro e outro relato. A fome como palavra e como imagem ou referência povoa todo o Quarto, basta sair grifando para se constatar o óbvio.

A presença ostensiva da fome, recorrente em quase todos os episódios do livro, e de tudo mais que é necessário e lhe falta, põe sob suspeita todo efeito de sonho, elaboração ficcional e até de mau olhado ou qualquer outra crendice que a própria Carolina ora ou outra registra nas páginas de seu diário. A concretude desse vazio no estômago desaloja qualquer noção de conforto, onde a casa não merece ser chamada de casa, onde ser é ser em falta:

“Eu estava indisposta, resolvi benzer-me. Abri a boca duas vezes, certifiquei-me que estava com mau olhado. A indisposição desapareceu ‘sai’ e fui ao seu Manoel levar umas latas para vender. Tudo quanto eu encontro no lixo eu cato para vender. Deu 13 cruzeiros. Fiquei pensando que precisava comprar pão, sabão e leite para a Vera Eunice. E os 13 cruzeiros não dava! Cheguei em casa, aliás no meu barracão, nervosa e exausta. Pensei na vida atribulada que eu levo. Cato papel, lavo roupa para dois jovens, permaneço na rua o dia todo. E sempre estou em falta.”

Carolina era catadora de papel e de outros materiais. Entre os papéis que encontrava guardava para si aqueles com linhas em branco, aqueles que poderiam ser preenchidos com sua rotina de fome, fome de alimento, fome de palavras que nomeiem o vazio com sua “poética dos resíduos”, para usar aqui uma expressão problematizada na tese de Rafaella Andréa Fernandez, “Processo criativo nos manuscritos do espólio literário de Carolina Maria de Jesus” (2015), defendida na Unicamp.

A busca por esses resíduos, esses restos que vão compor suas linhas, dão à Carolina o olhar de quem se desloca pela cidade. O ponto de vista de quem está na favela jamais é estático, porque para ganhar a vida é preciso buscar onde sobra, longe dali. Sua visada não é apenas de dentro da favela, mas de diferentes itinerários através dos cômodos que ela arquiteta, do incômodo espaço destinado a ela e aos seus “iguais”, lugar de gente pobre e negra: “Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de ‘viludo’, almofadas de ‘sitim’. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”. E vale ressaltar aqui que o quarto de despejo como lugar-metafórico é diferente da senzala como lugar concreto. A senzala era destinada aos escravos, valiosos instrumentos de trabalho. O quarto de despejo é o lugar do que não tem serventia.  

Em nossa aula, Franklin chamou atenção para o mapeamento do terreno urbano como extensão dos lugares na hierarquia social e como ele se dá em vários momentos. Nesse traçado de divisas claras, a cidade surge como um lugar externo, enquanto a favela como apêndice maldito. Carolina diz em diferentes trechos: “Eu classifico São Paulo assim: o ‘Palacio’, é a sala de visita. A prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”; “Eu não saio do quarto de despejo, o que posso saber sobre o que se passa na sala de visita?”.

Ainda em sua exposição, Franklin lembrou que o “despejo” está também relacionado às ações movidas pelo poder público em favor de proprietários no final dos anos 1940, o que potencializou o surgimento das favelas. Audálio Dantas conta que na época em que conheceu Carolina existiam cerca de 50 mil pessoas morando em favelas em São Paulo, em 2014, os números no Brasil chegavam a 11 milhões e 700 mil.

Em “Crise de habitação e a luta política no pós-guerra”, texto reunido no livro As lutas sociais e a cidade (1988), Nabil Bonduki afirma que, entre 1945 e 1946, mais de 15 mil famílias foram despejadas, atingindo cerca de 75 mil pessoas. Os despejos chegaram a afetar até 15% dos munícipes, conforme citação de José Carlos Gomes da Silva, em “História de vida, produção literária e trajetórias urbanas da escritora negra Carolina Maria de Jesus”, texto que resultou de seu pós-doutorado também na Unicamp.

No seu segundo livro, Casa de alvenaria (1961), lançado portanto no ano seguinte à publicação de Quarto de despejo, a conquista de um outro tipo de moradia que figura desde o título faz com que a escritora afirme: “A realidade é muito mais bonita do que o sonho”. “A realidade podia ser mais bonita, mas lhe exigia o que o sonho preservava: competência para viver um degrau acima no seu status social. Carolina perdeu-se na nova condição de escritora. À inabilidade para lidar com o dinheiro que o primeiro livro lhe rendia somou-se o fracasso das publicações posteriores. Os refletores se apagaram sem aviso, assim como sem anúncio desapareceu o glamour da vida de escritora de sucesso. Em pouco tempo voltou à pobreza. Morreu em 13 de fevereiro de 1977, na casa de um dos filhos, longe da fama que conquistara por pouco tempo”, escreve Elvia Bezerra no texto já mencionado.

Passados quase quarenta anos da morte de Carolina Maria de Jesus e pensando nessa topografia para a qual sua escrita nos sensibiliza, e na qual estamos todos implicados enquanto sociedade, não deixa de ter uma força imensa acompanhar o que ela provoca ainda hoje ao adentrar espaços até então mais propensos a dar voz aos “escritores do salão” em detrimento dos “escritores do lixo”, classificação feita por ela, como é o caso de uma universidade. Mesmo que hoje a gente tenha Paulo Lins, Ferréz e companhia. Mesmo com um número crescente de trabalhos acadêmicos sobre literaturas de periferia e especificamente sobre o espólio de Carolina, acessível em diferentes acervos como o IMS, a Biblioteca Nacional, a Brasiliana, da USP etc.

Foi muito especial para mim que esta tenha sido a minha primeira aula como “professora”, aula na qual me sinto sempre aluna. Também não foi pouco encontrar uma frase de Carolina na porta do banheiro feminino da universidade, ao lado das de Ana Cristina César e Hilda Hilst, na mesma semana em que ela seria tema da disciplina de meu estágio docente.

E se acima eu brigava, creio que com razão, com a falta de argumento das coincidências e do acaso, confesso que fiquei arrepiada quando um de nossos alunos entrou meio atrasado e sem jeito na sala e, pasmem, DESCALÇO. Era a última das três aulas... Enquanto ele me contava por que não estava calçado, acidentes de percurso, eu só conseguia pensar nos sapatos todos que Vera Eunice, filha de Carolina de Jesus, não pode ter, assunto recorrente em Quarto de despejo. Calçados que se acumulam na narrativa, mas como ausência. E pensava ainda no constrangimento que a própria Carolina passou ao entrar descalça em um elevador onde também se encontrava uma figura de autoridade.

Eu nunca li Cinderela negra (1994), de autoria do historiador americano Robert Levine com o brasileiro José Carlos Sebe Bom Meihy, mas certamente há nesta Cinderela uma alusão aos sapatos perdidos no Palácio por essa Gata Borralheira desiludida de príncipes e fadas (os jornais e o mercado editorial?). Sapatos arrancados nos degraus sociais, devolvidos e novamente atirados fora. Degrau manchado pela escravidão em nosso país, como tão bem trata os versos de Carlos Drummond de Andrade:

            Mancha

Na escada a mancha vermelha
que gerações sequentes em vão
tentam tirar.

Mancha em casamento com a madeira,
subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.

E virou mancha de sangue
de escravo torturado — por que antigo
dono da terra? Como apurar?

Lava que lava, raspa que raspa e raspa,
nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau.

E ainda sobre essa consciência da mácula da escravidão, que fique com Carolina Maria de Jesus a palavra que encerra, mas que não pode ter final:

“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.”  



Luciana Araujo Marques

É mestre em Teoria Literária (USP) e doutoranda em Teoria e História Literária (Unicamp). É jornalista e atua no mercado editorial. Está entre os autores selecionados pelo programa Rumos Literatura, do Itaú Cultural, que teve como objetivo apresentar novos nomes da produção crítica brasileira com foco na produção literária contemporânea do Brasil, tendo como resultado a publicação do livro de ensaios "Protocolos Críticos" (2009).




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