Como escreve José Antonio Pasta na orelha de Ó (Iluminuras, 2009), de Nuno Ramos, o fato de que seu autor já era um artista plástico renomado antes de começar a publicar livros, nos leva ao lugar-comum (com hÃfen, clichê) de constatar um deslocamento daquele campo para o das letras. Pasta, entretanto, aposta em um caminho inverso, onde as palavras seriam “um primeiro fascinador” para o qual Nuno estaria voltando, e “contra cuja resistência e vezo metafÃsico ele lança de volta um corpo, um corpo plástico, o seu próprio e os corpos do mundo”. Saber esse sentido, se primeiro ou segundo, no entanto, não parece tão decisivo como a identificação do Corpo como esse território comum (sem hÃfen, semelhante) de onde brota seu gesto criador, seja nas artes, seja nas letras, no qual matéria diz e palavras promovem contato fÃsico.
O Corpo. Que corpo? Certamente não o corpo em sua exuberância, mas o corpo falÃvel, carne exposta a tamanhas sensações (ainda que tantas vezes anestesiadas). E saber-se tal corpo é um despertar traumático, na medida em que ele é receptáculo desse trauma.
Reconhecer a temática do corpo como território do encontro com o “real”, no sentido lacaniano, em Ó, não significa afirmar que estes não-ensaios, como os textos são definidos pelo próprio Nuno, promovam tal encontro em prosa hÃbrida. Não se trata aqui de aplicar a psicanálise como moldura diante do que se lê, mas reconhecer na leitura desses escritos psicanálise implicada e, em seu autor, um criador-leitor atento a todo tipo de linguagem, inclusive a que opera de maneira somática. O inconsciente como linguagem, por exemplo? Não tenho pretensão de responder essa questão.
Mesmo instalados na “zona de arrebentação da linguagem”, bela imagem evocada por Pasta, e de difÃcil classificação enquanto gênero, os textos em si não dão conta de proporcionar um “encontro do real” (tiquê), afinal, é preciso reforçar que esse se trata de um “encontro enquanto que podendo faltar, enquanto que essencialmente faltoso”, nas palavras do próprio Lacan no Seminário 11, em 1964.
O que se encontra na obra em questão, a meu ver, é a notÃcia desse real, o que não é pouca coisa diante de toda tentativa de recalcá-lo, isolá-lo, aspecto da vida cotidiana que também é refletido em várias passagens pelo autor.
Em “Manias, na trincheira” (11o capÃtulo de Ó), por exemplo, ele fala da “loucura do hábito” e de seu “sistema circular de tiques” como sintomas histéricos, como antecipador do insondável em nós, do que sem ser fisiológico nos abate enquanto corpos fÃsicos.
Tanto tratamos das situações extremas das guerras, aliás decisivas para o desenvolvimento das teorias do trauma, e Nuno nos tira de qualquer conforto ao lembrar dessa guerra travada nas atitudes mais corriqueiras como bombardeios silenciosos, não à toa faz uso do léxico bélico no tÃtulo, localizando as tais manias na trincheira.
“Nossas manias e hábitos talvez sejam a primeira etapa do que vai migrar depois para o corpo, uma primeira mutilação que antecipa e prepara as seguintes, mais literais e concretas. O pressentimento das dificuldades corpóreas da velhice vale-se de manias e costumes tirânicos, pois são as fraquezas do corpo que verdadeiramente tememos e é para elas que nos preparamos.”
Apreende-se desse processo uma inscrição que é escritura. Em Ó são aguçados os sentidos todos desse corpo-palavra-que-pesa-e-tomba (desastre e acidente em si) para além de enquadramentos, ao problematizar todo e qualquer modo de sentido estabelecido – linguagem instituÃda, gêneros literários, diagnóstico médico-cientÃfico e até o “alinhamento cientificista de nossas gavetas”.
A ruptura atordoante se dá com o supostamente familiar que é o corpo. “O que a presença do corpo denuncia, para além de qualquer reafirmação de sua existência individual, é sua fugacidade, a condição mortal, passageira do homem”, escreve Tânia Rivera, em O avesso do imaginário, ao tratar de manifestações da arte contemporânea em que há uma reversão do campo imaginário em prol de notÃcias do não-figurável, entre as quais eu incluiria esses escritos de Nuno.
Nada mais familiar do que o corpo... Familiaridade grávida de estranhamento, claro. Estranhamento que não se dá diante do outro que brada absurdos com os quais não concordo, do outro que me impede de passar, o outro que... O estranhamento opera silencioso em nós, mesmo quando tentamos calar o que o corpo nos diz com suas bandeiras de carne. Grito guardado que ora escapa, grito de gozo, de dor, de asco. Grito secretado.
“Meu corpo se parece muito comigo, embora eu o estranhe à s vezes”, é a primeira afirmação do primeiro texto de Ó, “Manchas na pele, linguagem”. E tudo o que é da ordem do excesso precisa ser contido, derrotado em confronto, em rituais diários, até o que é descrito repetidas vezes como mÃnimo, pequeno: “Tateio minuciosamente as pequenas saliências da pele, os pequenos pelos. [...] desde a primeira adolescência raramente deixei de cortá-los durante o banho, como um inimigo constante que precisasse controlar”.
A geometria de pelos caÃdos fora da rotina converte-se em “sinais extraterrestre” e a agonia do desconhecido em sua própria pele por um leve instante dá sinais de contentamento por conta da possibilidade de existir um diagnóstico médico que possa batizar o obscuro com um nome, nome pelo qual se possa chamar, que possa fazer companhia, “mesmo que de uma doença, de alguma coisa com nome definido”. O que dura pouco: “Mas não perdi o espanto sobre a origem daquilo [os cÃrculos geométricos na pele provocados pela queda de pelos]. Qual gen ou terminal nervoso ordenou que caÃssem neste formato circular perfeito? Em que lÃngua interna conversavam?”. A constatação de uma lÃngua em nós mesmos que não decodificamos provoca o ruÃdo necessário para o princÃpio de uma conversação, mas bem diferente daquelas das aulas de idiomas. O roteiro do diálogo não está dado.
“E este espanto, por sua vez, talvez venha de um outro, ainda mais remoto – o de que o corpo muda, opera o tempo todo um movimento cuja finalidade pertence apenas a ele. [...] É preciso ser bastante minucioso para antecipar suas sutis transformações e perceber como as veias escapam à pressão da pele, como as cavidades e vincos causados pelos movimentos aprofundam-se em largas gretas, como ressecam as bordas da derme, como uma linha genérica, frouxa, vai borrando a linha fina que contornava cada membro.”
Nessa investigação, o corpo, “este amalgama de carne e de tempo”, também se torna um terreno para investigações arqueológicas, com camadas e camadas de achados e perdidos.
Diante desse susto, recorre-se à linguagem como única alternativa a alçar voo fora do campo minado da matéria.
“Talvez seja melhor tratar agora dessa estranha ferramenta, a linguagem, que me põe para fora do corpo – tentar apreendê-la, indeciso, entre o mugido daquilo que vai sob a camisa e a fatuidade grandiosa de minhas frases. Sem conseguir escolher se a vida é benção ou matéria estúpida [...] olhando a um só tempo do alto e de dentro para o enorme palco, como quem quer escolher e não consegue: matéria ou linguagem?”
Embora o livro seja uma obra escrita em português, absolutamente traduzÃvel para outros idiomas, ele fala do que os dicionários não comportam, visto que não nomeável, de tudo aquilo que só se pode indicar via restos e rastos, nunca numa totalidade. Em Ó se dá a fórmula beckettiana (Tray again. Fail again. Fail better – Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor) via a tópica da inoperância de qualquer tentativa de tradução entre linguagens tão outras entre os tais e tantos corpos do mundo, o do próprio autor, o do outro, o nosso, esse Outro em nós mesmos, bichos, plantas, pedra, coisas, em uma alquimia incessante, em que a morte nada interrompe e que não estamos preparados para suportar:
“Este é o fato primeiro e eloquente da morte, a transformação do corpo numa bomba-relógio feita de decomposição e mau cheiro. A este espetáculo nos furtamos, queremos nos furtar, e a terra e o fogo ou o mar logo se mostraram bocas apaziguadoras do ciclo corpóreo integral, grandes mantos onde a voragem universal desaparece de nossa vista” (p. 39, “Túmulos”). Continua mais adiante: “agora vemos como é porosa, dissipada, e que são nada os sete palmos”. Para arrematar: “É quase impossÃvel manter o morto em sua cova” (idem). E o lugar reservado para o morto, o cemitério, carrega em suas construções e gramados uma indecisão entre o “luto e a meditação” (p. 42).
O corpo de que falamos aqui e que nos fala é também lugar comum (da ordem do coletivo), matéria de todos e que a cada um escapa. Derrama, escorre, diferentemente do que se pode fixar em um verso, tela, escultura ou vÃdeo. O corpo é o habitar o mundo como performance que não cessa. O corpo não cessa o mundo de habitá-lo. “Assim, mais do que tocar o mundo, sou tocado por ele, e engordar me faz sentir seguro neste contato” (p. 53).
Como nas obras onde se identifica um “Retorno do real” (apresentação direta daquilo que não se simboliza), para usar a expressão-tÃtulo de Hal Foster, o que temos em Ó é o indÃcio imperioso do real, atento a sua repetição ativa. Repetição que, tomando emprestada as palavras do crÃtico americano: “não é reprodução no sentido da representação (de um referente) ou simulação (de uma simples imagem, um significante isolado). A repetição, antes, serve para proteger do real, compreendido como traumático. Mas essa mesma necessidade também aponta para o real, e nesse caso o real rompe o anteparo da repetição. É uma ruptura não tanto no mundo quanto no sujeito – entre a percepção e a consciência de um sujeito tocado por uma imagem”.
Em Ó estamos diante de relatos de como as técnicas humanas buscam fabricar, moldar, treinar, conter, prevenindo e protegendo do real, num “impulso asséptico”, para usar outra expressão retirada do livro, que, com isso, faz uma forte crÃtica a todo comportamento imaginário. Ao voltar-se, via corpo (matéria) como lugar primordial, Ó escancara vÃsceras do si e de uma alteridade radical em sua fisicalidade, e, desse modo, anuncia o que se pretendia escondido, em uma relação essencial com o real polÃtica e eticamente mais próxima dele do que na prática simbólica como sublimação que eleva o objeto à dignidade da Coisa (passagem do Seminário 7 ao 11, de Lacan, visto que no primeiro momento o que estava em jogo era uma dialética entre o belo e o real, na qual a arte era vista como organizadora, um remédio defensivo nos confrontos com o real, enquanto no segundo a arte é atiçada a tornar possÃvel o embate).
O que temos é um convite para transformação do sujeito via encarnação desse real diante de tudo o que conforma, molda, esteriliza. Convoca-se o sujeito a uma nova forma de presença. “Talvez por saber, saber profundamente, que tudo o que se oferece está sumindo e morrendo, sei que tenho de alcança-las antes que desapareça” (“Tocá-la, engordar, pássaros mortos”, p. 47).
Diante da violência, do escabroso, esse real em nós, quando reconhecido em sua inapreensibilidade, nos leva a reconhecer o Outro e ainda outra coisa que me parece determinante. Deixo mais uma vez que esta voz fale e que não cesse seu dizer: “Toda catástrofe abre os seres, tornando-os essencialmente relacionais – daà que os corpos e os objetos se despedacem, aceitando novos contornos, e que haja solidariedade e quebra de distância entre as pessoas [...] Somente deste lugar onde voam as telhas, em que afundam os carros na lama e caem os edifÃcios será possÃvel atacar, com alguma chance de vitória, a falsa solidez do corpo” (p. 118)