A bagagem já era excessiva, aumentada como sempre por livros, papéis e, dessa vez, por um escritório portátil do século XIX, bagatela de 200 € que me encantava como estojo novo de criança na ida pra escola. Mas como deixar escapar, passarinho em mão aberta, um Manoel de Oliveira, DVD e roteiro completo do primeiro filme que fez, o título tão sugestivo, evocando áfricas, estrangeirismos?
Não prenderia pássaro em mão fechada ou arapuca, mas esta é uma ética de adulta. Menina aí de meus dez anos, participei da cerimônia do corte das asas de Aurora, a pomba branca que apareceu machucada no quintal, foi bem cuidada e para que ficasse conosco por mais tempo sofreu a – espero que indolor – improvisada cirurgia.
Não há pássaros, presos ou soltos, em Aniki-Bóbó, há um gato que aparece na janela, junto a telhados, e salva a monotonia da sala de aula. Mas tem um trem no filme de Oliveira, que veio comigo, claro, para que foram concebidos os excessos de bagagem? Então, o trem no filme de Oliveira. O trem de apito estridente convocando a criançada a deixar tudo e correr para vê-lo, máquina potente comandando trilhos, o mundo de longe cortando paragens íntimas.
Tive também o meu trem. A casa da avó portuguesa ficava (fica ainda, está lá, pude vê-la outro dia como a teriam visto, como a veem, os passageiros do trem que há décadas passam por ali), como dizia, ficava ao lado da via férrea, só uma rua de permeio. Qual era a graça de, estivesse em qualquer ponto do quintal, sair correndo ao ouvir o apito, na ânsia de chegar dentro de casa antes que o trem lá fora atravessasse a paisagem vista além do muro? Haveria nisso alguma graça, suficiente ao menos para justificar dor e susto de joelhos ralados, ou o queixo aberto, em um ai!Jesus formidável, guardanapos ensanguentados, sal, mezinhas, talvez médico e sutura, não me lembro.
A cena do filme me colheu em terra estrangeira, me fez correr de novo do quintal para a cozinha, atropelando três largos degraus pelo caminho, abrindo o talho causado por apito de trem. O filme de Manoel de Oliveira guardou cuidadosamente as imagens de uma infância ribeirinha, seus rituais e suas brincadeiras. Minhas retinas guardam as imagens que acabei de descrever, mas porque pode ser que um dia se apaguem (as retinas e com elas as imagens), ou pior, que se apague um dia a graça de tê-las guardado, confio-as às retinas da escrita que há de guardá-las como a pele guardou a cicatriz que acabei de apalpar.
Está lá, no mesmo lugar, onde o queixo se dobra baixo da boca, segue para o pescoço. Não foi naquele momento que ocorreu, mas iria ocorrer, e convinha então deixar marcado em algum lugar o talho que um dia me arrancaria da infância. O talho que em cada um de nós vai assinalar o banimento para uma terra estrangeira.
P.S. Este desvio! Me desculpem. Prometo voltar ao filme de Oliveira, artista hábil em agulha, linha, suturas.