Porta-voz atual do novo jornalismo – aquele híbrido de narrativa jornalística e literária criado nos EUA da década de 60 e muito bem representado por Norman Mailer, Hunter Thompson, Gay Talese, Truman Capote, Janet Malcolm, entre outros –, o peruano descendente de chineses Julio Villanueva-Chang (na foto), editor da revista Etiqueta negra, é um dos grandes magos dos perfis jornalísticos. Tanto que para além das reportagens, viaja o mundo ministrando palestras e oficinas em universidades e jornais interessados em aprimoramento estilístico; jornalistas e escritores ávidos pela observação aperfeiçoadora de sua própria produção. Textos com a sua assinatura foram publicados em jornais como El país, La nación, Folha de S. Paulo e O globo; nas revistas Esquire, National geographic América Latina, Vogue, World literature today.
Ano passado Chang esteve na FLIP conduzindo a Oficina Literária “De Cerca Nadie és Normal” para trinta participantes intrigados com o seu modo de definir a cena ou de “escavar” uma personalidade a partir dos detalhes comezinhos que normalmente seriam desprezados pela reportagem da retranca diária. Sob sua pena ou a batuta da sua edição já foram perfilados numa mesma galeria nomes tão opostos e surpreendentes como Cicciolina e Ferran Adrià. Mundos muito particulares como o do tráfico de armas, do ketchup x mostarda, dos swingers, dos taxidermistas, de uma Miss Universo já foram dissecados sob a sua edição em Etiqueta negra. Na impossibilidade de entrevistar Gabriel García Márquez, Chang ouviu o seu dentista, logrando perfilar o autor de Cem anos de solidão a partir de considerações acerca da sua arcada dentária, ou seja, “conhecê-lo em sua ausência”. Seus melhores textos estão reunidos na antologia Elogios criminales (Random House Mondadori, México).
Julio Villanueva-Chang comparece nesta edição da FLIP como jornalista e espectador. “Minha vinda à festa foi acidental. Na próxima semana darei uma oficina de perfis no jornal O globo, então aproveitei a vinda ao Brasil para estar aqui. Eu queria ver Joe Sacco que encontrei antes em Boston, na Harvard’s Nieman Conference on Narrative Journalism, para a qual havíamos sido convidados como conferencistas. Queria encontrá-lo para convidá-lo a escrever em Etiqueta negra. Estou em busca de escritores e repórteres brasileiros para isso, inclusive. Amigos meus, Héctor Abad e Andrés Neuman foram autores convidados de modo que quis reencontrá-los também”. Ele conta ainda do projeto de edição de três revistas sobre a ignorância, em três capitais latino-americanas. Sua vinda ao Brasil possibilitará, diz ele, a retomada das obstinadas tentativas de perfilar Oscar Niemeyer. Leia abaixo a entrevista que ele concedeu à revista Pessoa.
Pessoa - A sua chegada ao jornalismo parece ter se dado por uma trajetória natural. Porque escolheu o novo jornalismo (new journalism ou jornalismo literário) como forma de se expressar? Ou você acabou escolhido por este gênero?
Chang - Dedicar-me a escrever crônicas foi um acidente. Eu era professor de língua espanhola em um colégio secundário, quando o jornal diário El comercio de Lima, o mais antigo da América, me chamou para ser revisor. Depois da entrevista com o chefe de redação, para minha surpresa, me deram a função de cronista na seção Ciudad. Não conhecia os códigos da profissão, mas tinha instinto narrativo. Um dia, o Sendero Luminoso, denominação da guerrilha maoísta que com atos terroristas enfrentou o Estado do Peru, explodiu uma bomba no centro de Lima, entre a sede do Ministério das Relações Exteriores e a Igreja de San Pedro. Meu chefe me enviou para escrever uma nota. Não houve mortos, mas quando estava lá, em vez de preocupar-me em quantificar os danos da explosão, entrevistei várias pessoas, sobretudo o sacristão e decidi contar esta história do ponto de vista de uma testemunha. O texto começava com uma cena: o sacristão da igreja vendo como as portas gigantescas do templo se abriam diante de si com a onda expansiva da explosão antes mesmo do estrondo da bomba. Era uma imagem quase poética da destruicão e meu instinto me dizia que não poderia escrever o texto de outro modo. Então eu não me dava conta, mas se tratava sobretudo de um modo de enxergar o que sucedia, de um modo de reconstruir uma cena e de eleger detalhes simbólicos nela. Mas também de uma intimidade com a linguagem: desde adolescente lia poesia e não somente a escolar. Aos dezessete anos, escrevia poemas que nunca cheguei a publicar. Eram muito ruins, por sinal.
Pessoa - Em 2010 você conduziu a Oficina Literária da FLIP em parceria com a Folha de SP, à qual deu o título “De Cerca Nadie És Normal”, entre outras que a imprensa geral registrou pelo país. Como foi a experiência e como você avalia o jornalismo e a literatura que se fazem hoje no Brasil?
Chang - O Brasil é um gigante exótico que nos seduz e ao mesmo tempo interroga. Apesar de ser parte da América do Sul, por décadas o Brasil tem se portado como o vizinho da frente que não te cumprimenta, mas que você vê gozando sempre, um clichê entre o futebol e o carnaval. De modo que Brasil e cultura brasileira eram, para mim, isso: ver futebol brasileiro todas as semanas e uma vez ao ano o Carnaval do Rio na TV. Minha mãe, enquanto cozinhava, punha o disco do Roberto Carlos cantando em espanhol. Mas, para um estrangeiro, acercar-se do Brasil é acercar-se do idioma português. Quando criança vi telenovelas da Globo como Escrava Isaura, Dancing Days ou Malu Mulher. Mais adiante, quando saí do colégio, vi Sônia Braga em Dona Flor e seus dois Maridos, e comecei a ouvir vinis e cassetes de Chico Buarque e Milton Nascimento. A rádio tocava o rock dos Paralamas e, por conta própria, com amigos viajantes, conseguia os discos de Renato Russo. Conheci Cartola, Paulinho da Viola, Secos e Molhados e André Abujamra nos últimos três anos. Quando tinha vinte, li pela primeira vez Jorge Amado e Drummond de Andrade. Nesse tempo me impactaram os poemas de Manuel Bandeira e desde então, aterrissei em Pessoa, li os primeiros contos de Machado de Assis, descobri Clarice Lispector, e essa celebração da língua portuguesa que é Grande sertão (Veredas) de Guimarães Rosa. Agora que vou muito ao Brasil, gosto da ficção de João Gilberto Noll e João Paulo Cuenca.
Pessoa - Dos perfis que você já assinou, quais apontaria como legítimos representantes da frase cunhada por Caetano Veloso?
Chang - Um é o do tenor Juan Diego Flórez, que pessoalmente tem um temperamento muito sereno e oposto ao histrionismo que demonstra quando interpreta os personagens das óperas de Rossini.
Pessoa - Fale de seus projetos atuais e futuros. Continua como editor da Etiqueta negra?
Chang - Desde dezembro-janeiro de 2011, voltei a dirigir Etiqueta negra. Se contarmos desde a sua gestação, a revista acaba de completar dez anos, e no fim do ano editarei o seu número 100. Há uma proposta da (editora) Cosac-Naify para editar uma antologia da Etiqueta negra e seria fantástico que pudéssemos contribuir para um intercâmbio necessário e urgente: publicar mais autores em português e que no Brasil e Portugal publiquem mais autores que escrevam em espanhol. Creio que por agora, o maior desafio é a tradução da revista para o inglês e o português, e promover encontros e festivais com revistas com as quais compartilhamos certo DNA, como as americanas The believer e Mc Sweeneys e Piauí, do Brasil. Acabo de estar com Dave Eggers em San Francisco, que me pediu recomendações de novos autores latino americanos para publicar na Mc Sweeneys. Depois da FLIP, ministrarei uma oficina de perfis para O globo, e tentarei outra vez conversar com Oscar Niemeyer para ver se por fim escrevo um retrato mínimo. No próximo ano publicarei na Espanha minha coleção de perfis Elogios criminales (Random House-Mondadori) e espero que seja a edição definitiva para dedicar-me a escrever um livro que dedicarei a uma pessoa. Tenho também postergado o projeto de fundar três revistas de um só número em três cidades distintas: No sé, em Assunção, Paraguai. Logo Qué Sé Yo, em não sei em que lugar. E a terceira seria Quién sabe qué. Seriam, por supuesto, três revistas sobre a ignorância.
Pessoa - A Etiqueta negra, cujo slogan é “uma revista para distraídos” é porta-voz de um estilo politicamente incorretíssimo. Que problemas vocês já tiveram com o estilo franco e mordaz de jornalismo que fazem?
Chang - De verdade, nenhum. Há uma diferença entre ser rebeldes e revoltosos, e creio que a rebeldia não é inimiga da elegância. O estilo de Etiqueta negra quase nunca inclui o sarcasmo e tampouco a denúncia. Além disso, sendo uma revista de circulação limitada, se alguém se sente injuriado, prefere deixar que o que não quer recordar seja recoberto pela poeira do esquecimento.