Olho o retrato dela no endereço de e-mail, vejo a voz doce, ouço o rosto calmo. Me dou conta da amizade costurada em fruições, silêncios, palavras trocadas em eventos por aà afora. Nos encontramos de novo em junho, em julho, neste agosto. Rio de Janeiro, Goiânia, Salvador. Encontros de certa fugacidade, nem tive tempo de dizer a ela do livro que me acompanha desde muito. Ciça Fittipaldi, A Lenda do Guaraná, mito dos Ãndios Saterê-maué, que me serviu para alfabetizar menino-jovem de 12, 13 anos, que ainda não sabia ler, entendida essa palavra como deve ser. Indignada com a falha da escola, comigo mesma enquanto corpo desta escola, tomei dos livros que tinha na mão, essa lenda, duas outras mais, e Morte e Vida Severina. Li para eles, a voz alta emocionada, “passo a ser o Severino que em vossa presença emigra”. Percebi que havia acertado, por aà iria, por aà fomos. Ao final do ano, liam como deve ser. Escreviam com autonomia e decência. E o corpo do filho da Ãndia Uniaà ofertava-se, uma vez mais, alimento revigorante e regenerativo, para a garotada naquela sala de aula do final dos anos 1980.
Com preguiça de buscar na biblioteca fÃsica o livro de Ciça (a noite avança, o dia começou cedo), recorro à biblioteca virtual, e caio em sustos de mim. No site da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil descubro o parecer feito em 1999, para o Programa Nacional Biblioteca da Escola, do MEC. Não me lembrava, não sabia que, procurando o livro, encontrava a declaração de admiração e respeito por uma das artistas mais fiéis a si mesma que conheço.
No vÃdeo que apresentou recentemente em evento dessa mesma Fundação, Ciça mostra-se bailarina, depois arquiteta, depois ilustradora-mais-que-sensÃvel. E agora Ciça me escreve para dizer “Eu ainda nem acredito que você tenha ido ao nosso encontro em Salvador. Afinal, uma exposição pequena, no circuito universitário”. Pequena, pode ser, e inestimável em valor. Da exposição, falarei em outra hora. Da outra amiga que fui encontrar em Salvador, também. Agora o elogio é só de Ciça, com quem deixei certas linhas frágeis, e das quais me fala, crédula, temerária. Também eu, Ciça, também eu. As linhas frágeis. Nada mais forte. Nada mais ameaçador, empurrão certo para o abismo.
Sem fantasmas, nada se faz, e só o filho tem fantasmas, Barthes alinhava, lembra?
Coalhada dessas linhas, do excesso de gravações nas pedras de minhas moradas, sigo em voo cego. O radar me aponta gente como Ciça, um dos mais significativos traços da cultura brasileira, modesta e una, mandala vislumbrada, antes e agora, no fundo das bacias de águas de anil, em Salvador.