A literatura nos traz as personagens, essas bobinas vivas no dizer de Gide, em transcrição de Antonio Candido. Caminhamos ao lado delas, por páginas e páginas, construindo nossas próprias respostas aos enigmas da existência. Em minha vida, um enigma se impõe há algum tempo, bocado de tempo em verdade. Escritora ou professora, onde a porção mais autêntica de mim? Em qual dos lugares ficar, alimentando o inigualável sentimento de apenas aqui? Que resposta posso construir para a pergunta que o recente artigo de Luiz Ruffato, “Viver de literatura”*, vem revirar dentro de mim? Que resposta construí previamente, da qual não me desvencilho?
É forte a sensação de uma primeira narrativa, mas se nem me lembro direito do que li, e recuso o que me dão no presente? A Galinha Ruiva me chegou no espaço de ampla biblioteca de escola pública modelar, luminosa e recém-construída. Havia um lobo metido com esta galinha ruiva, mas na maturidade ela surge como animal trabalhador, incansável, fazendo tudo sozinha, de semear, plantar, regar, colher, debulhar, moer o trigo, até sovar a massa, assar o pão. A cada uma das tarefas, convidou outros animais para ajudá-la, mas eles recusaram sistematicamente o trabalho, até verem o pão à mesa e se apresentarem para a refeição, da qual são enxotados, em moral irrepreensível da relação trabalho & ganho.
Essa a história que vejo escrita hoje. Mas na minha história havia um lobo metido com esta galinha ruiva, estou certa disso.
A vida é para ser vivida no verso, per verso, em bem organizado discurso a domar o cavalo empinado do real. Aquela galinha devia prenunciar outra que me embasbacaria numa análise em certa prova que nunca pude carregar comigo: a vida é desperdício. Uma galinha trabalhadeira, outra fugindo, ganhando precária liberdade, ambas construídas por humanos, habitando a literatura, essa mesma em que estou em conflito de preposições: viver de literatura, viver na literatura.
Não tivesse havido o magistério, teria havido a escritora? Sem Ulisses e o leito conjugal levantado da terra, sem Penélope e a tessitura do longo saber da espera, onde estaria essa felicidade conflituosa e clandestina?
Ainda sem resposta, meu estimado Ruffato, reconheço livro e escrita como amantes, cujo gozo partilho com tantos, alguns deles alunos e alunas, atuais leitoras e leitores, docentes já-quase.
* O Globo, 2/09/2013.